30.04.05

novas aventuras burocráticas

Eu não queria muito contar essa história, mas não resisto: na terça-feira depois do meu aniversário, bati com o carro. Foi em Perugia; eu tava saindo do centro, depois de uma aula com o Aluno Endocrinologista, e pegando a superstrada pra voltar pra escola e dar aula pros Três Mosqueteiros. Alguma coisa entrou no meu olho, um bicho, sei lá, perdi o controle do carro, subi no canteiro central, bati nos pés da placa que mandava ficar na esquerda quem queria ir a Perugia, Assis, Foligno, e direita quem queria ir a Arezzo, dei um giro de 180 graus e parei. Como um pouco antes tem um sinal de trânsito, e ali tem muito movimento e o trânsito é sempre lento, não me machuquei, e o cara que vinha logo atrás de mim teve mais do que tempo pra perceber o que tava acontecendo e meter o pé no freio. Comigo não aconteceu bissolutamente nada, só bati com a mão esquerda na porta (muito menos grave do que as topadas que eu vivo dando por aí), mas o carro ficou completamente detonado. Não porque a batida tenha sido violenta, mas porque a Fiat é mal feita pra cacete e quando subi no canteiro a parte inferior direita foi pras cucuias. O carro já tava velho, valia pouco, e não vale a pena consertar. Então peguei a Uno da oficina.

Mas tudo isso, que no final das contas não interessa muito, pra explicar a maratona que veio depois. Porque quando o seu carro sobe no telhado você tem que se desfazer dele de alguma maneira. Ou então juntar toda uma papelada e comunicar às autoridades competentes que o carro não vai ser mandado pra um ferro-velho autorizado, mas também não vai ficar abandonado no seu quintal, pegando chuva e funcionando como ponto de encontro pra ratos, insetos e afins. Porque é proibido, entende. Então você tem que ir ao P.R.A. (Pubblico Registro di Automobili), que é maaaaais ou menos como o Detran, levar as placas e os documentos do carro e mais um monte de chatices, e declarar o que você vai fazer com ele.

O problema é que todo mundo anda muito ocupado ultimamente, e não tivemos tempo de investigar direito o que tínhamos que fazer. O IPVA vencia amanhã, e a mulherzinha do Automobile Club Italiano me disse que tínhamos que entregar as placas antes do dia 30 pra não ter que pagar o imposto. Mas não falou nada dessa coisa da rotamazione (a destruição do carro), de ser obrigatório mandar o bicho pra um ferro-velho, nem de coisa nenhuma. Quando liguei pra central do ACI me disseram que se eu declarar que o carro ficar na minha garagem, não posso nem vender as peças, porque se vier um fiscal checar eu levo uma multa. Ora, o carro está em perfeito estado fora a parte batida, e afinal de contas a oficina não é especializada em carros mas sempre rola algum amigo que deu uma batidinha, ou então quebraram um farol, ou arranharam a lateral, ou uma pedrinha que rachou o vidro, e ter peças de reposição do carro mais vendido na Itália não seria nada mau. Mas não, jacaré, não pode. Ligamos pra todos os donos de ferro-velho da zona, todos clientes da oficina, e todos disseram a mesma coisa: quero o carro inteiro, senão pra mim não vale a pena, porque eu vivo é de vender as peças. Cacetes tatuados! A manhã passando e eu ainda na oficina, ouvindo o Mirco e o Ettore se esgoelando no telefone tentando entender o que fazer. No fim das contas alguma alma caridosa explicou que se eu fosse ao ACI pagaria 60 euros, e se fosse diretamente ao P.R.A., só a metade, e eles ainda saberiam explicar melhor a coisa toda. Essa alma caridosa já foi dono de ferro-velho, mas agora tem uma outra atividade que não sei qual é, mas de qualquer maneira se prontificou a resolver a situação – normalmente o ferro-velho COBRA pra fazer a rotamazione, e ainda por cima revende as peças do seu carro batido; esse não cobrou nada mas ficou com o carro. Tudo resolvido, lá fui eu ao P.R.A., onde já estivera outras vezes, pra entregar as placas.

Chegando lá, com procuração do Mirco e quinhentos documentos xerocados, me dizem que não posso fazer nada porque não sou a proprietária. Eram dez e meia da manhã e um cartaz avisava que em vez de fechar ao meio-dia e meia, ontem fechavam uma hora antes, por motivo de assembléia do pessoal. Fiquei sem saber o que fazer, expliquei pra mulher, que por sorte é muito prestativa, que tinha que resolver a coisa ali na hora senão teria que pagar IPVA tudo de novo, que o proprietário do carro estava rodando ali em Perugia (mentira) e eu poderia encontrar com ele e dar os documentos pra ele assinar (leia-se eu iria ficar fazendo hora sentada no meu carro e fazer um rabisco qualquer imitando a assinatura do Mirco), que do escritório da oficina poderiam mandar por fax uma xerox da identidade do Mirco, mas nada feito. Só faltei chorar através do vidro, até que um outro funcionário resolveu chamar o chefe, explicou a situação, e ficou resolvido que eu poderia fazer a coisa toda sim, desde que assinasse um certificado de proprietaria non intestataria, ou seja, que eu uso (usava...) o carro direto mesmo ele não sendo oficialmente meu. Agora me diz: por que raios todos os funcionários de uma repartição pública não têm as mesmas informações? Por que essa mania de cada um dizer uma coisa diferente? Ô coisa chata!

Felizmente consegui entregar e preencher e assinar tudo antes das onze e meia, senti uma pontada de tristeza ao ver as plaquinhas da nossa Punto querida jogadas ali em meio a muitas outras, e depois pra compensar fui direto pra Libreria Grande gastar meu gift certificate. Comprei Middlesex (Jeffrey Eugenides, o autor de Virgin Suicides), The Kite Runner (Khaled Hosseini), e o primeiro livro da série The No. 1 Ladies’ Detective Agency, de Alexander McCall Smith. E pronto.

Postado por leticia em 07:25

27.04.05

joão e o pé-de-feijão

E ainda no assunto plantas: há algo de muito estranho acontecendo no minúsculo círculo botânico que é a minha varanda da cozinha, que na primavera e no verão passa a ter algumas horas de sol de manhã cedo.

O lance é o seguinte: no meio do inverno plantei os bulbos de tulipa que a Stefania mandou da Holanda. Dois bulbos de tulipa negra (que todo mundo sabe que é roxa e não preta, mas é linda assim mesmo) eu plantei num vaso grande que está na varanda da cozinha. Na varanda do nosso quarto plantei dois bulbos de um outro tipo de tulipa que não me lembro qual é. As tulipas negras estão enormes e lindas, mas as outras levaram séculos pra dar as caras. De repente uma das plantas deu uma crescidona assim estilo adolescente que espicha, e virou uma coisa esquisita que não parece nada nada com tulipa. Mas tudo bem, eu gosto de plantas e não tive coragem nem de arrancar a coisinha estranha que nasceu no vaso onde ficava o defunto manjericão. A bichinha tá lá, amarradona, crescendo horrores, e com toda a cara de que vai dar florezinhas minúsculas. Mas então, essa pseudo-tulipa foi crescendo, e notei que na outra parte do vaso brotavam coisinhas verdes que não conseguiam crescer muito. Imaginei que fosse porque a outra plantona estivesse roubando espaço e nutrientes, e arrumei um outro vaso pra transplantar a plantona e deixar espaço pras coisinhas verdes. Semana passada comprei a terra, segunda-feira peguei uns cacos de cerâmica e um prato pro vaso na Arianna, e agora à tarde tomei vergonha na cara e sentei na varanda pra operação transplante.

Qual não foi minha surpresa quando, com terra até nas sobrancelhas e os dedos enfiados no vaso procurando a raiz da pseudo-tulipa pra tirá-la inteira, encontrei um caule imenso, larguíssimo e longuíssimo! Fui seguindo o tal caule e notei que ele dá voltas e mais voltas dentro do vaso. Fui tirando terra, curiosíssima, e achando mais centímetros de caule. Fui parar num murundu de raízes que ocupam praticamente TODO o vaso. Por isso que essa miserável levou tanto tempo pra aparecer do lado de fora! Eu achando que não tava rolando nada, que o bulbo tava hibernando, mas lá dentro da terra tava rolando a maior festa! Coitada da planta, imagina o tempo que ela perdeu dando voltas e voltas na terra, crescendo aquela infinidade de raízes malucas e sem sentido! Agora vou ter que comprar um vaso grande como uma banheira pra botar essa planta. Mirco vai adorar. Daqui a pouco não tem mais espaço pra gente na varanda, de tanto vaso...

O mais ridículo é que eu só acho o panfletinho da tulipa negra, que veio junto com os bulbos, explicando que espécie é, quando plantar, quanta água dar, essas coisas. Nada de panfletinho da outra planta. Então agora já não tenho mais certeza de que a plantona esquisita seja uma tulipa. Se for, não sei de que tipo é. E se não for, não tenho a menor idéia do que é. Mas se continuar crescendo nesse ritmo, daqui a pouco expulsa a gente de casa.

Postado por leticia em 15:42

26.04.05

prantas

Não consigo me acostumar com a idéia de ter que podar plantas. Entendo o mecanismo e concordo que faz sentido, mas não acho legal, sei lá. Tenho pena das plantinhas. Pra arrancar um raminho de alecrim só falta eu pedir desculpas à planta, imagina a preparação psicológica que não teria que rolar se eu tivesse que podar uma árvore.

No final do inverno começa o frenesi da poda. Por todo o lado vêem-se pobres árvores nuas, os galhos cortados até o talo; cercas-vivas que não parecem tão vivas assim, meio carecas que ficam depois da poda; arbustos que passaram o inverno secos e pelados e agora estão secos, pelados e cotós.

Mas começa a primavera e os primeiros brotinhos verdes começam a surgir, saindo muitas vezes diretamente desses cotos de tronco que ficaram. É engraçado, porque há um tipo de árvore muito comum por aqui, cujo nome desconheço, que tem um tronco estranho: chegando a uma certa altura, vira uma espécie de nó gigante, e dali partem os galhos, curvando-se pra cima. Quando podadas, essas árvores ficam reduzidas a um tronco seco com essa bolota em cima, com todos os cotoquinhos em volta, onde antes ficavam os galhos. Na primavera os brotinhos saem diretamente desses cotoquinhos, e o resultado é uma bola verde estranhíssima, até que os ramos cresçam e dêem uma aparência mais digna à árvore.

Eu não consigo podar nada. No máximo dou uma aparada no tomilho da varanda, quando vejo que tá ficando descabelado demais. Em uma semana ele dobra de volume. Mas mesmo assim fico com pena.

Postado por leticia em 15:30

25.04.05

uia

Feriados são realmente uma invenção maravilhosa. Só é chato quando o tempo não ajuda.

Além de ser feriado, hoje é o aniversário da minha prima dentista, a Erica. E ontem foi o aniversário de uma amiga querida, a Bebel, com quem estudei a vida toda no Andrews. Ontem me peguei pensando nelas enquanto dirigia, e do nada me veio à cabeça uma das muitas musiquinhas que nós, meninas criativas, escrevíamos no colégio. Essa de ontem, a única da qual me lembro do começo ao fim, escrevi com a Bebel e com a maluca da Patricia. A melodia não preciso nem dizer qual é. Vejam que primor.

Penso numa
paisagem muito bela
Abro a janela e dou de cara
com uma favela

Vejo os molequinhos se matando
E vem um logo me assaltando

Meu relógio não estava no seguro
Não recebi outro relógio
no lugar do meeeeeu

Cocaína, traficante, maconheiro
Que interessante

Vejo um assalto a banco,
é tão engraçado
que me faz chorar
de emoção

E todos vão roubar...

Cada moleque
vai se tornar um marginal
E isso aqui já é normal
Você sabe bem

E todos vão roubar...

Postado por leticia em 15:49

24.04.05

asparagi di bosco

Hoje é dia de praticar um dos mais populares esportes primaveris, colher aspargos selvagens. O tempo tá uma droga, mas não tá com cara de que vá chover. Ontem tava pior, e mesmo assim encaramos o Monte Subasio com os cachorros, a FeRnanda e a cachorrinha dela, a Dadá. Um vento que te levava embora, só nós, três retardados cachorrentos, no alto do monte, uma dor de ouvido do cacete, jogando garrafas de plástico pro Legolas pegar.

Hoje o plano inicial era ir a Florença dar umas voltas com Gianni e Chiara, mas eles desanimaram e resolvemos então ir catar asparagi di bosco lá em Bastardo, onde um colega de trabalho do Gianni mora. Como o tempo tá feio e o frio é quase de outono, não é perigoso. No calor, serpentes venenosas abundam entre os arbustos e caem das árvores dentro da sua camisa, então precisa enfiar as calças por dentro das botas e usar camisa de gola alta e chapéu, e afastar arbustos com um bastão, jamais com as mãos.

Eu juro que queria ir, mas, fêmea que sou, fui jogada pra escanteio. Mirco saiu às nove da manhã, e eu só vou ao meio-dia, com Chiara e Roberta, praticamente só pra almoçar. Melhor. Estou cansada e acho que tem uma gripe se esforçando muito pra me pegar. Ontem tava tão sem saco que nem fiz faxina, só passei o aspirador de pó igual à minha cara e mais nada. Agora são dez e vinte e ainda tenho que limpar o banheiro e transplantar uma tulipa estranha que está apertadíssima no vaso em que a coloquei, achando que cresceria para o alto e avante, esbelta como todas as tulipas. Mas essa é estranha e é toda repolhuda, ocupa tanto espaço que o outro bulbo, no mesmo vaso, ainda não conseguiu dar as caras. O detalhe é que o saco de terra ficou no carro, e cadê a vontade de descer pra pegar?

Caraca, deve ser a primavera que me pegou de jeito esse ano, como faz com tudo mundo aqui. Ou então são os cromossomos baianos herdados de vovô que estão se ativando pra me deixar leeeeeeenta.

Postado por leticia em 10:21

23.04.05

lula-lá

Não, não vou nem tocar no assunto do asilo político ao ex-presidente do Equador. Tenho vergonha. Falo de lula mesmo, o animal (pun intended).

Por algum motivo misterioso que desconheço, mas que muito provavelmente tem a ver com a igreja católica, aqui as peixarias só abrem às quintas e sextas. Pra felicidade do bolso da minha mãe e pra grande prejuízo da minha vida social, só fui aprender a gostar de frutos do mar aqui na Itália. Como consequüência, não sei cozinhar frutos do mar – praticamente só sei fazer peixe frito, que aqui é coisa quase desconhecida. Por sorte, todas as peixarias oferecem coisinhas já semi-prontas, ridiculamente fáceis de preparar, como espetinhos de lula e camarão, filé de peixe já empanado em uma mistura de farinha de rosca e salsinha (pra fazer na brasa ou então na panela forrada de papel-manteiga e com pouco óleo), peixes inteiros também já marinados, prontos pra ir ao forno. Os meus preferidos são o condimento per la pasta e l'insalata di mare. O segundo é, literalmente, salada de mar, e nada mais é do que pedacinhos de frutos do mar das mais variadas espécies, cozidos, temperados com azeite, alho e salsinha, com uns pedaços de azeitona pra dar um tchan e pra aumentar o volume (eu dou todos pro Mirco porque tenho pavor de azeitona). Come-se fria, como antepasto. No supermercado há várias versões em embalagens de plástico, mas normalmente envolvem vinagre na preparação, o que, pra mim, é praticamente sinônimo de incomível. O condimento per la pasta (literalmente, tempero ou molho pra macarrão) é uma mistura de salmão, camarão, mariscos vários, pedacinhos de lula e de polipetti (polvinhos pequenininhos muito comuns aqui), mini-lagostins, enfim, um pouco de tudo. É tudo cru, então é só botar numa frigideira com um pouco de vinho branco, dar uma cozinhada rápida e misturar ao macarrão. Ao contrário do meu pai, que acha que peixe só combina com batata, eu adoro massa com frutos do mar. Linguini allo scoglio, spaghetti con le vongole, pasta con le cozze, eu topo tudo. E essa misturinha deles é realmente una diliça. Compro quase toda sexta, quando tenho que ir a S. Maria resolver outras coisas.

Eu tenho aquele vício de pobre que é aceitar tudo o que seja oferecido de graça. E nessa já recolhi uma interessante coleção de mini-livros de receitas, que dão nos supermercados, na peixaria, às vezes em lugares insólitos, como na farmácia. Pois então, ontem estava inspirada e, imaginando que encontraria alguma receita interessante nesses livrinhos, resolvi fazer lula. Uma clássica receita de lula aqui é seppie e piselli, lula com ervilhas. Nada mais é do que o bicho feito como carne de panela, com molho de tomate e ervilhas. Nunca tinha feito em casa, mas resolvi arriscar. Primeiro foi um parto comprar o bicho, porque eu não sabia se comprava seppie ou calamari. Pra mim são iguais, a seppia é maior e os calamari são pequenos, mas a cara é praticamente a mesma. Claro que nada que tenha a ver com comida aqui na Bota é tão simples quanto parece, e o velhinho safado da peixaria foi logo perguntando o que eu queria fazer com a lula. Respondi que queria fazer com ervilhas, e ele indicou as seppie, que têm mais carninha. Perguntei qual a diferença entre um bicho e outro, e ele respondeu que os calamari são mais magricelinhos e portanto ficam melhores fritos ou grelhados (de fato, anelli di calamari fritti, anéis de lula fritos à milanesa, são um antepasto clássico). Ah, tá, então tá bom. Ele separou quatro belas seppie pra mim e paguei a conta: 21 euros por quatro lulas médias, insalata di mare pra duas pessoas e condimento per la pasta pra duas pessoas.

Ontem comemos o antepasto e a massa, e deixei as lulas pra hoje. Só que eu não achava o diabo da receita em lugar nenhum. Tudo bem que não deve ser tão difícil, mas com o preço das coisas é melhor não desperdiçar fazendo cagada, e também não queria detonar logo de cara minha primeira experiência no campo dos frutos do mar. Mandei um SMS pro Mirco perguntando se ele queria lula com ervilhas ou lula no macarrão, ele responde: sim. Eu sabia que ele tava numa conversa importante com o contador e por isso não tava prestando atenção em nada do que eu escrevia, mas mesmo assim insisti e mandei outra mensagem me explicando melhor. Ele responde: lula. Ora bolas, então vou fazer macarrão e dane-se.

Aí o outro parto: limpar os bichos. Um dos meus livrinhos grátis explicava como comprar, limpar e conservar os diversos produtos do mar. Dizia pra arrancar a cabeça da seppia que ela saía inteira, com os órgãos internos. Ou então pra cortar com uma tesoura os olhos e o bico, se os órgãos internos e o "osso" já tivessem sido retirados – era o meu caso. Cortar com uma tesoura os olhos de um bicho morto? Hipótese imediatamente descartada. Então, pedindo mil desculpas às pobres lulas, optei por arrancar a cabeça inteira mesmo. Não tive coragem nem de cortar os tentaculozinhos. Desperdício, mas sei que se tivesse insistido teria vomitado ali mesmo na pia da cozinha. Não bom. Lavei bem os corpinhos que parecem feitos de plástico branco, cortei em tirinhas de aspecto borrachudo, e refoguei com alho e azeite. Normalmente na peixaria eles dão salsinha de brinde, mas dessa vez esqueceram, e eu esqueci de pedir, e não tinha em casa, então foi sem salsinha mesmo. Dei uma molhadinha com vinho branco e deixei cozinhar bem. Juntei uns tomates-cereja pra dar uma cor e no final ainda joguei umas ervilhinhas básicas. Escorri a massa pouco antes de ficar al dente, joguei na frigideirona T-fal onde estavam as lulas, e deixei terminar de cozinhar ali, no molhinho. Um toque de gengibre, um peperoncino esmigalhado pra ficar levemente picante, e voilà! Ficou ó-te-mo.

Semana que vem provavelmente vou pegar uns filés de merluzzo (que descobri, não sem uma pontinha de horror, que nada mais é do que o bacalhau fresco), pra fazer enroladinhos com talvez uma cenourinha dentro. Ou então cozze (mexilhões), pra fazer com macarrão ou como antepasto quente, com molho de tomate e pimenta-do-reino. Ou então salmão, que faço no forno como minha avó ensinou, numa caminha de batatas e cebolas em rodelas e um tiquinho de manteiga. Ou então vou de lula de novo, pra fazer com arroz, como se come no Brasil e aqui nunca se ouviu falar.

Gostei do negócio. Limpar o peixe ainda é um problema grande, mas me empolguei com a parte da cozinha. Vamos ver se as futuras experiências vão funcionar.

Postado por leticia em 10:13

21.04.05

ainda os barnabés

Já agora, deixem-me assinalar aqui uma coisa que pode ter escapado ao pessoal no meio deste entusiasmo todo. Para a esquerda ateia e libertária Ratzinger não faz mossa absolutamente nenhuma. Bem pelo contrário, é uma escolha divertidíssima. Até já voltaram as missas em latim que George Brassens reclamava ("sans le latin, sans le latin / la messe nous emmerde")! Para quem Ratzinger é a pior de todas as escolhas é para os católicos moderados e reformistas. E não estou só a falar dos católicos de esquerda, mas dos próprios católicos liberais de direita: Pedro Mexia ou Andrew Sullivan compreenderam-no bem. E não é por serem menos liberais nem menos católicos. Mas claro que não é Mexia nem Sullivan quem quer: é preciso prezar mais o raciocínio do que o desdém pela esquerda, tarefa manifestamente esgotante.

Rui Tavares, aqui.

Tem mais. Leiam, por favor; eles são ó-te-mos.

Postado por leticia em 19:07

sem medo

Em duas manhãs de fila no banco, fila nos correios, fila no supermercado, sala de espera do contador, sala de aula esperando aluno, comecei e terminei Io Non Ho Paura (Não Tenho Medo), de Niccolò Ammaniti. Virou filme, que eu não vi, mas quero ver. Amei o livro, mas não sei explicar por quê. O estilo é firme, seco e direto, sem nove-horas nem metáforas malucas nem verbos fora de moda (minha irritação com essas coisas deve ser por causa de uma coisa estranha que andei traduzindo ultimamente e me deu um trabalho danado). O cenário é envolvente, embora geograficamente indefinido. A descrição não é excessivamente descritiva, mas eu vi os campos de trigo, senti o cheiro dos porcos malvados, sei como é a panela com maçãs pintadas em vermelho, sei que gosto tinha o macarrão com molho de tomate que o Michele jantou. Os personagens são fortes, os temores são reais, as dúvidas são coerentes, a solução é a única possível.

Pra quem não viu o filme, que se não me engano saiu no Brasil, é a história de Michele, um menino do paupérrimo sul da Itália nos anos 80, que acidentalmente descobre, lá na casa do chapéu, um buraco na terra, com um menino dentro. Mais não digo. Hoje não vamos pegar o DVD do filme porque tem Grissom no canal 6, e amanhã provavelmente rola cinema, mas espero vê-lo em breve, e digo se vale a pena.

Postado por leticia em 18:54

19.04.05

papamania

A Cora falou mais ou menos o que eu tava pensando. Ontem, voltando da última aula pouco antes das sete da noite, ouvi no rádio toda a expectativa dos ouvintes e do apresentador do programa daquele horário quanto à fumaça das sete. Assim que cheguei em casa liguei a TV e, batata, às sete e cinco a primeira fumata, preta. A primeira coisa que imaginei foi a seguinte cena: os cardeais todos reunidos, tomando taças de um bom Barolo e beliscando grissini de alecrim, tricotando e dando risada.

- Ih, já são quase sete da noite. Como o tempo voa quando a gente tá se divertindo, né não?

- É mermo... Mas não seria melhor soltar logo uma fumacinha? Coitado daquele povo lá fora, tá frio, vamo mandar neguinho pra casa, pra jantar... Olha que daqui a pouco tem mais gente lá fora do que no show do Vasco Rossi em Catanzaro, grátis, ano passado.

- Melhor esperar até o último minuto, caro cardeal Fulano. Timing is everything. Quando o pessoal já estiver reabsorvendo a adrenalina das sete da noite, no pós-clímax total, a gente solta a fumaça.

- Uns dois ou três minutos depois das sete, você quer dizer?

- Isso. E que não seja muito claro, de imediato, se é branca ou preta. Só pra dar uma confundida. Aí todo mundo vai pra casa jantar e assistir à microssérie Karol, Un Uomo Diventato Papa, que vai ao ar no canal 5 hoje às nove.

- Mas quando é que vamos finalmente revelar a existência do novo papa? Tem que ter cuidado pra não cansar a galera, cardeal Beltrano; não podemos abusar da boa vontade do povo... As novas gerações têm pouca capacidade de concentração, se a gente ficar adiando, adiando, adiando, só pra deixar o pessoal excitado, eles vão acabar cansando.

- Então amanhã às sete da noite. Não, às seis, quando ninguém estiver esperando. Você vai ver que ibope que vai dar. Nem o U2, que esgotou os ingressos pro show em Milão 25 minutos depois do início das vendas online, vai poder competir com a gente.

- Mas não é sacanagem com quem ainda tá trabalhando naquele horário? Talvez seja melhor na hora do jantar...

- Não, não. Pode interromper a digestão. Vocês sabem, carne grelhada, aspargos, pimentão... Melhor fazer antes, assim o pessoal vai parar de trabalhar quando os filhos ligarem pro celular avisando. Toda aquela agitação vai dar até mais fome na galera.

- É verdade. E assim pelo menos os telejornais vão ter tempo de se preparar. Às oito da noite todo mundo vai estar psicologicamente preparado, e vai jantar com os olhos colados na TV. Cês acham que pega mal eu botar meu boné da Nike?

- Não exagera, cardeal Tizio (fulano, em italiano). Bom, então tá combinado. Uma fumata ambígua agora, outras amanhã, e às seis da tarde a fumata branca.

- Beleza. E depois, habemus chester!

- Isso aí.

- Cool.

(uma rodada de high-fives)

- Vambora que eu tô com fome. Esses grissini são ótimos, mas engordam que é uma beleza. E esse azul brilhante do teto do Michelangelo tá me dando dor de cabeça.

Postado por leticia em 18:02

18.04.05

la fruttivendola

Morar em cidade pequena tem suas vantagens, com certeza.

Eu compro verdura e fruta na Rita, quando posso. Arianna compra nela há anos, e sempre que tenho que fazer alguma coisa em S. Maria, dou um pulo lá pra me reabastecer. Como eu consumo fruta e verdura só por obrigação moral, não vejo a diferença entre uma alface de supermercado e uma alface da horta, mas o Mirco é daqueles que em duas dentadas extermina, feliz da vida, um pepino, uma cenoura, um pedaço de aipo e um funcho inteiro, então evito comprar essas coisas no supermercado.

A barraca da Rita sempre ficou na praça da Banca dell'Umbria, ao lado do jornaleiro e de frente praquele monstro que é a Basílica. Com as obras na praça, que alteraram todo o trânsito e embolaram o meio de campo de um modo assustador, ela foi transferida pra pracinha dos correios, a duzentos metros. Mais cômodo pra quem compra, porque tem mais lugar pra parar. Outra vantagem é que ela agora está num quiosque moderno, com portas que podem ser fechadas, facilitando a vida dos pobres clientes que antes esperavam ao aberto, chovesse ou fizesse sol (ou pior, vento gelado). Ela mora aqui perto de casa mas nossos horários não batem e nunca nos encontramos.

A coisa legal da Rita é que ela não vende coisas que não estejam na estação justa ou que não estejam boas. A não ser os tomates, que hoje crescem praticamente em qualquer condição meteorológica. As coisas são todas fresquíssimas e ela dá várias dicas de culinária. Sempre pergunta o quê que a gente vai fazer com o que está comprando, porque, por exemplo, há berinjelas e berinjelas. Se eu peço uma berinjela, ela pergunta se é pra grelhar, pra fazer conserva ou pra fazer molho pro macarrão. Porque há berinjelas redondas, pretas, grandes, cor de berinjela, macias, duras, com semente, sem semente. O tomate é pra fazer molho, pizza ou salada? O cogumelo é pro macarrão ou pra grelhar? A cenoura é pra comer crua ou cozida? A maçã é pra morder ou pra fazer torta? A batata é pra fazer pirê ou pra fritar? A abobrinha é pra macarrão ou pra rechear? Hoje ela se recusou a me dar cebolas douradas, porque eram mais velhas. Acabei trazendo três das brancas e achatadas, mais incômodas pra segurar e cortar, mas mais frescas. Outro dia ela também se recusou a me vender mais de duas cabeças de alho (pra bruschetta ou pra refogado?), porque senão estraga, vai por mim. Alho, aliás, delicioso, nada indigesto, sem aquela coisinha amarga no meio, sem cheiro fortíssimo nas mãos.

Ela também dá sempre de brinde, pra quem faz compras razoáveis, os odori – literalmente, os odores. Por odori se entende salsinha (prezzemolo), obrigatória pra quem compra cogumelo; hortelã (menta), pra quem leva alcachofras; cenoura e aipo (carota e sedano) pra todo mundo, pra fazer refogado. Excepcionalmente, quando há limão verde, ela guarda pra mim, ou então vende uma caixa inteira pra Arianna, porque sabe que uma parte vem aqui pra casa. Quando tem novidade, ela fica toda assanhada: semana passada tinha uns tomatinhos pequenos como os cereja, mas alongados, chamados datterini (ou tamarazinhas, porque realmente parecem tâmaras vermelhas), que ela torrou minha paciência pra eu comprar, no lugar dos tomates-cereja que compro levo. Mirco adorou, comeu quase chorando de emoção. Há alguns dias comprei também uns aspargos selvagens, que fiz com macarrão, mas estávamos cefaléicos ambos e mal curtimos o sabor. Tenho certeza de que em condições normais de temperatura e pressão teríamos adorado.

Agora é época de fava. Ainda não estão no ponto, e as da Rita são poucas e ainda pequenas. Em maio começa a colheita – metade da horta da Arianna é fava nesse período, junto com as alcachofras; abobrinhas, tomates, berinjelas, vagem e ervilha, só mais perto do verão. O grande lance da fava, que é consumida em quantidades industriais (e crua, por favor; eu prefiro como forma de molho pro macarrão, ou cozida com um pouco de tomate e pimenta, como antipasto) só na Itália central, é o queijo pecorino. È la morte sua, como se diz aqui – adoro essa expressão, que se usa pra dizer o que combina melhor com uma determinada coisa. Hoje a Rita me deu de presente uma cebolinha fresca, porque comprei um tipo de salada, plantado só e exclusivamente aqui na Umbria, e segundo ela essa tal cebolinha, la cipollina quella piccoletta, è la morte sua. Também ganhei um pouco de rúcola esquisita de folhas largas, que só o Mirco come.

Então tá, hoje o jantar vai ser salada. Foi a Rita que decidiu por mim.

Postado por leticia em 14:13

17.04.05

festa não-estranha, com gente exquisite

A festinha foi um su. O único convidado que não veio foi a Quarentona Estressada, que mora num buraco lá na casa do chapéu, na Toscana, e falta aula há mais de uma semana porque tá sem carro. Ganhei vários livros (lógico), gift certificate da minha livraria preferida (claro) e outras coisinhas fofas. Arianna fez pizza de vários sabores, todos ótimos, eu fiz crostino com o salmão da eowyn (brigada, amiguinha, é uma delícia!!!), brigadeiro e quadradinho de laranja, não tiramos fotos porque me recuso, não cantamos parabéns porque tenho pavor, me diverti a valer, como diz meu irmão. Acabamos resolvendo inclusive deixar os móveis do jeito que estão, porque quando vem cabeçada aqui afastamos o sofá pra um lado e a mesinha de centro pro outro, pra dar mais espaço. Gostamos da arrumação e vamos deixar assim por enquanto, por um período de teste (quem vê TV deitado acha ótimo, mas quem senta tem que dar uma torcida básica de pescoço pra poder enxergar a mulherzinha do telejornal ou o Grissom e suas larvas, por exemplo).

E hoje o tempo tava uma bosta, como aliás nos últimos dias; frio e chovendo sem parar, um porre. Dormimos e/ou enrolamos a manhã inteira, almoçamos na Arianna, voltamos pra casa, dormimos e/ou enrolamos de novo; nesse meio tempo falei no telefone com meu pai, minha avó, meu avô, e Valerrí de Parrí (saudades de você, amiga!) e com minha mãe no Skype. Vencida a preguiça, pegamos a sessão das 7 e pouco no cinema. Vimos Be Cool. Achamos muito mais ou menos, mas tem seus momentos. Se bem que, IMO, a melhor parte do filme é o close nas ancas biquinadas da Uma Thurman que pega sol num colchão colorido com vista pra L.A. Ela tem estrias nas ancas. Bastantes.

Postado por leticia em 23:49

15.04.05

porrada! porrada!

Quarta-feira eu estava no bem-bom do meu lar, traduzindo minhas coisinhas depois do almoço, quando o Mirco liga da oficina pedindo pra eu ir buscá-lo porque um marroquino ex-funcionário dele tinha entrado no escritório e lhe dado vários socos e pontapés.

A história é a seguinte: ano passado meu sogro, que é buono come il pane mas péssimo pai, administrador e dono de cachorro, emprestou uma bela grana a esse marroquino. Até aí nada de mais, se não fossem os seguintes poréns: ele sempre se recusou terminantemente a emprestar dinheiro à filha, que queria abrir um bed & breakfast; o marroquino em questão já tinha sido mandado embora e readmitido por ele mesmo mais de uma vez; o marroquino em questão vivia arrumando confusão com todo mundo na oficina, até mesmo com os outros marroquinos, que não o suportam; alguns meses depois de ter pego o dinheiro, e tendo pago só duas prestações, o marroquino em questão pediu demissão e picou a mula. E então o Mirco entrou com o advogado na história.

Essa semana, provavelmente, deve ter saído a decisão oficial de que uma parte do salário dele, na nova empresa onde trabalha, vai ser descontada pra saldar a dívida com o Ettore. Como ele sabe muito bem que quem articulou a coisa toda foi o Mirco, porque o Ettore não sabe nem o nome do país onde mora a filha, quanto mais pra que serve um advogado, volta e meia o marroquino em questão aparece lá na oficina pra ameaçar. Inclusive os Carabinieri já tinham sido notificados, porque uma vez o marroquino em questão apareceu por lá ameaçando o Mirco de morte, entre outras coisas desagradáveis. Dessa vez ele entrou na oficina, porque o Ettore, que além de tudo aquilo lá em cima é teimoso feito uma mula, insiste em deixar o portão aberto, invadiu o escritório, onde o Mirco tava de costas pra porta, falando no telefone, e começou a porrada. Levou um soco só, o primeiro que o Mirco deu em toda a sua vida, e deu vários – porque infelizmente o imigrante, em certos aspectos, é mais bem protegido pela lei do que o italiano, e se o Mirco revidasse seriamente iria perder a razão. Conseguiram segurar o cara, que ainda falou alguma coisa em árabe com os outros marroquinos – eles o detestam tanto que contaram pra gente que os ameaçou caso testemunhassem contra ele.

Quando cheguei na oficina, os Carabinieri tavam lá anotando tudo, fomos ao hospital em Assis e ontem de manhã o Mirco foi entregar a denúncia formal e o relatório médico. Não houve nada de particular: contusões, hematomas, dor na nuca e leve tonteira, e dor no esterno, porque foi onde ele levou o soco mais forte, mas nada de ooooooooh. Só que agora fica aquela coisa: eu já cansei de surpreender o Mirco tarde da noite na oficina, concentrado no trabalho, às vezes no escritório, às vezes dentro do forno, pintando. Pular o portão é sopa no mel; eu mesma já pulei mais de uma vez, inclusive cheia de casacos e cachecóis. Um cara desses, que não tem nada a perder, entra armado na oficina, ou então entra desarmado mas pega uma chave de roda qualquer dos carrinhos de ferramenta, e bye bye lanterneiro. Legal, né?

Postado por leticia em 07:31

14.04.05

:))))))))))))))

Postado por leticia em 09:48

13.04.05

níver

Então, meu aniversário tá chegando. Já pensaram no meu presente? :)

Normalmente detesto aniversário, e sinceramente não vejo muito o que comemorar, embora tenha que admitir que até o momento o ano tenha sido relativamente proveitoso. Mas ao mesmo tempo quero reunir os poucos e caros amigos que tenho aqui. Ainda não decidi direito o que fazer. Estou pensando em juntar umas vinte pessoas, eu e Mirco incluídos, aqui em casa, no sábado. O problema é o menu: não quero passar o dia inteiro pilotando fogão e me estressando no dia do meu aniversário, mas também não queria abusar da Arianna – Mirco sugeriu pedir a ela pra fazer umas pizzas no fogão a lenha do quintal. Sugestões de balacobaco são bem-vindas.

Postado por leticia em 09:45

12.04.05

linques

Cês já leram esses meninos? São bárbaros.

Via Diário de Lisboa, também ótimo.

Postado por leticia em 18:51

uia

Tirou as palavras da minha boca. Dá vontade de imprimir todas as fotos e guardar pra mostrar pra italiano bobo que diz que brasileira é linda. Pobre nunca é lindo. Pobreza, infelicidade, ignorância, dificuldades, doença, tudo isso enfeia. Feio que tem filho com feio acaba perpetuando o feio. E aí resulta na Miss Sergipe.

A Fernanda só não falou dos nomes das meninas, bizarros, cheios de kás, ipsilons, dáblius; nomes inventados, nomes pseudo-estrangeiros, nomes de personagens de novela. Tristeza, viu.

Postado por leticia em 08:55

11.04.05

porre...

O tempo virou, e feio. Um invernico, por assim dizer, no meio de uma estação que deveria ser mais temperada. Chove, venta horrores (bora de 135 km/h em Trieste), neve e mais neve no norte, mar agitadíssimo, frio. Aqui chove sem parar, e as sementes de manjericão, que plantei toda esperançosa semana passada quando achei que fosse esquentar de verdade, devem ter entrado em hibernação até segundo aviso. Os cravos, que já tinham começado a florescer, daqui a pouco apodrecem no chão da varanda. A única que tá achando legal é a tulipa, que curte o frio amarradona. Que bosta.

Postado por leticia em 15:04

o weekend dos mortos-vivos

Acho que nunca dormi tanto na minha vida como nesse último fim de semana. Na sexta-feira dei aula pra uma turma nova, um funcionário aposentado dos correios que, honrando a fama da classe, é mais lento que jabuti de ressaca, e uma estudante do último ano de Psicologia que nas horas vagas dirige uma agência de detetives particulares. A aula vai das sete e meia às nove e meia da noite, e no meio da coisa comecei a sentir as malditas facadas atrás do olho esquerdo. Logo a situação se deteriorou, principalmente porque o escritório da escola já tava fechado (damos aula no escritório de um engenheiro que passa a maior parte do tempo fora e nos aluga a sala) e não tinha como arrumar água pra tomar o remédio anti-crise. Lágrimas desciam do olho esquerdo, não de dor, mas porque algum oba-oba neural devia estar rolando por ali; eu não sabia mais nem o que tava dizendo, e quando a aula terminou só faltei ajoelhar no chão e chorar. Só que o sofrimento não tinha acabado: eu ainda tinha que ir a Perugia pegar uma latinha de tinta que o fornecedor da oficina tinha deixado do lado de fora do portão pra eu pegar (adoro esses provincianismos!), já que o Mirco tinha saído pra jantar com o Moreno, em estado de ansiedade intensa porque tá indo pra Argentina outra vez agora à tarde, do outro lado da cidade. Não sei como consegui chegar lá, e muito menos como consegui voltar pra casa. Mas consegui, e quando cheguei em casa me joguei na cama e chapei.

Mirco não chegou muito tarde, e eu ainda estava em estado de decomposição cerebral. Acordamos no sábado no nosso horário natural, um pouco antes das sete, e nos preparamos pra sair de casa. Dei aula das dez ao meio-dia pra outra turma nova, duas meninas muito legais e espertas; ainda fofoquei meia horinha com a Rossella, até que senti as pontadas retro-orbitais de novo e piquei a mula. Fazer faxina tava completamente fora de cogitação porque eu mal me agüentava em pé; fiz um risoto de aspargos selvagens que nem a minha cara, Mirco chegou às duas, comemos e fomos direto dormir – os dois com dor de cabeça. Eu acordei às sete da noite, tomei um caldinho de feijão instantâneo Maggi, cobri o Mirco que tava todo torto no sofá, tentei sentar pra escrever ou traduzir mas não dava, voltei pra cama. Acabei dormindo outra vez lá pras dez da noite. Eram três e meia da manhã quando o Mirco me acordou perguntando se eu não queria fazer companhia pra ele enquanto ele JANTAVA. Comeu uma piadina com salame e voltamos pra cama. Acordamos domingo às dez da manhã, coisa absolutamente inédita na minha vida. A cabeça ainda estava dolorida, mas dava pra suportar. Almoçamos na Arianna, fomos ao cinema ver After the Sunset (bobiiiiiinho mas divertidinho) e depois jantamos no chinês da via Settevalli com a Roberta e o namorado. Adoramos chinês porque é sempre tudo igual em qualquer restaurante que você for, custa pouco e ainda dão brindes ridículos na saída. Dessa vez peguei um anel de acrílico colorido e uma coisa estranha pra pendurar não sei onde.

Pensamos em pegar um DVD, mas algo nos dizia que não conseguiríamos assistir ao filme todo sem dormir. Não deu outra. Botei o timer da TV em 15 minutos e dormi antes de ouvir o puf! dela desligando...

Postado por leticia em 14:59

07.04.05

mau que nem pica-pau

A direitona de Berlusconi perdeu quase todas as eleições regionais do fim de semana passado. O quê que o Cavaliere fez, de birra? Demitiu todos os chefes regionais dos partidos que fazem parte da sua aliança ultradireitista.

Postado por leticia em 14:45

06.04.05

faz-me rir

No coração da fé católica do mundo, a peregrinação resultou, é lógico, em especulação. Em Roma tem gente vendendo garrafinha de água mineral a € 5,00. O cafezinho dobrou de preço. Os sanduíches estão pela hora da morte.

Isso é que atitude cristã. Gostei de ver.

Postado por leticia em 19:37

04.04.05

fotinhas

Algumas das fotos da viagem, aqui.

Postado por leticia em 16:17

03.04.05

ciao, inverno

A primavera chegou de vez. Eu sei porque a chegada da primavera aqui no interior da Birmânia traz sempre os mesmos sintomas, como se o mundo mudasse inteiramente: o gramado dos jardins atrás do meu prédio tá coberto de florezinhas brancas e amarelas que parecem ter sido polvilhadas ali, de tantas que são; ouvem-se crianças brincando no jardim e a vizinha gorda e fofoqueira chamando o cachorro, Jimmieeeeeeeeeeeeeeee!; à tardinha e no fim de semana a muvuca social no bar embaixo do prédio ao lado é intensa; as pessoas andam tomando sorvete pelas ruas; a galera maneira da terceira idade já tirou as bicicletas das garagens e vai passer pela cidade, os homens de boina e paletó, SEMPRE, as mulheres de escova feita, meia-calça cor da pele e sapatos com meio-salto; estender a roupa no varal na varanda não é mais um suplício que termina invariavelmente com mãos vermelhas e doloridas e o nariz escorrendo por causa do frio; o sol esquenta mas a brisa é fresca; o radicchio, verdura invernal, começa a sumir dos supermercados e o que não sumiu fica mais caro, dando gradualmente lugar às favas, às ervilhas frescas, mais tarde às abobrinhas e berinjelas, e depois ainda aos tomates; o pessoal começa a reclamar do efeito que a primavera tem sobre a personalidade (aparentemente deixa as pessoas lentas e levemente melancólicas; definitivamente não é o meu caso); posso sair de casa com o cabelo molhado sem que a minha cabeça caia necrosada depois da primeira rajada de vento gelado; os cravos da varanda, que por todo o inverno se mantiveram verdes, firmes e fortes, agora estão dando flor adoidado; água mineral e chá gelado (de limão e pêssego) não vão mais entrar em oferta até o próximo inverno; as garotas-propaganda de telefones celulares na TV ainda não estão de biquini mas deixaram de lado os casacões pra usar jaquetas de meia-estação; morremos de calor no sol mas ainda dormimos com edredom de penas de ganso e ainda temos que ligar o aquecedor elétrico pra esquentar o banheiro antes de tomar banho; ainda não dá pra perambular pela casa sem meia, mas tamos quase lá; o pessoal começa a se organizar pra colher aspargos selvagens nos domingos de sol.

Hoje e amanhã se vota aqui na Itália. Mirco vota numa escola atrás dos correios, e hoje, depois do almoço na Arianna (cappelletti com recheio de ricota e espinafre e molho de aspargos selvagens com creme de leite, depois peru e cabrito no forno a lenha), demos banho nos cachorros, encoleiramos o Leguinho, que está OBESO de tanto chocolate que comeu na semana da Páscoa (o Ettore admitiu que lhe dá essas merdas pra comer: “ele pede, o que que eu posso fazer?” ARGH!!!), e fomos a pé até essa escola. Sentei com o Leguinho do lado de fora, pegando um solzinho enquanto lia meu Camilleri, e todo mundo que passava achava graça nele todo sério sentado ao meu lado, olhando pra porta da escola esperando o Mirco sair.

O assunto da Bota é, há muitos dias, a situação do Papa. Ontem estávamos jantando peixe na Chiara quando aquele asqueroso do Bruno Vespa deu a notícia na RAI 1. A família da Chiara é muito religiosa e foi uma choradeira só. Eu fico chateada porque fico chateada até quando vejo os percevejos morrendo torrados quando caem no lustre da sala, mas, sendo absolutamente contra TUDO o que o Papa e qualquer outro líder religioso representa, não consigo me emocionar como acho que deveria, ou pelo menos como neguinho espera que eu me emocione.

Enfim, vou tomar banho porque estou com cheiro de cachorro molhado, e depois temos uns pepinos da oficina pra resolver antes de tocar pro cinema, se der vontade.

Postado por leticia em 17:22

02.04.05

promessinha

Vou tentar botar umas fotos amanhã, tá? Pegamos as fotos do Gianni hoje, e se der tempo amanhã boto alguma coisa aqui. Umas geleiras bizarras, umas raposas, umas emas, umas cascatinhas básicas, tudo muito simples, só pra ajudar vocês a entender os posts, sabe.

Postado por leticia em 00:59

01.04.05

maravilha

Eu acabei não comentando, mas comprei e li vários livros durante a viagem. Vários mesmo. Em Foz comprei Água Viva, da Clarice, que é simplesmente uma das coisas mais chatas, chatas, chatas, chatas que eu já li na minha vida, e tive que me esforçar mooooito pra terminar. Li Bartleby (Melville) no avião de Ushuaia pra Buenos Aires, mas a monga aqui esqueceu o livro no avião. Pelo menos eu já tinha terminado a história. Na livraria ABC, na Florida, em Buenos Aires, comprei Mrs Dalloway, que acreditem ou não eu nunca tinha lido, e um livro novinho mas que estava na seção dos usados porque tinha um furo atrás, Boy – Tales of Childhood, autobiografia da infância do Roald Dahl, por ridículos 14 pesos. Na El Ateneo, maior livraria de Buenos Aires e simplesmente escandalosa de tão grande e well-supplied, comprei vários dicionários, e ainda por cima sorri várias vezes ao dar de cara com clássicos como A Bolsa Amarela e Raul da Ferrugem Azul traduzidos pro espanhol. Numa outra livraria cujo nome esqueci comprei um Stephen King ('Salem's Lot) em língua original por um preço ótimo, a edição do IV centenário de Don Quijote, um livro do Borges, um da Allende e o Bartleby y Compañia que o Alexandre tanto comentou que me deixou curiosa.

Mas isso tudo porque hoje o Papa tá assim digamos a ponto de subir no telhado, e honestamente não dou a mínima, e enquanto hoje eu tomava meu café da manhã li o seguinte capítulo, que transcrevo integralmente:

"The Headmaster, while I was at Repton, struck me as being a rather shoddy bandy-legged little fellow with a big bald head and lots of energy but not much charm. Mind you, I never did know him well because in all those months and years I was at the school, I doubt whether he addressed more than six sentences to me altogether. So perhaps it was wrong of me to form a judgement like that.

What is so interesting about this Headmaster is that he became a famous person later on. At the end of my third year, he was suddenly appointed Bishop of Chester and off he went to live in a palace by the River Dee. I remember at the time trying to puzzle out how on earth a person could suddenly leap from being a schoolmaster to becoming a Bishop all in one jump, but there were bigger puzzles to come.

From Chester, he was soon promoted again to become Bishop of London, and from there, after not all that many years, he bounced up the ladder once more to get the top job of them all, Archbishop of Canterbury! And not long after that it was he himself who had the task of crowning our present Queen in Westminster Abbey with half the world watching him on television. Well, well, well! And this was the man who used to deliver the most vicious beatings to the boys under his care!

By now I am sure you will be wondering why I lay so much emphasis upon school beatings in these pages. The answer is that I cannot help it. All through my school life I was appalled by the fact that masters and senior boys were allowed literally to wound other boys, and sometimes quite severely. I couldn’t get over it. I never have got over it. It would, of course, be unfair to suggest that all masters were constantly beating the daylights out of all the boys in those days. They weren’t. Only a few did so, but that was quite enough to leave a lasting impression of horror upon me. It left another more physical impression upon me as well. Even today, whenever I have to sit for any length of time on a hard bench or chair, I begin to feel my heart beating along the old lines that the cane made on my bottom some fifty-five years ago.

There is nothing wrong with a few quick sharp tickles on the rump. They probably do a naughty boy a lot of good. But this Headmaster we were talking about wasn’t just tickling you when he took out his cane to deliver a flogging. He never flogged me, thank goodness, but I was given a vivid description of one of these ceremonies by my best friend at Repton, whose name was Michael. Michael was ordered to take down his trousers and kneel on the Headmaster’s sofa with the top half of his body hanging over one end of the sofa. The great man then gave him one terrific crack. After that, there was a pause. The cane was put down and the Headmaster began filling his pipe from a tin of tobacco. He also started to lecture the kneeling boy about sin and wrongdoing. Soon, the cane was picked up again and a second tremendous crack was administered upon the trembling buttocks. Then the pipe-filling business an the lecture went on for maybe another thirty seconds. Then came the third crack of the cane. Then the instrument of torture was put once more upon the table and a box of matches was produced. A match was struck and applied to the pipe. The pipe failed to light properly. A fourth stroke was delivered, with the lecture continuing. This slow and fearsome process went on until ten terrible strokes had been delivered, and all the time, over the pipe-lighting and the match-striking, the lecture on evil and wrongdoing and sinning and misdeeds and malpractice went on without a stop. It even went on as the strokes were being administered. At the end of it all, a basin, a sponge and a small clean towel were produced by the Headmaster, and the victim was told to wash away the blood before pulling up his trousers.

Do you wonder then that this man’s behaviour used to puzzle me tremendously? He was an ordinary clergyman at that time as well as being Headmaster, and I would sit in the dim light of the school chapel and listen to him preaching about the Lamb of God and about Mercy and Forgiveness and all the rest of it and my young mind would become totally confused. I knew very well that only the night before this preacher had shown neither Forgiveness nor Mercy in flogging some small boy who had broken the rules.

So what was it all about? I used to ask myself.

Did they preach one thing and practise another, these men of God?

And if someone had told me at the time that this flogging clergyman was one day to become the Archbishop of Canterbury, I would never have believed it.

It was all this, I think, that made me begin to have doubts about religion and even about God. If this person, I kept telling myself, was one of God’s chosen salesmen on earth, then there must be something very wrong about the whole business."

Boy – Tales of Childhood (Roald Dahl)

Por tudo o que já li dele, sempre soube que foi uma pessoa extraordinária. Essa biografia revela que não só ele, mas sua família e sua vida também foram extraordinárias. Logo depois desse capítulo vem um chamado "Chocolate". Por isso tudo e pelas fotos e por tantas outras coisas, recomendo ardentemente que vocês leiam Boy. E tudo o mais que esse homem escreveu.

E essa transcrição dedico humildemente (ma non troppo) ao Cris Dias, pra ver se ele acorda pra vida e volta a escrever os ótimos posts polêmicos que sumiram do blog por razões perfeitamente compreensíveis, mas que fazem falta, ah, fazem!

Postado por leticia em 08:27