31.05.05

passeio na roça

Eu sou uma criatura da luz.

Não estou dizendo luz no sentido esotérico-babaca da palavra, mas me refiro à luz do sol mesmo. O inverno acaba comigo não só porque o frio é um porre, mas também, e sobretudo, pela curta duração do dia.

Agora que o sol nasce cedo, eu levanto junto com ele, antes das seis. Sempre dormi e acordei com as galinhas, mas no inverno esse levantar é sofrido e gloomy. Com o sol brilhando lá fora e um céu lindo me esperando, ao contrário, acordo no maior pique. Meu dia dura uma eternidade, consigo fazer um monte de coisas, tenho muito mais disposição.

E então deixo o Mirco dormindo, faço café pra ele, tomo um iogurte de morango ou banana e vou correr, ouvindo Elvis e outras coisinhas. Cumprimento todos os velhinhos que encontro, que àquela hora vão limpar suas artérias andando de bicicleta devagariiiiiiiiiinho, sempre de chapéu e paletó. Ainda tá fresquinho e minha corrida rende muito mais, faço quase todo o meu percurso direto, sem parar toda hora como acontece se saio mais tarde, quando já tá quente pra cacete, porque aí o baço dá aquelas cutucadas falando pega leve, minha filha, que nesse calor eu não güento a onda não. Vou correndo meio devagar, porque afinal de contas não sou atleta e sou grande e pesada, ouvindo minha musiquinha, e observando a roça ao meu redor.

Engraçado como a gente nem repara nas plantas que nos rodeiam, até que elas mudem. Meus conhecimentos botânicos são vergonhosamente limitados, mas sei reconhecer um flamboyant, um ipê, uma mangueira, uma bananeira – coisas que não existem aqui. Mas nunca tinha reparado com muitos detalhes na paisagem por essas bandas, e só fui notar, chocada, o abismo entre os tipos de vegetação quando descemos em Foz do Iguaçu no começo do ano. Enquanto os verdes tropicais são exagerados, berrantes, e sempre definitivamente verdes, aqui há verdes acinzentados, verdes azulados, verdes muito escuros, verdes pálidos. Os tipos de pinheiro são tantos que já nem sei mais. As cercas-vivas vêm em milhões de variedades. As plantas nos jardins e nas varandas não têm nada a ver com as que vemos no Brasil. Nada de samambaia, árvore da felicidade, açucena, copos-de-leite, dólar. Aqui o grande must são os gerânios, as cafonérrimas rosas, prímulas, tulipas, oleandros, petúnias.

Mas o mais legal desses passeios é acompanhar o ritmo de crescimento das plantas que já reconheço. O trigo já está começando a amarelar; campos vizinhos às vezes já estão com cores muito diferentes, dependendo de quando foram semeados. O milho cresce literalmente a olhos vistos, e se não fosse essa porcaria de festa barulhenta tenho certeza de que à noite, no silêncio da roça, seria possível ouvir as plantas crescendo. O milho é uma planta feinha, mas as espigas barbudas são muito simpáticas. As videiras, que há dois meses eram carecas e totalmente podadas, agora já estão repolhudas, verdes e lindas, como irmãs de mãos dadas em loooongas fileiras. As oliveiras, que não mudam nunca e só se enchem de azeitonas lá pra novembro, aparecem em muitos jardins, e freqüentemente são plantadas no início de cada fileira de videiras, não sei por qual motivo. Em frente a uma casa aqui perto tem uma oliveira que é claramente centenária e deve valer alguns milhares de euros. Eu adoro oliveiras; junto com as mangueiras e os ficus são as minhas grandes paixões arbóricas. Há muitos, muitos pessegueiros. No meu percurso de corrida vejo também macieiras e muitos arbustos de folhas pequenas que não conheço, encontro caminhões que carregam porcos, vacas e galinhas, cachorros latem pra mim, vejo velhinhos colhendo alface na horta e velhinhas catando erba campagnola na beira da estrada, uma espécie de capim que aqui se come refogado e eu acho horrendo, vejo tratores que levam bandejas imensas de isopor contendo mudinhas de tabaco. Nas hortas e nos jardins das belas casas reconheço as plantas azuladas de alcachofra, os pés de batata que já estão enormes e dão lindas florezinhas brancas, muitas variedades de alface, plantinhas de tomate, ainda jovens, favas e ervilhas, cenouras, e alho. Agora é a época do alho, que se come ainda fresco. Você tira da terra e ele parece uma cebolinha, não tem ainda uma cabeça dividida em dentes mas é um bulbo branquiiiiinho, de sabor muito suave. É só cortar em rodelas fininhas, usando até a parte verde, e refogar rapidamente ou misturar na salada pra dar um tchan. Vejo imensas moitas de alecrim que, ao contrário do meu, dá mini-flores lilás. Lilás também são as flores de sálvia – a minha floresce sempre, o tomilho também.

Só falta o Leguinho, que sempre me acompanhou nas corridas. Sinto falta dele.

Postado por leticia em 12:32

30.05.05

kittens

São cinco fêmeas, as filhotas da Priscilla. Todas parecidas, a não ser essa preta, que é danada de arredia e eu só consegui fotografar pela primeira vez ontem. As outras são umas pestes, pentelham os cachorros, se enfiam entre os pedaços de lenha no depósito, comem espaguete com molho de tomate e mamam o tempo todo. A Priscilla é a mãe mais zen que eu já vi: aquelas cinco pestes pisando na cara dela, mordendo o rabo dela, mamando com a maior força, e ela nem tchum: calma, lânguida, de olhinhos fechados. A gente pega os filhotes no colo e ela nem liga, fica lá sentada, os olhinhos piscando, a boca aberta em um bocejo.

Postado por leticia em 20:07

29.05.05

roncadores, beware!

Por causa da sensacional repercussão do assunto spray anti-ronco, vamos desenvolver melhor o argumento.

O ronco é, na maioria dos casos, causado pelo atrito de estruturas das vias respiratórias superior, que resulta em barulho. A causa principal desse atrito anormal é uma lubrificação natural insuficiente. Uma outra causa comum do ronco é a obesidade, que pressiona estas mesmas estruturas, diminuindo o diâmetro das vias aéreas e coisa e tal. Muitas vezes o ronco vem acompanhado de apnéia do sono, ou seja, curtas interrupções da respiração, imediatamente seguidas de um roncão daqueles tão altos que é capaz de um sismógrafo conseguir registrar.

Quando perguntei ao Aluno Endocrinologista onde eu podia levar o Mirco pra ver esse lance do ronco, foi por causa da apnéia também, que eu não tinha certeza que um otorrinolaringologista era capaz de tratar. Aluno disse que sim, que um bom otorrino resolve o ronco, qualquer que seja sua causa. Ele deu três possíveis soluções pro problema, no caso de um ronco normal, sem necessidade de intervenção cirúrgica.

O primeiro é o que eu batizei de Método da Princesa e a Ervilha: consiste simplesmente em costurar algo volumoso pero no mucho, tipo um par de bolas de golfe, nas costas do pijama do roncador. Como a posição de barriga pra cima é a que mais favorece o ronco, as bolinhas fazem o que normalmente os pobres companheiros dos roncadores fazem: impedem o roncador de ficar naquela posição. Em vez de eu acordar com o ronco e cutucar o lanterneiro pra ele virar de lado, a bolinha não deixa ele ficar nem dois segundos de barriga pra cima, porque incomoda. Só que no nosso caso isso não funciona, porque o Mirco não dorme de pijama, mas com a camiseta limpa que vai usar por baixo da camisa no dia seguinte. Costurar e descosturar bolinhas todo santo dia é inviável, e por isso o método foi imediatamente descartado.

O segundo são aqueles adesivos que os atletas agora gostam de colar no nariz. Não tem nenhuma substância química envolvida, a ação é, novamente, puramente mecânica: através da sua estrutura muito bem bolada, o adesivo exerce forças mínimas sobre a cartilagem do nariz, abrindo muuuuuuuito ligeiramente as narinas e facilitando a respiração. Aluno Endocrinologista disse que uma vez experimentou o adesivo, porque achava que era uma coisa miraculosa estilo Facas Ginsu, e ficou impressionado como funciona. Nesse caso, se o roncador tem deficiência na parte alta das vias respiratórias, o adesivo pode ajudar.

O terceiro método é o tal spray, que ele disse que sabia que existia e funcionava mas não conhecia o princípio químico. A mulher da farmácia disse que não tem nada de estranho, simplesmente óleos essenciais que lubrificam as partes que entram em atrito, evitando o rumor. Paguei os 20 euros muito desconfiada e pensando em qual livro poderia comprar com esse dinheiro, mas não é que a coisa funciona? Você dá três borrifadas no fundo e no alto da garganta antes de dormir, depois de ter escovado os dentes e bebido água, espera vinte segundos e depois engole. E voilà, seu roncador parou de roncar. Aluno Endocrinologista ainda me arrumou, dias depois, um vidrinho de outro tipo de produto, que se injeta no nariz e se chama Ronfnyl, produzido ou distribuído, não sei direito, pelo laboratório italiano Geymonat, mas tem o mesmo mecanismo de ação. Funcionou do mesmo jeito, mas é fedido, enquanto que o spray pra garganta, que se chama Snoreeze, do laboratório inglês Passion for Life, tem gostinho de menta.

Lembrem-se de que apnéia do sono é um dos fatores de risco de morte precoce por cardiopatia em homens, e esses produtos não agem contra a apnéia, por isso, se o seu roncador suspende a respiração por breves períodos enquanto dorme, otorrino nele.

Postado por leticia em 13:23

28.05.05

Middlesex

Aliás, falando em livro.

Consegui terminar Middlesex, de Jeffrey Eugenides (autor de Virgin Suicides), à custa de muito esperar aluno atrasado e fila no banco e nos correios. Gostei MUITO, não tanto da problemática hermafrodita do personagem principal, mas da história da família de origem grega que migra pra Detroit. Desdemona é um personagem fenomenal e me fez abrir largos sorrisos. Gostei, gostei.

Agora estou com esse In Patagonia, de Chatwin, que não sei quando vou conseguir curtir, porque tenho milhões de páginas (algumas chatas, outras legais) pra traduzir com urgência, turmas novas pintando em horários surreais (sábado de uma e meia a três e meia, sexta das oito às dez da noite!), e na próxima semana um zilhão de faturas pra fazer.

Hoje acordei ainda com dor de cabeça e zonza depois de tanta música chata ontem à noite. Perambulei pela casa, inútil, até as nove, quando finalmente me convenci de que não tinha condições de sair pra correr debaixo do sol forte, com essa dor de cabeça. Dei uma mini-geral na casa e sentei pra escrever. E agora tenho que ir pra cozinha bater um bolo bem gostoso pro Ettore, que foi operado no ombro ontem à tarde e em teoria volta pra casa hoje. Mas cadê a vontade? Cadê a vontade de fazer faxina também? E a vontade de traduzir as coisas chatas? E de lavar o cabelo? E de dar aula até as três e meia da tarde? E de depois ir direto pra casa do Moreno, pra ajudar a mãe dele, que é uma simpatia, com os preparativos do jantar de hoje – finalmente as lesmas vão pra panela, e parece que a coisa vai ser trabalhosa.

Que vontade de passar alguns dias em animação suspensa, quase comatosa, pra descansar os neurônios.

Postado por leticia em 11:00

27.05.05

uia

O dia foi pesadíssimo.

Antes das sete e meia eu já estava na oficina, botando a papelada em ordem. Às dez toquei pra Santa Maria, pra pegar umas coisas que um amigo do Mirco deveria ter deixado na recepção do hotel da família – lógico que o tal amigo saiu pra viajar de manhã cedo e com o recepcionista deixou só o telefone sem fio que esquecemos no carro que o Mirco consertou, mas o pagamento que é bom, nada. Aproveitei pra passar no Comune em Bastia pra deixar uma cópia do novo permesso di soggiorno, fui na USL (Unità Sanitaria Locale) pra renovar minha carteirinha do sistema de saúde, passei na Rita pra comprar fruta e verdura, nos correios pra pagar o imposto do lixo e pegar uma carta registrada que chegou pro Ettore (era uma multa que um dos marroquinos levou em março), e no fornecedor de tintas pra pegar dois latões de diluente. Passei em casa pra botar as frutas na geladeira, comi correndo uma salada de macarrão que já estava pronta desde ontem, toquei pra oficina de novo, desovei os latões e fui correndo pra escola. Meio-dia e meia F. chegou pra corrigir um artigo de filosofia comigo, à uma chegaram os outros dois mosqueteiros, fizemos nossa última aula (chuif!), quando saíram M. já tava lá fora me esperando (é estudante de Medicina, tem uma voz potentíssima e é muito, muito inteligente), quando acabei com ele chegou a Quarentona Estressada, que terminou às seis e meia. Direto pra Coop pra aproveitar as ofertas (suco de fruta em caixinha, queijo robiola, macarrão Buitoni, atum em lata), e dali pra casa. Passei roupa até meia-noite e meia, sempre ouvindo essa música miserável. Mirco chegou do jantar-reunião de amigos de escola primária quando eu tava saindo do banho. Ainda tão tocando essa bosta? Sim, caro, e continuaram tocando até uma e meia da manhã, quando finalmente ligamos pros Carabinieri e imploramos pra mandar uma patrulha aqui pra desligar a musiquinha de carrossel, porque tem gente que trabalha amanhã, queridos. Minha cabeça já tava explodindo. Reguei as plantas nas varandas e dormi com Bruce Chatwin na mesinha de cabeceira, untouched.

Postado por leticia em 23:55

26.05.05

burocrazia

E então hoje fui à polícia federal pegar meu permesso di soggiorno, meu permit of stay. Foi um suplício, porque eu odeio, odeio, odeio falar ao telefone e sempre me engano, entendo errado, me confundo – em português também, não é uma limitação lingüística, mas acho que eu sou muito teatral e expressiva e não consigo me movimentar direito em situações onde não vejo a expressão do meu interlocutor. Sei lá, acho que é isso.

Então, por causa de uma cagada minha no telefone, entendi errado o que o Paoletto, primo do Moreno que é Carabiniere, me disse na terça. Perdi a manhã inteira em meio àquela gente esquisita, fedorenta, sem dentes e mal vestida, e invariavelmente acompanhada de crianças ranhentas e mal educadas. Uma fila de horas, rodeada de gente que não entende nada de italiano e não tem idéia do que está acontecendo, que leva documentos errados porque não entende nada de coisa nenhuma ou simplesmente porque não tem os documentos certos mas vai assim mesmo, pra ver que bicho que dá. Tudo isso pra nada, e só porque sou retardada telefônica, porque o documento já tava pronto. Liguei pra Assis, onde normalmente pego meu permesso, e ao dar meu sobrenome a Carabiniere, que eu reconheci pela voz, reciprocamente reconheceu meus cinco sobrenomes – aaaaaaaaaaah sim, sim, já sei quem é a senhora, senhora Vieira, o seu documento ainda não chegou, ainda não encontrei seu nome quilométrico esse ano. Ha ha. Não chegou porque eu mandei um fax a Perugia pedindo pra pegar o bendito papel lá, em vez de esperar séculos pra que ele fosse enviado pra Assis. Teoricamente isso permitiria que eu aproveitasse o contato com o Paoletto, que teria deixado o permesso com o Inspetor-Chefe, pra quem eu iria diretamente, sem fazer a fila entre os fedorentos.

Mas tudo bem, hoje fui mais preparada, e encontrei o Paoletto no portão e fui diretamente falar com a Inspetora-Chefe, que foi muito simpática e me deu o maldito papel azul na hora. Só fui constatar o brinde depois que já tava no carro, esperando o volante esfriar um pouco pra poder manobrar: dessa vez a validade é de dois anos. Maravilha! Um perrengue a menos na minha vida de albanesa, até que enfim.

Postado por leticia em 20:39

25.05.05

festa

E hoje começou a Festa della Primavera aqui atrás de casa.

O primeiro dia é o melhor. Tradicionalmente a festa abre com um minifestival de bandas de rock locais, e o repertório costuma ser interessante, apesar das vozes terríveis. Hoje rolou muito Pearl Jam, um pouco de Stone Temple Pilots, Queen e até Elvis. Tocaram direitinho, deixei até as portas das varandas abertas pra ouvir melhor.

A partir de amanhã começa o suplício: Riccardi com sua franjinha crespa, músicos vestindo camisa de cetim vermelho, cantoras de meia arrastão e cabelos amarelo-ovo, polcas, mazurcas, musiquinhas de carrossel. Haja saco.

Postado por leticia em 23:50

24.05.05

aluninhos

Finalmente minha turma do hotel/restaurante tomou tento e resolveu se dedicar mais seriamente às aulas de inglês. Bom, mais ou menos, porque o W., aquele que não entende nada e esquece que tem aula, desistiu oficialmente. I., o filho da companheira de W., que morreu há alguns anos, levou um ai-ai-ai desta que vos escreve e desde então temos conseguido ter aula pelo menos uma vez por semana, às terças-feiras.

Como o tempo tá uma delícia e nossas aulas são das seis e meia às oito da noite, quando o sol não torra mais e um ventinho fresco arrepia os cabelinhos do braço, fazemos as aulas no jardim do hotel. Passarinhos cantando ao fundo, o jardineiro que apara a cerca-viva gigante com tesouronas igualmente gigantes, hóspedes idosos que tomam sol na porta do quarto, e nós estudando inglês para hotelaria e turismo, na mesinha de plástico verde no gramado, em meio às margaridinhas primaveris. Uma diliça.

I. é simplesmente a pessoa mais gentil que eu já conheci na minha vida. Um doce de menino. O nosso consultor (leia-se vendedor), que fez a entrevista inicial com ele e lhe vendeu o curso, outro dia veio comentar isso comigo. Caramba, que gente gentil, aqueles dois! É tão raro ver essas coisas hoje em dia que a gente até se espanta. Hoje levei um alfajor pra ele de presente, porque foi o único aluno que não ganhou (simplesmente porque levamos séculos pra conseguir nos encontrar desde que cheguei de viagem; eles são enroladíssimos e toda hora têm algum problema ou então esquecem que tem aula e somem). Ficou todo bobo, tadinho. A aula foi tranqüilex e cheguei até a ficar triste de não ter ido de lambreta, porque o tempo tava lindo. Adoro a primavera.

**

Terça também é dia de Aluno Endocrinologista, em Perugia, bem na hora do almoço. Ele é um cara muito divertido, com uma expressão facial difícil de se encontrar entre os umbros. Ele tá lá lendo um texto do livro, ou respondendo a um exercício, e de repente, do nada, começa a rir sozinho.

- Quê que foi, Stefano.
- Tô lembrando da velhinha.
- Que velhinha?
- Aquela que...

E aqui ele entra com uma piada, normalmente em dialeto perugino, o que significa que ele tem que me explicar porque a graça toda está justamente em certas palavras e expressões típicas de Perugia, enquanto que aqui no vale onde moramos fala-se uma variante do italiano bastante diferente em termos de pronúncia e léxico. Ou então conta um causo que aconteceu no ambulatório – todo médico ou ex-médico tem dúzias de histórias bizarras de pacientes pra contar. Até eu tenho várias, e olha que minha experiência no ramo foi muito limitada. Ele tem um estoque aparentemente infinito. Ficamos horas dando risada. Ou então é alguma coisa maluca que aconteceu com ele, como quando, tentando expulsar um sapo da varanda de casa, o sapo espirrou alguma coisa no olho dele. No dia seguinte ele acordou cego de um olho, e todos os colegas com quem ele falava estavam mais interessados na história do sapo do que nos sintomas do olho, porque achavam curiosíssimo esse negócio de sapo que esguicha. No final o olho voltou sozinho ao normal, depois de algumas semanas, mas agora toda vez que eu olho pra ele penso no sapo e dou risada.

Isso quando a mãe dele, que mora no mesmo prédio e me adora, não vem me perguntar como vai o filho, como se estivesse no conselho de classe da escola primária.

Como é bom conhecer gente engraçada! Como é VITAL conviver com gente engraçada! :)

Postado por leticia em 21:26

23.05.05

essa bota tá apertando meus calos

A notícia da semana é a crise no país. Depois de meses e meses de Berlusconi e seus cabelos implantados afirmando categoricamente que essa história de crise é complô do centro-esquerda, que tudo vai muito bem, obrigado, embora todo mundo soubesse que tudo ia muito bem só pras nêgas dele porque as abobrinhas estão pelos olhos da cara, o macarrão aumenta a olhos vistos e daqui a pouco o pão vai virar artigo de luxo, especialistas da União Européia vieram aqui na Bota dar uma zoiada e constataram o óbvio: que a Itália está, literalmente, in mezzo alla merda.

Já discuti n vezes com o Ettore esse ano, porque ele acha que a queda no movimento da oficina é culpa do Mirco, que se recusa a atender clientes que não pagam e nos obrigam a botar advogado pra correr atrás do prejuízo. O gerente de um dos nossos bancos já tinha me cantado a pedra, há meses, de que, em mais de 30 anos trabalhando em banco, jamais ele vira tanto cheque voltando, tanta gente no vermelho, tanta queda no movimento em geral. Nossos amigos confirmam isso; todos que conhecemos relatam quedas brutais, brutais, no movimento das empresas onde trabalham. O lado bom é que a crise realmente não é só aqui em casa, o que não deixa de ser ligeiramente reconfortante. O lado ruim é que sabemos que nada vai mudar e o destino é, provavelmente, o porão do fundo do poço – a Itália foi comparada no rádio, outro dia, com Portugal e Grécia, os dois patinhos feios da Comunidade Européia. Há coisas alucinantes correndo soltas por aqui – pagamos mais de 400 euros de gás pelos três primeiros meses do ano aqui em casa, coisa que jamais acontecera antes, e quando fui à CEG local pra reclamar vi que não era a única, porque perdi a manhã inteira na fila em meio a gente com contas mais altas ainda do que a minha, apesar de morarem sozinhas, ou em apartamentos minúsculos, ou de viajar freqüentemente a trabalho e conseqüentemente quase nunca ligar o aquecimento. Um dos nossos bancos foi comprado por um conglomerado de bancos e o preço do talão de cheques pulou de 0,10 centavos pra 1 euro; a gasolina aumenta em ritmo meteórico; as contas de luz vêm sempre com valores sem pé nem cabeça, e nem adianta reclamar porque a resposta que recebemos é sempre "é assim mesmo, senhora". Enquanto isso, clientes que sempre pagaram direitinho agora estão dando calote, implorando pra esticar prazos, chorando migalhas. Trabalho até que tem tido, porque caminhão na estrada é igual a caminhão que de algum jeito acaba se danificando e portanto precisa de conserto, e as máquinas industriais que o Mirco pinta são pra exportação, não muito dependentes da situação econômica local, mas é muito chato e desgastante ficar implorando pro cliente te dar o TEU dinheiro, que você ganhou com o suor do rosto.

O Mirco entra na categoria artigiano – artesão, uma palavra antiga que poderia ser traduzida como microempresário, nos dias de hoje. Os artigiani são os trabalhadores mais castigados do país. Normalmente têm atividades pouco salubres – Mirco freqüentemente volta pra casa com mechas coloridas nos cabelos e bolinhas de tinta nas pontas dos cílios – mas pagam impostos altíssimos, se aposentam mais tarde e ganham pensões menores. As leis trabalhistas são malucas, manter um funcionário custa caríssimo ao empregador mas não traz lindas vantagens ao funcionário, e assim a bola de neve vai se criando em uma velocidade assustadora. É claro que em uma situação assim os produtos italianos não podem ser competitivos. E não é só culpa da ameaça chinesa, que apesar de ter sua fatia de culpa não pode ser o único bode expiatório dessa história. A Itália é um país de gente pouco preparada, ignorante, de tecnologia atrasada em muitos setores, onde pesquisa é só uma palavra bonita no dicionário, de pouco contato com o resto do mundo, de superproteção ao presunto de Parma e nenhum interesse pelo que vem de fora, de gente que vive em um lugar incrivelmente rico de história e de arte mas não tem a menor idéia do que isso signifique, porque está preocupado demais em fazer os tortellini pro almoço de domingo. E agora Berlusca e seus capangas levaram um esporro da tal comissão da União Européia, porque estão fazendo tudo errado há anos, e contribuindo pra puxar ainda mais pro fundo a já nada simples situação do Velho Mundo.

O negócio é comprar uma fazenda na Austrália e passar a vida tosando ovelhas, já tô até vendo.

Excrusive Gianni outro dia achou umas passagens em oferta da Singapore Airlines pra Perth, se não me engano; se a notícia for confirmada, fica imediatamente decidida a próxima (e provavelmente última, por falta de grana) Grande Viagem de 2005.

Mais detalhes com a Ig, aqui.

Postado por leticia em 23:09

22.05.05

bologna fiere

Acordamos cedo e partimos na direção de Bologna pra tal feira de produtos pra consertar carro, caminhão, essas coisas legais. O dia tava esquisito, abafado, um calor desagradável. A estrada pra Emilia-Romagna, região onde fica Bologna, é TERRÍVEL. Deveria ser linda, porque atravessa vales cobertos de florestas. São quilômetros de estrada alta, como um viaduto longuíssimo, atravessando os Apeninos Tosco-Emilianos (entre a Toscana e a Emilia-Romagna). O visual é deslumbrante, mas a estrada é terrível, terrível, terrível. É o pavor dos caminhoneiros. O asfalto é esburacadíssimo, no melhor estilo Rio-Santos. Tudo está em obras há ANOS, então há milhões de desvios, tratores, luzinhas; zilhões de túneis, lógico, e, sendo domingo, uma infinidade de morrinhas. A coisa mais ridícula é que é uma estrada importantíssima, já que é a principal ligação entre quem está abaixo dos Apeninos e quem está acima. Se quiser evitar essa buracação toda, tem que ir até Florença e dar uma volta do cacete. Cesena, que fica do outro lado dos Apeninos, é um ponto rodoviário estratégico, e pra chegar lá tem que passar por esse viadutão todo. Mas é realmente uma pena, porque é uma área muito bonita. Já falei dela aqui, inclusive, quando fomos visitar a Fran, ainda morando em Faenza na época. Muitas casonas maneiríssimas de pedra, abandonadas no alto das colinas; cidadezinhas de 3 casas, com nomes curiosos; crianças tomando banho de rio. Aliás, falando em rio, ô rio pra dar voltas e mais voltas, esse Tiber! Toda hora a gente passa por cima dele. Vai meandrar assim na China.

A feira foi mais ou menos como no ano passado, embora menos interessante. A coisa legal é que, apesar de ser um assunto tradicionalmente masculino, há muitas mulheres no ramo. E não falo de pin-ups contratadas pra ficar atrás do balcão vendendo ferramentas das quais ela nunca ouviu falar, mas de proprietárias das empresas, ou filhas ou esposas do dono, que entendem muito do riscado e falam de parafusos, filtros de ar, fornos pra pintura de peças e equipamento de soldar com a maior desenvoltura. Legal, isso. Encontramos inclusive um stand de uma empresa brasileira de kit pra consertar pneu. Os meninos, muito simpáticos, confirmaram a nossa teoria de que domingo, sempre o último dia da feira, é o dia dos caçadores de brindes e de gente que leva a família pra olhar os caminhões e comer chocolatinhos de graça. Nós também caçamos brindes: voltei pra casa cheia de sacolas de plástico, que nunca são demais; algumas de pano, ótimas pra fazer compras; chaveiros, bonés, canetas, bloquinhos, pastas de papelão e outras coisas do gênero. Tudo aquilo me fez lembrar do primeiro congresso internacional a que fomos durante a faculdade, um mundial de Cardio no Riocentro que pra nós, pobres segundanistas, só serviu mesmo pra comer de graça e pegar tanto post-it e bloco de papel que até hoje eu escrevo com canetas da Schering-Plough, em folhas timbradas da Pfizer. E olha que eu me formei em 2001 e não cheguei a exercer.

Saímos da feira às três da tarde e fomos passear pela cidade. Só que tava realmente muito calor, e aquela abafação tirou toda a nossa vontade de bancar o turista. Àquela hora não havia um só restaurante aberto, e o que nos salvou foi, shame on us, o McDonald’s da estação. Comi uma saladinha com frango grelhado e molho de iogurte, chá de pêssego e um Chicken McNugget que o Mirco não conseguiu matar. Notei que, por causa dos mochileiros estranhos, dos drogados pseudo-hippies que vivem nas ruas e dos ciganos filhos da puta (ô raça miserável!), os banheiros são trancados, como no Rio, e pra lavar as mãos e fazer xixi tem que pedir a chave pra gordinha que limpa o chão. Mas tudo bem; de estômago cheio, voltamos pro carro e viemos embora.

Ainda tivemos forças pra jantar na festa do santo padroeiro de Castelnuovo, inaugurando assim o circuito das sagras. Gnocchi com molho de ganso e torta al testo com lingüiça, na companhia do Marco e da Michela, que eu pensei que fosse ficar mais chata com a gravidez mas, ao contrário, desenchatizou.

Postado por leticia em 23:09

21.05.05

scrittura creativa

O curso de scrittura creativa foi muito maneiro. O palestrante é um palermitano novinho, careca alopético, com só um resquício de sobrancelhas, que lhe dá uma expressão muito engraçada. E eu adoro os sotaques sicilianos :)

O curso foi sobre autobiografia. Ele deu vários textos de autores que eu não conhecia, todos Ó-TE-MOS. E me diverti muito, apesar da turma ser grande demais.

Engraçado é ver que qualquer bando de gente junta demonstra mais ou menos a mesma estatística: tem sempre um engraçadinho, tem sempre um velho babão, tem sempre a senhora desocupada, tem sempre um deslumbrado, tem sempre um artistinha metido a estrela, tem sempre alguém que não entende nada de coisa nenhuma. Hoje foi assim mesmo: o primeiro exercício foi fazer uma lista de "eu me lembro...", seguindo o exemplo de um pastel que publicou um livro só com essas coisas, estilo 80's revival. O objetivo era misturar memórias coletivas (das quais não participo, lógico) e memórias individuais, e tentar dar um toque de ironia e graça no texto. Em vez de fazer a tal lista, a senhora desocupada escreveu um texto imenso sobre uma única memória, descrevendo com muitos floreios uma situação ridícula que não tinha graça nenhuma, uma coisa chatérrima. E aí fica aquele clima esquisito, todo mundo querendo rir, resmungando, ai que porre, ô, minha filha, se liga, e coisa e tal.

A amiga do meu aluno, que foi com ele, é daquelas chatas que fazem "aham!" ou "isso mesmo..." a cada coisa que o palestrante fala. E quando ele fala "a teoria do fulano é que X quer dizer Y", dez minutos depois ela levanta a mão e fala, "sabe o que eu acho, mas é a minha opinião, tá, eu acho que X quer dizer Y", como se tivesse descoberto a pólvora. Caraca, que coisa chata! Cada vez que a garota abria a boca era pra soltar uma palhaçada dessas, e eu já tava querendo dar um tapa na cara dela. Almoçamos juntos e eu não resisti e perguntei o que ela fazia da vida: atriz. Aaaaaaaaaaaah...

No mais, aprendi muita coisa legal – mais do que escrever, aprendi a ler certas coisas com um outro ponto de vista. Gostei muito, e daqui a alguns dias ou semanas deve chegar o certificado. Legal :)

Postado por leticia em 20:39

20.05.05

Vai por mim, a invenção/descoberta mais totalmente revolucionária dos últimos séculos não foi a penicilina. Nem o motor a jato. Nem o computador, nem a internet, nem os avanços genéticos. A invenção mais espetacular da história da humanidade é o spray anti-ronco.

Postado por leticia em 12:09

19.05.05

errata

A dicionárica Lu acaba de informar que serpillo em português é serpilho. É primo do tomilho, e creio que a rima não seja à toa. Mas deve ser o primo pobre, porque eu sempre fui a rainha das ervinhas e nunca-jamais-em-tempo-algum ouvi falar de serpilho. Fisicamente, um não tem nada a ver com o outro. Alguém nessa família andou pulando a cerca... ;)

Postado por leticia em 18:41

feste paesane

E já estão montando o palquinho e o barracão nos jardins aqui atrás de casa, pra Festa da Primavera. Do dia 25 até 5 de junho dormiremos ao som (altíssimo) daquelas terríveis músicas folclóricas e com o cheiro de lingüiça na brasa no ar.

O que nos lembra que as sagras já começaram, mas algo me diz que esse ano a comilança por aí não vai ser intensa como no ano passado, em que todo santo domingo comíamos em alguma sagra: sagra da pizza, do ganso, da cebola, da torta al testo, lembram? Melhor assim. O bolso e a pança agradecem.

Postado por leticia em 17:56

várias

Ontem fui dar aula, pela primeira vez, na nova sede da escola, em Perugia. Levei horas pra encontrar o prédio, porque a numeração tem um quê de esquizofrênico, mas acabei achando. Tudo novinho, limpinho, cheirosinho, uma beleza. Os chefes são um Antonio, que já trabalhou na sede de Ponte San Giovanni, e uma rechonchuda sorridente que já cansei de ver na escola mas a quem nunca fui apresentada oficialmente. Aqui é meio assim, quando você vai trabalhar num lugar novo ninguém te apresenta nem explica o grau de parentela entre as pessoas (porque SEMPRE tem algum grau de parentela), você vai descobrindo com o tempo, e não sem algumas gafes inevitáveis. Não tenho a menor idéia de quem sejam essas pessoas, nem de que tipo de relacionamento tenham com a escola, nem entre eles, que aparentemente não são de Perugia mas não têm sotaque forte de nenhum outro lugar que eu reconheça; não sei nada. Sei que cheguei lá e só havia eles dois, que me acolheram como se me conhecessem há anos, e já me botaram logo pra avaliar um teste em CD que tinham criado pra nivelar os alunos.

A coisa boa é que falou-se em muita coisa nova. Parece que finalmente alguém tá dando uma sacudida na mesmice didática da escola. Falamos de viagens com os alunos, de dublagem de vídeos (segundo eles, tenho ótima voz), entre outras coisas. Gostei, apesar da aula ter terminado às nove e meia da noite, quando a chuva já começava a cair outra vez. E apesar da enxaqueca, que estava dando os últimos sinais de vida, depois do golpe de amotriptan que tomou no dia anterior. Quando cheguei em casa Mirco tava de pijama, no telefone com o Moreno, tentando convencê-lo a deixar as lesmas pra outro dia porque ainda tava chuviscando. Acabou que foi o Moreno quem o convenceu, e lá foi o Mirco caçar lesmas no mato com Moreno e Stefano. Nem vou botar as fotos aqui porque dá um certo nojinho. Na próxima vez, se não estiver enxaquecada, eu vou. Deve ser emocionante, essa coisa de safári de lesmas.

Outra coisa boa: Valerio, o outro professor que vai me dar aulas de francês em troca de aulas de português, não vai mais deixar a escola, como tinha decidido. Agora no verão muitos alunos saem de férias e vamos ter tempo de nos dedicar às nossas aulinhas, uêba!

Outra coisa boa: amanhã à tarde e sábado o dia inteiro vou participar de um curso de escrita criativa em Perugia. Dica do S., um dos meus aluninhos queridos, que também vai participar. Depois digo o que achei, e o que acharam. Ah, acendam velinhas pra mãe dele, que tá no hospital, por favor. Não a conheço, mas ele é muito legal e a irmã, que veio no meu aniversário porque é mulher do outro aluno da turma, também é, clara indicação de que a mãe tem grandes probabilidades de ser legal também.

Outra coisa boa: descobri qual era o problema com a internet, e já foi devidamente resolvido. Coisinha à toa.

Outra coisa boa: finalmente consegui botar nos eixos a turma de Petrignano, aqueles do restaurante-hotel, aqueles que esquecem que tem aula e vão pra Parma, Milão, Pádua, sem me avisar nada, bloqueando minhas terças e quintas à tardinha. O mais velho, companheiro viúvo da mãe do rapaz e dono do hotel, já desistiu, mas o rapaz, que é simplesmente a pessoa mais gentil que eu já conheci na minha vida, prometeu que vai tomar tento e voltar a estudar direito. Hoje já cancelou a aula, mas tudo bem.

Outra coisa boa: domingo vamos a Bologna, pra uma feira de equipamentos e produtos pra meios de transporte – coisa de trabalho do Mirco; ano passado foi em Verona e foi legal, apesar de não termos visto nada da cidade. Dessa vez pretendemos dar umas voltas em Bologna, cidade que ele não conhece e que eu conheço pouco, mas adoro assim mesmo. Todo mundo adora Bologna. Come-se bem, a cidade é uma delícia, alto-astral, cheia de bicicletas e estudantes, os bolonheses são muito simpáticos (o único que foge à regra é aquele retardado do Leo, aquele traste com quem trabalhei na Toscana, com os Salames, no verão passado) e têm um sotaque bem gostosinho.

A coisa chata da semana é que eu queria ir à Dinamarca visitar minha prima Paola, e dar uma mão com as 3 creonças antes que ela fique louca, mas se a bosta do permesso di soggiorno, que em teoria sai amanhã, não ficar pronto logo, não posso sair da Itália. Não podendo confiar na data em que disseram que ia ficar pronto, não pude comprar a passagem pra Copenhagen. A coitada da Paola, que tem não sei quantos laudos de joelhos e crânios e colunas pra dar, deve estar enlouquecida. Burocracia é uma bosta mesmo.

Postado por leticia em 12:01

18.05.05

eca

Os tratores nas estradas e as moscas em casa são sinais de que o calor chegou de vez. Só que nos últimos dois dias tem feito um certo fresquinho, e chovido a cântaros. Mirco e Moreno tão doidos pra que pare de chover, pra poder catar lesmas no mato. Depois da chuva, elas saem todas assanhadas dos buracos onde normalmente vivem, que não tenho a menor idéia de onde fiquem, e como não são animais exatamente dinâmicos e ariscos, basta um pouco de paciência e uma lanterna pra encher o balde delas. Depois devem ficar em jejum de não sei quantos dias, pra depurar o intestino, dizem, e aí a técnica de cozimento e tempero depende de cada um. Desnecessário dizer que lesma é uma iguaria que eu jamais tive intenção de provar, não importa o quanto o Moreno encha o saco insistindo.

Postado por leticia em 17:31

17.05.05

mercadinho

Ontem fui "fazer compras" na Arianna. Ela não é, nem de longe, a mamma italiana média, mas não deixa de ser uma mulher italiana média, o que significa que a casa dela vive entupida de comida desnecessária. Toda vez que passo lá acabo levando um pé de alface fresquinha da horta, umas dúzias de ovos de galinha (ou de pata, se a pata estiver de bom humor), uma bistequinha de carneiro, uns peitos de frango que não cabem mais no freezer, uns pedaços de pizza feita em casa pra merenda de meio da manhã.

Já no domingo eu tinha avisado que no dia seguinte passaria pra medir a pressão da avó do Mirco e pra pegar a mudinha de serpillo, uma erva de cozinha, que ela tinha me prometido. Passei no final da manhã, e acabei levando pra casa uma dúzia e meia de ovos frescos, um potinho de ervilhas frescas colhidas da horta, um pouco de molho de tomate do domingo que tinha sobrado, e um saco de macarrão borboleta feito em casa, também do domingo, fresco, pra congelar. Entramos no papo de planta pra cá, planta pra lá, serpillo isso, serpillo aquilo, descemos pro quintal e papo vai, papo vem, acabei levando também mudas de rúcola selvagem, arrancadas a facadas de trás da moita de lavanda que o Leo derrubou de tanto cavar por baixo, umas mudinhas de um tipo de pianta grassa que ela roubou da IKEA há dois anos e pegou superbem na casa dela, duas plantinhas que dão flores o ano inteiro e eu nunca vi no Brasil, e mais um maço de rúcola selvagem, já grande, pra botar na salada. As favas ainda não estão prontas, as ervilhas ainda estão pequenas, as batatas idem, os tomates acabaram de ser plantados, salada eu já tinha em casa.

Antes que me perguntem, não sei o que é serpillo. É cheirosinho e usa-se pra assados, mas eu tenho em casa só porque gosto da cara dele mesmo, porque o Mirco odeia toda e qualquer ervinha na comida e eu só tenho permissão pra usar alecrim. Agora só preciso decidir o que plantar no grande vaso das tulipas, que já murcharam e só estou esperando que sequem de vez pra tirar os bulbos e levar pra Arianna plantar no quintal.

Postado por leticia em 17:27

16.05.05

êeeeeeeeeeeee!

E vocês tão esperando o quê, crianças, pra dar os parabéns pra Ane e pro Alfredo, que na sexta foram presenteados com a Isabella? Hein? Hein?

Postado por leticia em 16:10

Festa dei Ceri - Gubbio

Sábado à noite, durante a pizza, Roberta veio com a idéia de ir a Gubbio no dia seguinte. O namorado dela vai pescar todos os domingos, e Gianni e Chiara iam a Lucca visitar parentes, de modo que resolvemos ir eu, Mirco e Robertinha. Todos nós já tínhamos estado em Gubbio, mas nunca no dia 15 de maio, dia de festa na cidade.

Mas vamos por partes. Gubbio é uma cidade pequena (30 e poucos mil habitantes), que repousa no monte Ingino, e fica a uns 45 km daqui. Dela diz-se que é terra de doidos, e que pra provar que é maluco o visitante deve correr três vezes em volta da fonte mais famosa da cidade. As lojas de souvenir vendem certificados de maluco em meio aos tradicionais balangandãs cafonas que japonês e alemão adora. Estive lá pela primeira vez em 2002, com duas colegas de turma da Università per Stranieri, Susanne, suíça, e Lihn, vietnamita. Até rolou uma excursão com a faculdade no 15 de maio daquele ano, e não me lembro por que não fomos. Mas enfim, a cidade é lindíssima e há muito pra ver, mesmo fora da festa. Mas a Festa dei Ceri é, diz-se, a mais antiga manifestação deste tipo na Itália, e é uma tradição tão... singular, que os três "ceri", que já já explico, são o símbolo da região Umbria.

Mas então. O santo padroeiro da cidade é Santo Ubaldo, que morreu no dia 16 de maio de 1160. Desde então faz-se a festa no dia 15. A coisa consiste no seguinte, e depois vejam se neguinho não tem razão quando diz que todo eugubino (quem nasce em Gubbio) é maluco: há esses três "ceri" (pronúncia tchêri), que são uns negócios altos, de madeira, pesando 400 quilos cada um. Cada cero é formado por dois prismas octogonais encaixados um sobre o outro. No alto do cero empoleira-se a estátua de um dos santos que participam da corrida: Santo Ubaldo, vestido de dourado, São Jorge, de vermelho, e Santo Antônio Abade, de preto, nessa ordem. A corrida não é competitiva, ou seja, os santos chegam sempre na mesma ordem. O objetivo é simplesmente chegar o mais rápido possível na basílica de Santo Ubaldo, que fica lá em cima do monte – mas lá em cima MESMO. Cada cero fica apoiado verticalmente em uma plataforma, que é carregada nos ombros pelos ceraioli, que usam camisas de cetim com a cor do seu santo.

Os sites oficiais da festa dão duas explicações possíveis pra sua origem: uma é menos documentada e menos provável, e teria origens pagãs, em homenagem à deusa romana Cereres ou à deusa umbra (leia-se mais ou menos etrusca) Cerfus. A hipótese mais aceita é a de que a festa nasceu como homenagem ao bispo de Gubbio, o tal Santo Ubaldo, que parece que era muito querido. "Cero" é um jeito antigo de dizer "vela", o que torna possível que a origem dessa maluquice toda tenha sido simplesmente o fato de que o pessoal saiu em procissão, carregando velas, quando o bispo morreu. Eu ouvi outra versão uma vez, mas que não achei em nenhum outro lugar: que os ceri são "corridos" pela cidade porque historicamente alguém teve que correr pra levar uma mensagem ao santo, que estava em fim de vida, sei lá. Acho que me enganaram.

De qualquer maneira, a coisa toda é interessantíssima. O dia começa muito cedo: os capitães dos ceri são acordados às 5:30 ao som de tambores; esses dois são os responsáveis pela parte organizativa da festa. Às oito e meia, na igreja dos Muratori (pedreiros), os ceraioli participam da missa, e logo depois os santos saem em procissão, que atravessa as principais ruas da cidade, e termina no Palazzo dei Consoli, na Piazza Grande, onde os ceri, que ficam o ano todo enfurnados na basílica, já estão esperando. Às nove e meia toma-se o lanchinho da manhã, à base de peixe. Às onze, da Porta Castello (lembrem-se de que é uma cidade velha pra cacete e ainda há muros, portas, fortalezas, essas coisas), parte o desfile dos ceraioli, com bandas de música e coisa e tal. Aos quinze pro meio-dia os chefes da cidade, em roupas medievais, entregam as chaves da cidade ao Primeiro Capitão, um gesto simbólico pra lembrar a todos que por um dia o poder está nas mãos do povo. Dali os ceri descem as escadarias do Palazzo até a praça. Os sinos do Campanone, a torre campanária, começam a tocar, sinalizando o início da Alzata ("levantada"): a um sinal dos chefes dos ceraioli, esses últimos levantam os ceri, que ficam em posição vertical. E dali passeiam pela cidade, exibindo-se, e homenageando as antigas e tradicionais famílias de ceraioli. Antigamente quem participava da festa não escolhia o santo, mas era meio que forçado a carregar o cero do santo que apadroava a sua profissão: Santo Ubaldo é o padroeiro dos pedreiros, São Jorge, dos comerciantes, e Santo Antônio Abade, dos camponeses e estudantes. Com o passar do tempo e com novas profissões na parada, a coisa foi meio que passando de pai pra filho, como é até hoje: famílias tradicionalmente santubaldenses dão origem a ceraioli santubaldenses, e por aí vai.

Às duas da tarde os ceri são deixados perto de uma das portas da cidade, enquanto o pessoal vai almoçar. A farofada toda dura até as quatro e meia, cinco da tarde, quando novamente parte a procissão de Santo Ubaldo, percorrendo todo o itinerário da corrida e terminando na via Dante. Ali o bispo abençoa os ceri, que então, às seis da tarde em ponto, começam a corrida.

Nós chegamos às três da tarde, e deu tempo só de tomar um sorvete, dar umas voltinhas e tirar umas fotos, porque depois tivemos que sentar a bunda no muro da Piazza Grande pra pegar lugar. Essa piazza é uma das minhas preferidas entre todas as italianas que já visitei. Porque o Palazzo dei Consoli é lindíssimo, e porque a praça fica no alto da cidade, dando uma vista deliciosa dos telhados das casas antiqüíssimas, com suas chaminés, o musgo que cobre as telhas, as antenas de TV, ninhos de passarinhos. Lá no fundo, o vale, pouco habitado – perto de Gubbio não há nenhuma cidade maiorzinha, é uma desolação só. Mas então: sentamos no murinho e ficamos observando o pessoal passando lá embaixo na rua, todo mundo com a camisa da cor do seu santo e com o obrigatório lenço vermelho no pescoço. Estávamos bem embaixo da torre campanária, e quando os sinos começaram a tocar todo mundo esticou o pescoço pra olhar lá pra cima e ver os meninos, todos de calça branca e camisa colorida, tocando o sino gigantesco. É muito maneiro, mas depois de meia hora começa a encher o saco. A praça começa a encher, mas esperávamos mais gente. É porque, marinheiros de primeira viagem, não sabíamos nada sobre a história da festa. Gente tinha, até demais, só que a galera participa da festa o dia inteiro, e vai atrás dos ceri, enquanto nós ficamos plantados ali no murinho pra não perder o lugar e a visão privilegiada. Muita gente deixa escadas, daquelas que usamos pra trocar lâmpada e limpar janela, acorrentadas nas grades dos prédios da praça. Na hora da bagunça, sobem nelas pra ver melhor. Vai ser criativo assim na China, putz.

Às seis em ponto ouvimos um roaaaaaaaaaaaaaaaaaar, um barulho de Maracanã lotado, de público de show do U2 ao ouvir os primeiros acordes, uma coisa assustadora – mais ainda porque vinha láaaaaaaaaaaaa de baixo, porque a corrida começa numa rua paralela à que passa logo abaixo da praça. Lá longe, na Piazza 40 Martiri, vemos aqueles negócios estranhíssimos, com os santos coloridos aboletados em cima, passando numa velocidade impressionante, e aquele murundu de gente colorida seguindo atrás, correndo feito doidos. É coisa de maluco mesmo, porque não tem o menor sentido, mas vou dizer um negócio pra vocês: foi uma das coisas mais emocionantes que já vi aqui na Itália. Fiquei comovidíssima, a empolgação das pessoas é contagiante, e o fato de que não é uma competição, mas só uma maluquice mesmo, só torna as coisas mais interessantes. O percurso inteiro da corrida dura duas horas, e inclui umas pausas pra neguinho não cair duro de tanto correr carregando peso. Não sei como funciona direito, mas é um mega trabalho em equipe, porque quando o ceraiolo (é sempre homem, mulher só fica na torcida e olhe lá) sente que não agüenta mais, ele simplesmente larga o negócio e sai de baixo da plataforma, sem nenhum sinal, sem avisar, sem pedir, porque sabe que alguém imediatamente o substitui. A expressão de cansaço e sofrimento físico no rosto dos ceraioli é impressionante. O grande lance da coisa é não deixar o cero cair, até porque levantar um tarugo daqueles não é brincadeira de criança. Se cair, os outros santos têm que esperar.

Mas então; depois da partida, entrevemos os ceri atravessando ruas e becos e desaparecendo novamente por trás de casas, e por um longuíssimo tempo não se ouve mais nada; sabemos que os ceri tão lá correndo, mas não vemos por onde, e de repente o roaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar vem vindo da rua que desemboca na Piazza Grande, onde estávamos, e lá vêm aqueles negócios esquisitos, com os santos balançando lá no alto, ensandecidos, pela praça. Aí é que entendemos onde tava todo mundo: tava era correndo atrás dos santos, porque junto com eles chegou uma cabeçada, mas uma cabeçada fenomenal. Os santos dão três voltas na bandeirona vermelha plantada no meio da praça, e seguem adiante, pra depois subir uma ladeira fenomenal, até chegar no cocoruto do Monte, onde fica a basílica.

Caramba, é MUITO maneiro. MUITO, MUITO, MUITO. Vale a pena de verdade. Se alguém aí tem intenção de vir aqui pro fim do mundo no ano que vem, faça de tudo pra conseguir estar aqui no próximo 15 de maio e ver essa maluquice.

Foi tudo perfeito: domingo, todo mundo descansado, Robertinha que é ótima companhia, o dia tava lindo, com sol mas com vento fresco, não pegamos trânsito (o que teria sido um horror porque a única estrada possível pra Gubbio é terrivelmente cheia de curvas, subidas e descidas, a ponto de ficar impraticável no inverno, se nevar demais), e na volta ainda paramos pra comer torta al testo, que em Gubbio se chama crescia (pronúncia crêsha), num quiosquinho tabajara que vende torta há quarenta anos. Negócio de família, é claro: uma velha no forno a lenha, cozinhando a torta, cuja massa é esticada em um testo, ou plataforma, de cimento e coberta com cinzas – não tenham nojo, por favor, é uma delíciaaaaaa; marido e mulher no caixa e alternando-se pra cortar fatias de queijo e de lingüiça na brasa, e um velho coroco encarregado de cortar, à mão (dizem que fica mais gostoso, eu não vejo diferença), mortadela e prosciutto crudo. Sentamos nuns banquinhos do lado de fora pra comer nossas tortas, as colinas verdejantes de trigo à nossa frente, vendo passar outra velhinha, que faz o trajeto forno-caixa duzentas mil vezes por dia carregando sempre uma torta de cada vez... Ô maravilha!

E então ficou combinado que queremos ver as outras festas umbras mais conhecidas: no fim do mês tem a Infiorata di Spello, que são aqueles tapetes de flor no chão da cidade (eu acho cafonérrimo mas diz a Roberta que a graça está em ir na noite anterior, pra ver o pessoal montando os desenhos com as pétalas), em junho tem as Gaite di Bevagna, quando a cidade inteira participa de uma encenação absolutamente realística da vida medieval, e acho que ainda tem a segunda edição anual da Quintana em Foligno, torneio medieval com cavalos, lanças etc. Perdemos o Calendimaggio, a festa tradicional de Assis, em que competem a Nobilissima Parte di Sopra (literalmente Nobilíssima Parte de Cima) e a Magnifica Parte di Sotto (Magnífica Parte de Baixo), mas a festa de Bevagna não quero perder de jeito nenhum.

Pra quem ficou curioso sobre a festa de Gubbio, mais informações aqui e aqui (ambas em italiano, sorry).


Postado por leticia em 15:49

15.05.05

Holly Golightly

Holly lifted her martini. "Let’s wish the Doc luck, too," she said, touching her glass against mine. "Good luck: and believe me, dearest Doc – it’s better to look at the sky than live there. Such an empty place; so vague. Just a country where the thunder goes and things disappear."

**

The instant she saw the letter she squinted her eyes and bent her lips in a tough tiny smile that advanced her age immeasurably. "Darling," she instructed me, "would you reach in the drawer there and give me my purse. A girl doesn’t read this sort of thing without her lipstick."


Breakfast at Tiffany's, Truman Capote

Postado por leticia em 09:17

14.05.05

...

Depois de um almoço tardio e uma sesta que durou das quatro às seis, resolvemos mover nossos traseiros gordos e passar na Arianna pra pegar o Leguinho e dar uma volta antes da pizza com Gianni, Chiara & cia. Demos de cara com os gansos da Arianna, que estranhamente estavam passeando pelo quintal como se estivessem passeando na ciclovia da Lagoa, observando a paisagem e coisa e tal. Não entendemos nada. Chamamos os cachorros e não ouvimos resposta. Demos a volta na casa e vimos Lucia, a avó fofa do Mirco, procurando os gansos. Ela tinha aberto a "porta" do cercadinho onde os gansos ficam durante o dia, pra pastar capim (aquele cercadinho com o guarda-chuva que serve de guarda-sol pra eles, se derem um scroll down acham a foto), entrou pra mudar a água da bacia, e quando levantou o olhar os gansos tinham picado a mula. Lá fui eu pastorear os gansos (que em italiano é palavra feminina, l'oca – plural le oche) de volta pro cercadinho, enquanto os cachorros observavam através do portão dos fundos. A coisa boa é que os gansos andam sempre juntos, então basta convencer um a voltar pro cercado que os outros vão atrás. Quando se separam, por culpa de algum obstáculo, entram em pânico, é de rolar de rir – me lembra aquela cena de FormiguinhaZ (ou seria A Bug's Life?) quando as formigas se desesperam quando a fila é interrompida.

Acabamos não indo a lugar nenhum porque o tempo estava horrível. Ficamos brincando com os cachorros no campo e colhendo (e comendo) favas na horta, enquanto Ettore e Arianna aumentavam a altura de todas as cercas da casa, pra evitar que os cachorros fujam à noite. Leguinho semana passada passou uma noite fora, namorando; voltou de manhã em estado bagaçal total e dormiu o dia inteiro. Leo toda hora faz isso, e ultimamente o Demo também. Desde que eu vim morar aqui, e muito antes do Leguinho vir, vivo enchendo o saco da Arianna pra cercar os cachorros – caramba, ela já tem uma cachorra aleijada em casa porque foi atropelada; do outro lado do campo tem uma estrada onde os carros passam voando, e todos nós sabemos que os cachorros vão muito além dessa estrada porque quando eu ia correr praqueles lados muito freqüentemente dava de cara com Demo e Leo voltando de alguma missão secreta. Todos os cachorros da casa, inclusive o Leguinho, desde que foi morar lá, já foram encontrados passeando pela cidade, ou em Assis, ou lá na casa do chapéu; já nos ligaram tantas vezes avisando que tinham encontrado os cachorros perdidos por aí que já perdemos a conta. Não sei o que se passa na cabeça de quem não entende, mesmo com todos esses sinais mais do que claros, que uma tragédia está por vir. Demoraram, mas finalmente, por pressão minha e do Mirco, resolveram cercar a casa, no ano passado. Só que o Leo é pequeno e cava por baixo de qualquer coisa ou se enfia em qualquer buraco e foge; o Demo é leve e pula por cima de qualquer cerca; e o Leguinho é preto e à noite, depois do jantar, quando Ettore vai fumar o último cigarro do dia na companhia da cachorrada no campo, é fácil pra ele se afastar sem que se perceba. Foi numa dessas que ele atendeu ao chamado uterino da namorada coletiva deles e deu no pé, pra passar a noite na gandaia. Agora vocês imaginem um carro vindo a 100 por uma estrada não iluminada e pegando de frente um cachorro de 40 quilos como o Legolas, preto e conseqüentemente invisível. Não só morreria o cachorro, mas muito provavelmente haveria feridos humanos também, e quero ver quem encararia os custos e a responsabilidade perante à lei. Realmente, lidar com gente ignorante é quase tão irritante, cansativo, exasperador, desagradável e impossível do que lidar com gente maluca.

Postado por leticia em 23:43

13.05.05

o último dos moicanos

Murilo tinha quarenta e poucos anos. Quantos poucos, exatamente, nem ele sabia – aliás, ninguém sabia nem mesmo que ele já passava dos quarenta. Seu cérebro se petrificara aos vinte anos, e ele permaneceu para sempre naquela idade mental. A coisa já durava tanto tempo que nem mesmo sua própria mãe, que ainda lhe pregava os botões e remendava meias, se lembrava de que ele já passava dos quarenta. Ele mesmo acabara se convencendo de que ainda tinha vinte, e comportava-se como tal. Ou vice-versa.

Murilo não trabalhava. Não só porque o conceito de ganhar a vida era algo de desconhecido para ele, mas também porque não sabia fazer nada. Nunca aprendera nada de útil, jamais fizera nada de útil ou interessante, de verdadeiramente interessante, em toda a sua vida. Mas essa era outra coisa que Murilo não sabia: de onde vinha o dinheiro para pagar certas comodidades. Nem ele nem ninguém sabia de onde vinha o dinheiro, mas também não interessava, assim como não interessava o fato dele ter passado dos quarenta. Porque era suficiente saber que Murilo era grisalho, estava sempre de óculos escuros de marca, sapatos pontudos de couro de crocodilo, calça jeans cujo preço exorbitante era justificado somente pelo poder de duas iniciais gravadas no bolso de trás, camisas bem passadas. Ninguém sabia também quem passava as camisas, mas isso também não interessava. O que interessava era que Murilo dirigia um Porsche prateado superhipermegaesportivo, daqueles colados no chão, que zuniriam nos seus ouvidos se pudessem fazer uso de todos os seus cavalos ao mesmo tempo – infelizmente não podem, as leis de trânsito estão aí pra isso mesmo. Murilo vivia em um centro habitado cuja velocidade máxima era limitada em 50 quilômetros por hora, mas mesmo assim nunca tivera poucos cavalos à sua disposição. Mudava de carro como mudava de camisa, mas a imaginação era pouca: já tivera uma BMW Z4, daquelas coladas no chão; Mercedes esportivas, daquelas coladas no chão; uma Ferrari, daquelas... Murilo era assim.

Agüentava as sessões de tiração de sobrancelha com a força e a coragem que só um macho de verdade tem. Horas e horas de bronzeamento artificial. Linha direta com o maior produtor nacional de gel para os cabelos. E, claro, cartas de felicitação da Philip Morris de vez em quando, agradecendo a preferência. Porque, como todos os outros espécimes de Homo sapiens tabacoscrotus, Murilo jamais, jamais saía de casa sem acender imediatamente um cigarro. Gostava particularmente de acender um Marlboro (coisa de cowboy moderno mesmo, coisa de macho que tem carro esportivo conversível e, conseqüentemente, o maior órgão reprodutor masculino da fauna terrestre e marinha) enquanto esperava o elevador. Batia as cinzas no vaso de planta do condomínio, e entrava. Ou então, para ser mais democrático e distribuir de forma mais justa o fedor nicotínico, às vezes usava as escadas, empesteando homogeneamente todos os três andares do pequeno edifício onde vivia com sua fêmea. Quando chegava ao térreo, apagava o cigarro no capacho, acendia outro e entrava no carro, inevitavelmente estacionado de modo a ocupar o máximo de vagas possível. Dirigia sempre assim: bem afastado do painel, para poder esticar o braço direito e dirigir com a palma da mão, o cigarro aceso displicentemente encaixado entre os dedos. O braço esquerdo apoiado na janela aberta, o vento se esforçando para mover os cabelos engomados, os óculos escuros combinando com a pele artificialmente morena, a fumaça se acumulando dentro do carro. Às vezes, esperando o sinal vermelho abrir, mudava o cigarro para a mão esquerda, que pendurava, cheio de charme, do lado de fora do carro. Por sorte jamais queimara nenhuma velhinha que passara ao seu lado de lambreta, mas também, se o tivesse, jamais perceberia. Poucas coisas percebia, o Murilo.

Aonde ia no seu Porsche prateado, nunca ninguém soube. Nem ele mesmo. Tampouco com quem tanto fala em seu celular último tipo, que tira fotos, transmite os melhores momentos de Inter x Juventus, e bate claras em neve ao mesmo tempo. Aquele que um clone de sua fêmea anuncia na TV, de biquini vermelho, com uma praia no fundo e sempre, sempre, o vento nos cabelos.

A maioria das fêmeas da sua espécie eram hipotrofiadas em muitos sentidos. Para não engordar, comiam muito pouco – a espécie ainda não se desenvolvera o suficiente para surgir sem glândulas sudoríparas, e fêmeas de Homo sapiens tabacoscrotum não gostam de suar, não, não, não, e conseqüentemente não se exercitam. Gostam de freqüentar academias, em conjuntos cor-de-rosa da Nike, maquiagem, argolas prateadas e cabelos soltos, mas jamais levantam sequer um polegar. Comendo quase nada, pouco a pouco desenvolveram uma hipotrofia de todo o sistema nervoso central, que quase sempre comanda um corpo miúdo, lordótico, cujo centro gravitacional não funciona na ausência de saltos-agulha. A imensa maioria das fêmeas desta espécie tem cabelos cor de mico-leão dourado, sobrancelhas arqueadas estilo Conde Drácula, a pele sem viço por causa da alimentação carencial (problema facilmente resolvido com cerca de 150 gramas de base e pó-de-arroz). Muito freqüentemente usam, além da maquiagem excessiva, perfumes sufocantemente doces na estação e na quantidade erradas, saltos ortopedicamente não recomendáveis, e, principalmente, lápis para contorno labial, sem batom. Muito freqüentemente também fumam, e obviamente lançam tanto as guimbas quanto os maços vazios pela janela do carro, o que as torna parceiras ideais para os machos de sua espécie. Como eles, também não fazem nada, nem nunca fizeram, além de falar no celular, e, como eles, também são imunes à passagem do tempo – a diferença é que normalmente tendem a se petrificar nos quinze anos.

Murilo era o último de sua espécie. Talvez tenha durado tanto porque fazia parte de uma minoria que preferia estrangeiras exóticas e vulgares em vez dos micos-leão dourados. Mas era o último de sua espécie. Gerações e mais gerações de inatividade cerebral, de bronzealmento artificial, de dores sobrancelhais suprimidas à força de puro poder mental, de conversas vazias sobre carros e louras micos-leão dourados, e principalmente de cigarro em espaços confinados (o carro esportivo de dois lugares, o elevador de pequenos edifícios familiares, o banheiro de restaurantes) esterilizou-os todos. Machos e fêmeas. Os espermatozóides, ocupados demais em ver quem tinha o rabo mais longo, também acabaram por sofrer atrofia, e não mais fecundavam os óvulos, mal nutridos e intoxicados pela tintura cor mico-leão dourado.

É assim que uma espécie entra em auto-extinção.

E todas as pacas mancas do mundo viverão felizes para sempre.

Postado por leticia em 19:26

12.05.05

the house of mirth

He caught her hand, and she felt in his the vibration of feeling that had not yet risen to his lips. "Lily – can't I help you?" he exclaimed.

She looked at him gently. "Do you remember what you said to me once? That you could help me only by loving me? Well – you did love me for a moment; and it helped me. It has always helped me. But the moment is gone – it was I who let it go. And one must go on living. Goodbye."

She laid her other hand on his, and they looked at each other with a kind of solemnity, as though they stood in the presence of death. Something in truth lay dead between them – the love she had killed in him and could no longer call to life. But something lived between them also, and leaped up in her like an imperishable flame: it was the love his love had kindled, the passion of her soul for his.

The House of Mirth, by Edith Wharton

Lindo, lindo, lindo. Os últimos três capítulos são absolutamente deslumbrantes. Mas preparem os lencinhos, porque rapadura é doce mas né mole não.

Postado por leticia em 19:25

11.05.05

porque bicho feliz são outros 500, né

Postado por leticia em 22:16

banana

Eu devo estar ficando muito velha mesmo. Porque ando de uma sentimentalidade ímpar.

Sempre fui chorona – choro de raiva, de tanto rir, de felicidade, de angústia depressiva, de dor, de cansaço – mas ultimamente a coisa anda passando dos limites. Ou então é o mundo que está passando dos limites, já não sei mais.

A história da cadelinha Preta, que não consigo nem reproduzir aqui pra não cair no choro outra vez, me fez, nessa ordem: vomitar, chorar e doar uns merréis pra SUIPA (falando nisso, doem, crianças, e adotem, se possível; sigam o exemplo da querida Marcinha, vejam que maravilhas de canídeos que ela trouxe para o seio de seu lar). Não posso nem imaginar nenhuma cena de bicho ou criança ou velho sofrendo sem chorar ou entrar em taquicardia. Em todo o filme A Queda, em meio a pedaços de corpos, cirurgiões empapados de sangue serrando pernas, e outras coisas deliciosas, a única cena que me fez chorar foi o doutor sei lá o quê entrando num hospital, presumivelmente abandonado, pra pegar remédios, e dando de cara com um quarto cheio de velhinhos doentes, sozinhos, largados, olhando pra ele em silêncio. Lendo Io Non Ho Paura (ainda não consegui ver o filme, caramba) chorava em todas as descrições do menino no poço. E o que me tirou a fome no domingo, coisa que quem me conhece sabe que é praticamente impossível porque eu consegui a proeza de engordar dois quilos no pós-operatório da remoção de um dente do siso – nada abala meu apetite – foi ver, no telejornal, a imagem daquele americano, Rocco não sei o quê, chorando e dizendo "I ain't killed anyone!" com voz embargada enquanto era levado pro corredor da morte. Acusado de matar a ex-namorada, foi condenado por provas de DNA analisadas pelo mesmo laboratório que, descobriu-se, já mandou gente inocente pra morte antes, e fala-se inclusive na possibilidade de tais "erros", se é que erros são, terem sido causados pela "pressão" exercida pelo governador do estado (no caso, a Virginia, e o governador é republicano, só pra constar). Caramba, aquilo acabou comigo. Não sei nada sobre o caso, e pode ser mesmo que o cara seja culpado, mas a mera possibilidade dele ter morrido inocente, ou simplesmente ouvi-lo chorando e dizendo aquela frase com aparente sinceridade, foi o suficiente pra me fazer afastar o prato. Que estava cheio de tagliatelle fatte in casa, diga-se de passagem. Né pouca merda não.

Mas tenho que admitir que sou mais sensível às causas animal, criançal e velhal. Não necessariamente, mas quase certamente, nessa ordem. Até de bicho asqueroso tenho pena, e imploro pra não matarem, se for possível, mas pra jogar pra longe de mim. Ultimamente há muitos, mas muitos gatos atropelados nas ruas, o que me leva a crer que não são bichos tão espertos quanto imaginamos, ou então têm um tesão que move montanhas. Caramba, que nervoso que me dá. Cada vez que vejo uma massa de pêlos achatada na estrada penso no Leguinho e fico com vontade de ir correndo na Arianna dar um abraço naquele monstro bobão. Tem um gato preto e branco que foi atropelado na bifurcação pra Perugia, na superstrada. Não foi achatado, mas deve ter levado uma porrada e caiu no acostamento. Isso foi há semanas. Eu vou a Perugia pelo menos duas vezes por semana, o que significa que venho acompanhando seu processo de decomposição com um misto de interesse e tristeza. Fico pensando se ele era de alguém, se morava na rua, se tinha amigos cachorros tipo o mongo do Leguinho, se estava a fim de alguma gatinha das redondezas (isso supondo que fosse macho), se comia restos de comida que neguinho às vezes deixa nos cantos pros bichanos.

Vou começar a investigar serviços de castração grátis por aqui. Tá na hora de castrar a Priscilla. Seus filhotinhos são uma diliça, mas quem vai garantir a saúde deles enquanto crescerem?

Postado por leticia em 21:43

10.05.05

haja...

Nos últimos dias fiz dois estranhos muito felizes com a minha incomensurável gentileza.

Semana passada, final da tarde, eu na labuta tradutória no computador, toca o telefone da sala. Atendo, uma vozinha educada de homem com língua presa (não esse que vira effe, mas presa que vira pguesa, sabe? Não era a "r moscia" italiana, era defeito mesmo) pedindo um minuto do meu tempo pra responder a algumas perguntas da pesquisa de opinião sobre a Coop, meu supermercado preferido. O tom de voz deixava muito claro que o dia tinha sido improdutivo e cheios de patadas telefônicas, e percebi que ele estava quase implorando pra que eu respondesse. Então resolvi ser boazinha (quando não querem me vender nada eu quase sempre sou) e pedi licença pra abaixar a televisão, que sempre fica ligada enquanto estou sozinha em casa. Ficamos uns bons dez minutos no telefone, ele repetindo aquelas perguntas bobas mecanicamente, de um a dez que nota a senhora dá à arrumação dos produtos no supermercado Coop que a senhora freqüenta, de um a dez que nota a senhora dá à preocupação da Coop com a ecologia, de um a dez que nota a senhora dá à disponibilidade dos funcionários Coop, de um a dez que nota a senhora dá às ofertas semanais dos supermercados Coop, e por aí vai. Respondi tudo rapidinho, com seriedade e sinceridade, ainda fiz umas piadinhas com algumas perguntas particularmente idiotas (quanto à sua atual situação econômica, a senhora acha que nos próximos doze meses vai piorar, se manter estável ou melhorar? Que raio de Vox Populi resolve botar uma pergunta dessas?), e como recompensa ouvi um suspiro de alívio do outro lado e um agradecimento longo e sincero – Lei è stata veramente gentilissima, signora, la ringrazio tantissimo!!! Buona serata e buon fine settimana!

E hoje à tarde, quando estava me preparando pra sair pra dar aula no restaurante, o telefone toca outra vez. Era um motorista de courier, que não conseguia saber onde ficava a minha rua, e precisava fazer uma entrega aqui. Eles fazem assim: se não conseguem descobrir como se chega a um determinado lugar, coisa que às vezes não é fácil porque as numerações são malucas e muitas vezes nem existem, eles catam na lista telefônica o número de alguém que more ali na área e possa dar explicações de como chegar. Calhou que o cara precisava fazer uma entrega exatamente no meu prédio. Tava perdido no centro de Bastia, e não sabia como vir parar aqui – compreensível, visto que Cipresso é uma fração de Bastia, mas sempre Bastia é, e, partindo-se do pressuposto que quem está em Bastia conhece a cidade, senão não teria nada o que fazer aqui, estima-se que sabe também onde fica Cipresso. Ou seja, nada de placas. O coitado do homem tava plantado em frente à Coop, e disse que já tinha dado várias voltas sem entender pra onde tinha que ir. Fui dando as direções enquanto ele ia seguindo adiante e descrevendo o que via: tô passando em frente ao cinema... Ah, tá, tô vendo a placa pros correios... Viro à esquerda, a senhora disse? Sim, tô vendo o edifício romano em restauração à minha esquerda... Padaria Mela, tô vendo, viro à direita... Tá, tô atravessando a ponte... Praticamente guiei o homem até a porta do meu prédio, coitado. Fiquei me achando A escoteira com a minha boa ação. Semana que vem é capaz de rolar uma velhinha pedindo ajuda pra atravessar a rua.

Eu sou paciente com quem merece. Com gente chata ou burra, e principalmente com gente chata E burra ao mesmo tempo, não consigo. Fora isso, eu sou a gentileza em pessoa. Às vezes.

Postado por leticia em 21:15

09.05.05

reino dos céus

Dia das mães aqui não é essa badalação toda como no Brasil. Como além disso a mãe do Mirco não tá nem aí pra coisa nenhuma, muito menos pro dia das mães, almoçamos lá ontem como almoçamos praticamente todos os domingos, e depois tocamos diretamente pro cinema. Chegamos tão cedo que ainda tava tudo fechado, coisa que nunca tínhamos visto antes. Como eu não tinha comido quase nada no almoço, por causa de uma coisa desagradável na TV que me revirou o estômago, acabamos indo tomar um sorvetinho básico antes do filme começar, inclusive como parte da preparação psicológica pro filme.

Porque eu não segui o conselho do meu irmão, que é um amor mas tem gostos cinematográficos completamente diferentes dos meus. E lá fomos nós ver Kingdom of Heaven, que aqui foi traduzido como As Cruzadas.

Tenho que concordar com a Mary em alguns pontos: o filme é bem produzido, bonito às pampas de se ver. Os figurinos são leeeendos, coisa que já havia notado n'O Gladiador – os brincos e tecidos são enlouquecedores. As paisagens são lindas, os cenários deslumbrantes, as cenas de guerra são maneiras, apesar de idênticas às d'O Gladiador. Mas pára por aí. Porque fora tudo isso o filme é UMA BOSTA. Que roteiro é esse, sem pé nem cabeça, com diálogos de meia frase por cabeça? Em um segundo o cara é ferreiro viúvo na França, no segundo seguinte descobre que é filho do fulano, no outro segundo está a caminho da Sicília, e meio segundo depois já está em Jerusalém, como se fosse assim, ele mora na Vinícius de Morais e quer chegar no Jardim de Alá, sabe, pertíssimo? Que raio de ritmo maluco é esse? Teria sido mais negócio botar tudo isso em flashback e começar o filme com o Orlandinho já dando espadada a torto e a direito em Jerusa. Do jeito que ficou, demora séculos pra engrenar, e muito pouco faz sentido.

E falando em Orlandinho... Até que ficou melhorzinho de cabelo comprido e barba, mas, convenhamos, vai interpretar mal assim na Maria do Bairro. Ainda bem que, com esse roteiro maluco, ele quase não fala nada. Melhor assim.

O melhor do filme é, definitivamente, uma fala do Orlandinho, quando o feladaputa bispo da cidade propõe que eles se convertam ao islamismo pra se salvar:

- O senhor me ensinou muitas coisas sobre a igreja, seu bispo.

Amém.

Postado por leticia em 20:59

08.05.05

vovó

Essa é a minha avó. Morreu jovem, quando meu pai era rapazinho, deixando 4 filhos e 1 filha pro meu avô criar. Além de ser linda de morrer, como é claramente visível, era uma mulher educada e requintada, e, sobretudo, modernérrima, muito à frente do seu tempo. Até hoje, em reuniões de família, fala-se muito dela – não só os familiares, mas também amigos e ex-vizinhos, e inevitavelmente todo mundo acaba chorando.

Sempre tive a impressão de que se tivesse vivido mais ela talvez tivesse virado uma grande amiga da minha mãe, que é outra que está muito à frente do seu tempo – e não sou só eu que estou dizendo; outro dia ela recebeu o telefonema de um ex-aluno (ela não dá mais aula há quanto, vinte anos?) que viajou o mundo com a Marinha, viu e compreendeu coisas que minha mãe já havia comentado séculos antes na sala de aula, e resolveu catar o nome dela na lista telefônica e ligar pra dizer o quanto ela tinha sido foda. Também sempre tive a impressão de que nossa família seria muito melhor hoje, em muitos sentidos, se ela não tivesse morrido tão jovem. Minha avó é a pessoa que eu mais gostaria de ter conhecido, no mundo inteiro. Meu avô até hoje só senta à mesa de frente pro quadro dela, na parede oposta da sala. Meu pai e meus tios dizem que ela foi uma mãe muito alegre, com uma intimidade com os filhos que naquela época era unheard of, mas eu vejo no seu olhar uma melancolia que, infelizmente, foi a única coisa que eu herdei dela.


Postado por leticia em 20:40

07.05.05

bigodim

Falei que fomos ver A Queda semana passada? Fomos no Teatro Pavone, em Perugia, que era um teatro e hoje funciona praticamente só como cinema, inclusive com sessões em língua original, em parceria com a Universidade para Estrangeiros da cidade. É incrivelmente desconfortável, mas tem o charme que só um teatro antigo tem, e ainda por cima fica no centro de Perugia, que é uma cidade deslumbrante.

Eu normalmente DE-TES-TO o assunto II Guerra. Por n motivos que não importam agora. Mas cismei que queria ver esse filme, e não me arrependi. Achei o elenco muito bom, e a escolha de não abordar a história, as causas, as filosofias da guerra foi acertadíssima. O filme é ótimo, muito realista, bem feito, a produção é acurada. Sai da mesmice dos filmes sobre esse assunto, definitivamente. Recomendo.

Postado por leticia em 20:47

04.05.05

Hear, hear

As três principais notícias do dia aqui na Bota são de arrepiar os cabelos.

Angelo Izzo, que há alguns anos estuprou, torturou e matou um monte de gente e estava devidamente preso, recebeu liberdade condicional por bom comportamento. A primeira coisa que fez quando saiu foi matar uma mulher e sua filha de 14 anos. A única pessoa que conseguiu sobreviver a um ataque seu e de seu bando, uma mulher que nas entrevistas parece ser muito esperta e justamente indignada até a raiz dos cabelos, só conseguiu sair viva depois de 30 horas trancada num banheiro sem ventilação e mais não sei quantas na mala de um carro porque se fingiu de morta, depois que Izzo a estrangulou e encheu de porrada. "Ele não é louco coisa nenhuma", ela diz. "Nem louco e nem bobo. Gosta de causar sofrimento aos outros, planeja tudo com cuidado. Não é louco. Doente, mas não louco, e não sei no que os juízes estavam pensando quando deixaram aquela coisa sair da prisão." A foto do então jovem Izzo algemado, acompanhado de policiais a caminho da prisão, mostra um cabeçudo de olhos claros, camisa listrada e um sorriso do qual nem Hannibal Lecter seria capaz. Mais aqui (em italiano).

Há 36 anos, uma bomba explodiu numa agência de um banco nem sei onde, matando 17 pessoas. Há várias hipóteses políticas, e exatamente por isso ao longo desses anos provas sumiram, pessoas calaram, e nada se descobriu de concreto sobre quem plantou o raio da bomba. Hoje saiu a sentença final: oficialmente, NÃO HÁ CULPADOS. E AS FAMÍLIAS DAS VÍTIMAS SERÃO OBRIGADAS A PAGAR AS DESPESAS LEGAIS QUE ROLARAM NESTES 36 ANOS. Você não leu errado, é isso mesmo. Não há culpados; a bomba se materializou do nada, veio andando com suas próprias perninhas, se escondeu na agência, apertou o botãozinho on/off e explodiu, tudo sozinha, de vontade própria. E as famílias das pessoas que nada tinham a ver com a história e morreram na explosão vão ter que arcar com 36 anos de despesas legais. Mais detalhes aqui (em italiano).

Como era de se esperar, a versão italiana sobre como morreu Calipari, que levava a jornalista comunista Giuliana Sgrena pra casa depois de semanas de seqüestro no Iraque, não bate com a versão americana. O carro que levava Sgrena foi baleado por soldados americanos, que dizem ter atirado porque o carro vinha em alta velocidade e não se identificou ao passar por essa espécie de blitz (blocking position). Sgrena rebate dizendo que não iam a mais de 50 km/h, que o blocking point era feito por soldados estressados, nervosos e mal treinados, e que acha que o alvo era ela, porque sabia demais (e é comunista e anti-EUA). Calipari era um fodão, chefe de departamentos de segurança e coisas do gênero, herói militar, e sua morte foi um baque por aqui. Mais ainda: segundo o relatório italiano, no relatório americano faltam muitas, mas muitas informações, omitidas propositalmente. Mais ainda: o carro, um Toyota Corolla, foi removido do local antes que sua posição exata pudesse ser determinada e fotos decentes batidas, de modo que não é possível determinar com exatidão a distância da qual os tiros foram feitos, a velocidade em que o carro vinha, a trajetória precisa das balas, etc e tal. Aqui (em italiano).

Nada mais me surpreende por aqui, juro.

Postado por leticia em 08:31

03.05.05

ui

Semana passada terminei L’Impero dei Draghi, de Manfredi, o mesmo autor da série Alexandros.

Cacete, que livro chato! QUE LIVRO CHATO! Penei feito uma mula pra terminar. Ô coisa mal escrita! Ô coisa cheia de chavões ridículos! Imaginava que não era uma Brastemp, mas o assunto era interessante – a suposta presença de soldados romanos na China láaaaa nos tempos de D. João Charuto, com todo o choque cultural que isso implicaria – e resolvi arriscar. O cara é professor de arqueologia, conceituado na área, e coisa e tal, fui na fé, achando que pelo menos aprenderia alguma coisa. Péssima idéia. Péssima, péssima, péssima. O livro se arrasta, acontece sempre alguma coisa mas é tudo tão ridiculamente descrito, pontuado com algumas frases de pseudo-filosofia chinesa aqui e ali, que às vezes eu sentia vergonha pelo autor. Tem que ter muita coragem pra publicar um negócio desses, com seu nome na capa. Pensando bem, olhando a cara do sujeito na foto que ocupa toda a traseira do livro, dá pra entender muitas coisas. A barbicha e a franjinha grisalha explicam tu-do.

Pra compensar e esquecer o trauma, comecei The House of Mirth. Só li algumas páginas e já estou adorando. Enquanto isso, Mrs Dalloway está ali quietinha me olhando com ar de reprovação. Comecei, mas não tive paciência de continuar. Juro. Vai ver que não é o momento.

Postado por leticia em 20:38

02.05.05

cats

Até esqueci de contar: Priscilla, a Rainha do Deserto Intelectual que é o interior aqui do Gabão, teve filhote! Foi no fim de semana passado. Esses são os filhotinhos com menos de 12 horas de vida:


E esses são os filhotes ontem, com uma semana de vida.

Não são uma coisa? :)))))

Postado por leticia em 17:54

01.05.05

primo maggio

Primeiro de maio aqui não é só um dia no qual não se trabalha, é festa mesmo. Normalmente os empregadores pagam um belo almoço pros funcionários. No caso das pequenas empresas, os proprietários, que trabalham junto com seus operários, não são tãaao mais ricos do que eles, e muitas vezes estudaram menos do que eles, normalmente participam do almoço. No ano passado comemos peixe em um restaurante especializado em outras coisas; o almoço saiu caríssimo e não foi nenhuma Brastemp. Esse ano, com as imensas despesas extras de tabelião e advogado pra transferir a oficina pro nome do Mirco, e com os dois primeiros meses do ano muito lentos em termos de trabalho, resolvemos economizar e investir no seguro: a comida da Arianna. Então ontem todo mundo foi almoçar em Santa Maria.

Chegamos às dez e meia pra dar uma mãozinha, a tempo de montar uma mesa imensa na garagem, onde é sempre fresco. Do lado de fora tava um calor desgraçado, e no campo ao lado da casa demos de cara com um cercadinho improvisadíssimo onde os gansos foram colocados pra pastar - juro. Faz bem pra eles (e economiza-se em ração) comer capim, então os bichos ficaram o dia inteiro ali no cercadinho, pastando e se refrescando numa bacia de água, e depois descansando à sombra de um guarda-chuva que a fofa da avó do Mirco teve a idéia de deixar aberto, apoiado no chão.

Depois foi o sólito catar pratos e copos de plástico, guardanapos, encher as garrafas com a água do filtro, passar o vinho dos garrafões de 5 litros pra garrafas menores, preparar os antipasti, descascar batatas. Os bichos já estavam no forno – ganso, frango, carne de carneiro e, tchan tchan tchan tchan, cabeça de carneiro. Com dentinho e tudo. Nada de porco porque há dois marroquinos no rol dos funcionários. Arianna já tinha feito dois pirex de Tiramisù e uma torta de geléia, a massa do macarrão tava pronta e era só passar na maquininha pra cortar em tagliatelle, a salada já tava cortadinha e só faltava temperar. O pessoal comeu feito louco. Só faltou o Hugue, um rapaz do Congo que é o novo aprendiz da oficina. O menino é uma gracinha, incrivelmente educado e calado, mas quando fala a voz que sai é forte como um trovão, com forte sotaque francês – ele ainda fala pouquíssimo de italiano, chegou na Itália só há alguns meses. Tem olhos bons e um sorriso que lhe ilumina o rosto inteiro. E tem o maior orgulho da carapinha: faz vir do Congo um produto pra deixar os minimicrocachos ainda mais definidos. Mirco brinca com ele dizendo que também quer usar, e ele responde, não, não, capelli non uguali, non uguali, naquela voz grossa. Na hora do almoço ele sempre toma banho no chuveiro da oficina, porque sente muito calor. E quando volta pra casa, de carona com o Ettore, vai todo bem vestidinho, de jaqueta de couro e tênis prateados. Outro dia Mirco veio dizer que ele sabia cozinhar, e perguntei o que é que ele sabia fazer. Ele disse que não adiantava explicar, porque eu provavelmente não conhecia nada. Ah, é? Vamos ver... Aposto que no Congo você comia muita banana, manga e mamão, mandioca e abacate e feijão. Ele arregalou os olhos e perguntou como eu é que eu conhecia essas coisas; não sabia que eu era brasileira. Depois começou a rir quando os marroquinos, lá do outro lado da oficina, falaram que quem come feijão fica perigoso por causa dos "fogos de artifício". O menino tem 18 anos mas é de longe o mais educado de todos na oficina, e o mais esperto também, pelo que o Mirco fala. Vai ser provavelmente o substuto do Dejan, o eslavo que vai embora mês que vem, pra prestar serviço militar obrigatório na Sérvia. Pois então, o Hughe não foi ao almoço porque tinha um batizado não sei onde, mas veio o Yavo, ex-funcionário, nativo da Costa do Marfim, uma figuraça que fala numa língua que só ele entende, mistura de francês, italiano, dialeto perugino e seu dialeto africano. Fala de religião o tempo todo mas é na boa, sem pregar, sem torrar a paciência. Ficamos lá batendo papo e brincando com os cachorros, que roíam os crânios de carneiro por baixo da mesa, até o final da tarde. Acabou sendo um almoço muito mais divertido do que o normal almoço de domingo na casa dos sogros, que ultimamente anda sendo um martírio pra mim.

Voltamos pra casa e vimos Man on Fire no DVD. Gostei muito, de verdade, ainda que eu ache que o Denzel Washington é igual ao Lima Duarte, representa sempre o mesmo papel em tudo que é filme. Ainda consegui sair pra correr enquanto o Mirco dormia no sofá, quando voltei tavam o Mario Belli (o dono da floricultura de S. Maria) com a noiva em casa batendo papo, esqueci de perguntar a ele se conhecia a minha planta misteriosa (já tirei foto, Lu, mas tô com preguiça de botar no ar, amanhã, amanhã), me empanturrei de iogurte em vez de jantar, e ainda tive saco pra terminar um livro muito ruinzinho antes de dormir. Mais tarde explico melhor.

Postado por leticia em 23:46