30.03.05

read, forrest, read!

Vocês repararam que já comecei a postar sobre a viagem? Os posts estão enormes, e por enquanto nada de fotos, porque as do Gianni ficaram melhores e ainda não nos encontramos pra eu poder copiar todas pro meu computador. Mas em breve, em breve. Aguardem e confiem.

Postado por leticia em 14:12

28.03.05

Chegamos ontem no final da tarde. Tenho tantas coisas pra fazer, tanta roupa pra lavar, passar, dobrar, guardar, trazer da garagem aqui pra cima, levar do armario la' pra garagem, tanta foto pra postar, tanta coisa pra dizer, que nem sei por onde começar. Hoje nao tenho tempo de fazer nada direito, acho, e amanha é dia de faturaçao na oficina, mas assim que der escrevo e boto fotos. Preparem-se. A baba vai escorrer direto das suas boquinhas, ja' to até vendo.

Postado por leticia em 15:56

23.03.05

Ushuaia - BsAs

Pra compensar o terror de ontem, dedicamos o dia às compras. Difícil escapar da compulsão consumista por aqui, quando o seu salário vem em uma moeda que vale 4 vezes mais que os pesos argentinos. A Tierra del Fuego é uma província com situação especial, e é uma zona tax-free. É CA-LA-RO que no final das contas os preços são mais ou menos os mesmos do resto do país, porque os vendedores aumentam levemente os valores, pra compensar a ausência de taxa, mas dá no mesmo. Então saímos comprando tudo. Horas perdidas naquele tal mall-like thing na San Martin. Compramos tênis Adidas baratos, meias, calças jeans, pullovers, cachecóis charmosos, um casaco pesado de lã pro Mirco, que normalmente só usa jaquetas esportivas, eu comprei uma bolsa de design clássico mas couro diferentão, compramos uma bolsona daquelas de levar tralha pra academia, da Nike, baratérrima, enfim, um pouco de tudo. Entulhados de sacolas, fomos almoçar no Opíparo, outra vez. Enquanto esperávamos a pizza e a massa, transferimos a bagulhada das sacolas pra bolsa da Nike, que virou bagagem de mão do Mirco. Ainda demos mais uma passeada em lojas de cafonices pra turista, onde Gianni comprou umas cuias de chimarrão pra dar de presente pra família.

Voltamos ao hotel, fechamos nossa conta, chamamos um remis, e quando estávamos abanando as mãozinhas dando tchau pra senhora o Gianni lembrou de confirmar que o transporte do hotel pro aeroporto estava incluído na diária, assim como o do aeroporto pro hotel. A senhora faladeira, porteña e paracula, fez um gesto com a mão, assim, como quem não quer nada, e disse, na sua voz de taquara rachada:

- No no, pagan los chicos!

Deixa pra lá, pensamos, sai menos de um euro pra cada um, não vamos nos lamentar. E fomos, todos espremidos entre malas e bolsas, rumo ao aeroporto. Felizmente não rolou stress turbulêntico na decolagem. O vôo foi chato e interminável, mas no fim das contas chegamos, às onze da noite passadas. Dois táxis pro hotel, porque as malas não cabiam em um só, e lá fomos nós pra rua Esmeralda – e pra uma enorme decepção hoteleira.

O hotel é quatro estrelas, mas é de uma cafonice ímpar. Não sei se demos o azar de pegar os dois quartos mais horripilantes do hotel inteiro, mas o fato é que o quarto do Gianni e da Chiara era minúsculo e todo velho, mas pelo menos o banheiro era mais ou menos decente. O nosso, maior, dava de frente pra Esmeralda. Não sei se já comentei, mas neguinho dirige em Buenos Aires muito, mas muito pior que em qualquer outro lugar do mundo que eu já conheci, inclusive Nápolis. Os ônibus passam a cem por hora, a qualquer hora do dia ou da noite. O barulho é insuportável. O ar condicionado não desliga e contribui com o barulho. O carpete (ewwww) é VERDE DIARRÉIA. O banheiro é do mesmo verde, a cortina é de plástico, a banheira de hidromassagem, que obviamente não funciona, é tão velha que o fundo é todo manchado, além da cortina de plástico há uma cortina de tecido, de babadinhooooooooos, "protegendo" o box, a porta, em arco, não abre toda nem fecha toda, o teto do banheiro, novamente em madeira e em arco, dá um aspecto de adega que é a última coisa que alguém espera de um banheiro, a luz do espelho não ilumina coisa nenhuma, e vem de dois lustres ridículos, em ferro batido com folhas pontudas assassinas, montados exatamente na altura dos olhos de uma criatura de altura normal. Mirco deu inúmeras cabeçadas nessas flores-lâmpadas, e ainda machucou a mão dando um soco de ódio bem em cima de uma dessas folhas pontudas de ferro.

Pelo menos tem TV a cabo. Juntamos as duas camas (o quarto era no esquema twin beds), dispensei os cobertores brancos de acrílico, encardidos (provavelmente não de sujeira, mas porque acrílico claro escurece mesmo) e feios, e dormi o sono pesado de quem sobreviveu à Pinguinera.

Postado por leticia em 23:41

22.03.05

Ushuaia - Pinguinera - ou o dia em que a pacamanca quase virou pacamorta

Tomamos café da manhã na cozinha da casa da senhora, e pudemos ver melhor o marido, que nos recebeu depois do jantar ontem à noite. Parece um pingüinzinho, mas é MUITO simpático e bonzinho. O café da manhã é aquele sofrimento pra mim, que normalmente como coisas salgadas: aqui, assim como na Itália, o menu do desayuno é doce, e inclui as malditas medialunas, que nada mais são do que croissants doces e sem recheio, e café com leite. Pelo menos a senhora descolou um leite frio com chocolate pra mim, e comi as medialunas com manteiga e com queijo e presunto que sobraram de Calafate, fingindo pra mim mesma que eram deliciosos croissants salgados.

O tempo tava uma bosta: o vento tinha parado de soprar desde a noite anterior, mas o céu tava nublado e com pinta de chuva. Decidimos visitar o Parque Nacional Tierra del Fuego pela manhã, e, se o tempo melhorasse, iríamos à tarde visitar a Pinguinera, a ilha do canal de Beagle onde os pingüins se reúnem pra botar ovos, cuidar dos pimpolhos antes de migrar pra climas mais amenos, pra bater papo, essas coisas. Chamamos um remis e fomos direto pro porto, reservar lugar na excursão pra Pinguinera, e depois pro centro de informação turística, na rua San Martin, onde tínhamos uma missão muito importante a cumprir: carimbar o passaporte com o carimbo da cidade mais ao sul do mundo. Também ganhamos certificados, provando que estivemos aqui nesse buraco. Nem sabíamos dessa história do carimbo; fui eu que, com meus olhos de lince, vi dois carimbos lindos no passaporte da senhora de Valencia que visitou Torres del Paine com a gente, e deduzi que teria algum centro de informação pra turista que nos dava as carimbadas. O melhor é que é tudo de grátis.

Dali fomos pro parque. O passeio de três horas com um remis custa cerca de 90 pesos, se não me engano, valor que dividido por quatro pessoas e novamente por quatro pra quem ganha em euro fica ridículo. Como é bom fazer turismo em país em crise! Mas enfim, não sei se era porque o tempo tava realmente muito feio e começou a chover, ou se é o parque que é meio assim-assim mesmo, sei que não achamos nada de oooooh. Fora uma lebre aqui e ali, uma ave de rapina imensa pousada num galho numa clareira e uns bichos esquisitos, a única coisa que vimos de diferente foi a castorera, um dique construído pelos castores. Aí vocês me perguntam: ma che cazzo fazem CASTORES nesse fim de mundo?

O negócio é o seguinte: lá pros idos dos anos 50, o exército argentino teve a feliz idéia de importar 25 casais de castores do Canadá, que deveriam ter dado início a uma próspera criação de animais pra exploração da pele, pra fazer casacos e jaquetas que protegessem contra os ventos patagônicos. Só que obviamente a dieta patagônica não é igual à dieta canadense, e alguma coisa na alimentação transformou o pêlo dos castores, antes longo e macio, em uma coisa dura e áspera e corta que não serve pra coisa nenhuma. Os militares, então, com sua mitológica presença de espírito e criatividade e visão do futuro, o que fizeram? Largaram os castores pra lá. Só que no Canadá quem mantém as populações de castores sob controle são os ursos, que certamente têm mais o que fazer do que procurar sarna pra se coçar nesse fim de mundo que é a Patagônia. E então aconteceu o óbvio: sem predadores, os castores começaram a se reproduzir loucamente, e a população aumentou demais. Virou praga, pior que baratinha francesinha. Pra piorar as coisas, o castor patagônico não tem predador, mas ele não sabe disso, e continua construindo seus diques, que nada mais são do que um modo eficaz de afastar quem gosta de castor no menu, como se nada tivesse mudado. Os diques, porém, inundam áreas antes secas, e secam áreas antes irrigadas pelo rio. As árvores morrem por falta de água ou por excesso de água. Tem mais: eles se alimentam da casca das árvores, que acabam morrendo se muita casca for retirada. Tem mais ainda: como os dentes dos castores não páram nunca de crescer, eles têm que roer madeira o tempo todo pra gastá-los, mesmo madeira que não serve pra comer. Mais árvores destruídas. Resultado: pra tentar acabar com a praga, o governo paga 5 pesos pra cada castor abatido. Só que 5 pesos não compensam os gastos com armas e munição, e muito menos o tempo e o esforço necessários pra caçar um castor, que não é bobo e só dá as caras fora do dique à noite. Legal, né?

Enfim, depois da tal volta no parque pedimos pro motorista nos deixar no restaurante Opíparo, quase de frente pro porto (Av. Maipú, 1255 – peçam pra ser atendidos pela Vanessa, que é boazinha e muito esperta e inclusive foi devidamente convidada pra conhecer a Itália), que tínhamos visto na noite anterior e nos parecera simpático. Acertamos em cheio: depois das devidas instruções, conseguimos comer massa al dente e pizza sem muito queijo, sem muito orégano e com um pouco de tomate extra. Felizes da vida com a barriga cheia, fomos a pé até o porto e pegamos o microônibus que nos levaria até a Estancia Harberton, uma espécie de fazenda, de onde pegaríamos a lancha até a Pinguinera. Pra chegar à Pinguinera, pode-se pegar um catamarã, que leva 4 horas e chega praticamente em cima da ilha, mas não deixa você desembarcar. Escolhemos a combinação microônibus + lancha porque assim poderíamos descer na ilha e caminhar entre os pingüins.

Além de nós, no microônibus, tinha um casal (ele mexicano e ela francesa), um outro casal de americanos, uma holandesa solitária muito boazinha, um casal de argentinos com uma bebezinha de colo, a Giuliana, LINDA e educadíssima, e a guia, Ana, com um caso grave de hemangioma no rosto, mas simpática. No caminho, paramos pra fotografar uma raposa que fazia cocô na beira da estrada, depois as árvores-bandeira, que ficaram tortas por causa do vento, umas vacas que passeavam por ali. Depois de muito sofrer com a estrada esburacada, finalmente chegamos à tal Estancia, que é absolutamente decepcionante.

Um pequeno aparte pra explicar a história da Estancia: um Thomas Bridge, órfão encontrado sob uma ponte e com um T bordado nas roupas e adotado por um pastor da igreja protestante inglesa, foi parar nas Malvinas pra catequisar a galera. Aprendeu a língua dos indígenas locais, gostou do clima e se mudou pro sul da Patagônia, onde fundou a primeira missão religiosa da região. Depois de alguns anos enchendo o saco dos índios de lá, voltou pra Inglaterra pra dar palestras nas universidades, conheceu a futura esposa, nascida na cidade de Harberton, e voltou com a coitada pra Ushuaia, onde fundou a tal da Estancia. Sei que até hoje a Estancia é administrada pela família Bridge, cujas últimas duas gerações agora vivem na cidade de Ushuaia e não querem saber muito da vida no campo.

Findo o aparte, voltemos ao nosso relato: montamos todos na lancha, que chamaremos de gommone porque o motor é montado numa base de fibra de vidro e borracha (gomma = borracha em italiano), e tocamos pra Pinguinera. Mesmo quando o tempo tá feio no mar, no canal de Beagle, que além de ser um canal é protegido por diversas ilhas, a coisa não é tão complicada. Mas pra uma lancha pequena como a nossa, sem motor de reserva, a viagem de dez minutos virou um pesadelo, porque o tempo virou em dois minutos. O céu nublado e chuvoso mas sem vento virou tempestoso, as ondas começaram a aumentar, a cobertura de plástico da lancha começou a voar com o vento, molhando todo mundo, e a Ana foi lá pra frente, onde eu tava, pra ficar segurando o flap que tinha se desamarrado. Meninos e meninas, não vos digo a altura dos saltos que dávamos a cada onda que a lancha enfrentava. Eu dei tanta porrada com as costas contra a armação de metal atrás de mim, a cada vez que descia de um desses pulos, que à noite eu me sentia como se tivesse apanhado. Chiara tava tão nervosa que nem chorava, agarrada no Gianni. O Mirco tava sentado à minha frente, e eu estava agarrada na manga esquerda do casaco; com a mão direita ele tentava segurar a Ana, que a cada salto da lancha perdia o equilíbrio, chegando a cair de joelhos no chão uma vez. A única que estava calma era a neném, por incrível que pareça, e o piloto, André, que se manteve tranqüilo o tempo todo, apesar da surra que levou das ondas, da chuva e do vento. Fiquei apavorada pela Chiara, que não sabe nadar. Dificilmente teríamos morrido afogados, porque as ondas ali no canal protegido nunca chegam a ser realmente altas, mas com certeza a água devia estar gelada, e se você bater com a cabeça em algum lugar e desmaiar, babau. Novamente não tive nenhuma reação adrenérgica, mas tive os pensamentos mais estranhos, coisas completamente nada a ver com a situação, a não ser por uma vaga lembrança dos tempos de curso de Botinho, na praia, no Rio. Pedimos pra voltar, mas já estávamos tão perto da ilha que não tinha sentido. Então seguimos adiante, e quando chegamos demos de cara com o tal do catamarã. Desembarcamos o pessoal mais highlander e nós quatro demos a volta com o gommone até a lateral do catamarã, pra ver se o capitão aceitava nos pegar. Ele logo disse pra gente que era a maior roubada, porque ele teria que encarar o mar aberto, e tinha uma tempestade chegando! Pelo menos no canal a tempestade fica muito limitada, e pior do que o que enfrentáramos não podia ficar. Ele chamou a Estancia pelo rádio (o rádio do gommone molhou e não funcionava) e pediu um barco maior pra vir nos pegar. Como iria demorar 20 minutos, eu e Mirco, mais calmos, descemos na ilha.

Com o vento que soprava, os pingüins não nos ouviam, e por isso chegamos muito perto. Mais perto inclusive do que deveríamos, porque há regras pra passear pela Pinguinera, e os limites que devemos respeitar são marcados com troncos de árvores pelo chão. Acho que a Ana, pra compensar o susto da viagem de ida, deixou que a gente abusasse um pouco. Os pingüins são foférrimos e graciosos, e a ilha é pequenininha mas toda coberta de árvores na parte interna, então deixamos a praia de cascalho e fomos seguindo a trilha subindo a ilhota. Ali a trilha é delimitada por corredores com corrimão de madeira, e há bancos de praça pro pessoal sentar e ficar observando os pingüins. Não eram muitos, porque a maior parte já tinha partido pra águas mais quentinhas, mas ainda havia alguns mudando as penas, e muitas mamães em seus ninhos-buracos, tomando conta dos filhotes que ainda não tinham crescido o suficiente pra encarar uma longa viagem. O mais estranho é ver esses pingüins saindo do meio do bosque. Pra quem sempre associa pingüim a iglu e iceberg, as imagens são lindas, mas bizarras.

A essa altura do campeonato o vento tinha levado embora as nuvens e o céu ficou limpo. O mar virou uma piscina. Um arco-íris apareceu lá do outro lado. Vimos o outro barcão chegando e descemos. Todo mundo embarcou nesse barco maior, chamado Flamingo; a Ana, completamente encharcada e morrendo de frio, montou no gommone, mais rápido, pra chegar logo à Estancia e trocar de roupa. Lá foram eles embora na lancha, e nós finalmente partimos.

Ou, tentamos. Porque nesses dez minutos de espera a maré desceu e o Flamingo encalhou. O marinheiro deu uma buzinada e o pobre do André, que já estava com o gommone quase na Estancia, teve que voltar pra tentar nos rebocar. Claro que não rolou, então desceu todo mundo do Flamingo outra vez, subiu no gommone e fomos embora. Pelo rádio, o Flamingo chamou um rebocador, que encontramos na metade do caminho. O rebocador achava que nós é que precisávamos de ajuda, então quando nos viu indo na direção da Estancia, deu meia-volta e começou a nos seguir! O capitão não entendia os sinais do André, que agitava os braços e apontava pra Pinguinera; lá fomos nós dar meia-volta outra vez, pra nos aproximar do rebocador e explicar que quem tava atolado agora era o Flamingo. Quando finalmente chegamos à Estancia, a pobre da Ana tava tremendo, e todos nós muito nervosos. Eu pelo menos desci na ilha, mas a Chiara e o Gianni, que tiveram a verdadeira crise de nervos só depois que o gommone aportou na ilha, não fizeram questão nenhuma de descer. E agora, mais calmos, fomos nos secar em frente ao aquecedor a lenha na minicafeteria precária da Estancia. Peguei a Giuliana no colo e fiquei dando voltas pela sala, lendo as legendas das fotos nas paredes, aprendendo a história da Estancia e contando pra ela, que me olhava como se estivesse prestando a maior atenção e se o assunto fosse interessantíssimo.

A viagem de volta, no microônibus, foi tranqüila. Fomos interrompidos só por dois touros que brigavam no meio da estrada, e não tinha buzina que os distraísse. Tivemos que esperar que os pimpolhos resolvessem continuar a briga em outro lugar pra poder passar. O motorista nos deixou no Opíparo, onde comemos tudo o que tínhamos direito, e dali direto pro hotel lilás. Nem comentamos o Incidente Pinguinera com a proprietária, senão teríamos que ficar contando detalhes até as cinco da manhã.

Postado por leticia em 23:16

21.03.05

El Calafate - Ushuaia

Acordamos mais tarde hoje, fizemos as malas, e acabamos tomando café sozinhos com o Pasqual, o cachorro da pousada, porque o Gianni e a Chiara fizeram o contrário e tomaram café cedo pra depois fazer as malas. Deixamos tudo pronto na recepção, fizemos o check-out, passamos no albergue pra devolver o abridor de latas que o Mirco tinha pego emprestado pra abrir uma lata de um quilo de pêssego em calda (ele é viciado em pêssego em calda), e pegamos um táxi até o centro. Fizemos as últimas compras: um casaquinho pra Chiara (Nativos, Aldea de los Gnomos, 10 - não riam, apesar desse nome ridículo a Aldea de los Gnomos é uma galeria aberta, e cada loja é uma casinha de madeira muito bonitinha), brincos, um poncho pra irmã do Mirco, quadros com motivos indígenas (Pueblo Indio, Av. Libertador, 1080); deixamos os filmes do Gianni pra revelar (ele tira fotos com a digital, que não é uma Brastemp, e repete algumas com a velha, que é ótima) e fomos almoçar peixe no La Vaca Atada (sempre na Libertador), seguindo a sugestão da dona da pousada. Não sei se é porque me acostumei a comer peixe e frutos do mar preparados do modo mais simples possível, porque italiano não gosta muito de incrementar o que já é gostoso por natureza, mas não achei nada do outro mundo. Pedimos uma salada fria de frutos do mar pra dividir, depois todos fomos de risoto de lula com açafrão, que infelizmente veio cheio de pimentão, e de secondo pedimos lagostins com molho branco com champagne e cogumelos, que também não era lá essas coisas e escondia todo o sabor dos lagostins. Demos mais uma voltinha a pé pra digerir, pegamos as fotos e voltamos pro hotel. O microônibus que deveria nos levar ao aeroporto tinha acabado de chegar, então carregamos as malas e nos despedimos de El Calafate. Queria ter passado pelo centro novamente pra fotografar umas casinhas e uns hotéis deliciosos que ficavam escondidos em ruazinhas transversais à Libertador, mas o ônibus fez outro caminho e passou pela parte nova da cidade, onde tudo ainda é areia e as casas e hotéis e pousadas sobem da noite pro dia.

Chegamos cedo ao aeroporto e o vôo saiu no horário. Só que não tínhamos ligado o nome à pessoa, por assim dizer: tínhamos ouvido falar dos ventos patagônicos, visto seus efeitos sobre os pára-brisas dos carros, sentido na pele a ventania em Torres del Paine, mas não nos preparamos psicologicamente pra turbulência que obviamente resulta desse vento todo, ao descer em Ushuaia. Quase chegando à cidade, as montanhas altas e nevadas visíveis como uma pintura vistas da janelinha, lagos e deltas de rios abaixo de nós, um dia lindo com poucas nuvens, e de repente tuuuuuuuuuuuuuuum o avião deu uma descida, mas uma descida, meus queridos, do tipo que rearranja a arquitetura de todos os órgãos internos, e depois uma super-hiper-megasacudida, e só parou de sacudir quando pousou. Eu confesso que, muito estranhamente, não tive nem taquicardia; minhas supra-renais deviam estar dormindo porque fisicamente não tive reação nenhuma. Os outros três quase infartaram, principalmente o Gianni e a Chiara que detestam voar e às vezes têm que se dopar pra dormir, quando o vôo é mais longo. As comissárias de bordo nem tchum, e depois vieram nos dizer que era normalíssimo – claro, só as bestas quadradas aqui não tinham feito a conexão vento patagônico + avião = turbulência arretada. Todo mundo desceu meio pálido do avião, mas fora isso, nada de mais. Lá fora, enquanto esperávamos o taxista pra nos levar ao hotel (incluído no preço da hospedagem), o vento só não nos levava embora porque somos pesados (eu e o Mirco porque somos gordos, Gianni e Chiara porque são altos). Uma coisa horrorosa. Lugar ideaaaaal pra mim, que ODEIO vento. Sapatinho que eu calço.

O táxi deu a volta numa baía, onde fica o aeroporto, e entramos na cidade. Uma coisa horrorosa. Favelão geral, só que na planície. A única diferença é que entre um barraco e outro, entre uma casa precária e um terreno baldio cheio de cacarecos podres, entre um container e casas inacabadas mas ocupadas assim mesmo, há uma casona enorme, ou um chalé bonitinho. Muito esquisito. E as cores? Casas lilás com telhado azul. Casas amarelas com telhado verde. Casas cor-de-rosa com telhado roxo. Casas vermelhas com telhado bege. Socorro! Vimos até umas casas revestidas com papel alumínio. Sim, aquele que a gente usa pra cobrir a lasanha no forno. Asfalto só em algumas ruas. Calçada, em nenhuma rua além da principal, praticamente. Cachorros em tudo que é lugar. Sinal de trânsito é coisa rara, ao ponto de virar ponto de referência, que nem aqui em Bastia. Poças d'água, crianças brincando nas poças, gente mijando na rua, uma coisa de louco. Os carros também são todos detonados e TODOS os pára-brisas são rachados. As pessoas são horrorosas e as lojas são feias, os restaurantes têm cara de sujos, uma coisa estranhíssima. Esclareço logo que quem deu origem à cidade foi uma penitenciária, que ainda existe e hoje é um museu. Tudo fez sentido.

O hotel é muito estranho. É uma casa amarelinha, no alto, longe do centro. Por dentro é tudo muito limpinho, perfumado, e lilás. TODAS AS PAREDES SÃO LILÁS. E as televisões dos quartos são ROXAS. E a roupa de cama e de banho é COR DE VINHO. A dona do hotel, que mora com o marido na casa logo atrás, em cuja cozinha tomamos café da manhã, é uma figuraça. Ela também é de Buenos Aires, e tem um jeito de falar muito engraçado. Logo de cara nos aconselhou a não pegar o famoso trenzinho do fim do mundo, porque segundo ela custa caro e o percurso é "mutcho cortito", não vale a pena. A mulher parece ser boazinha (o que não a impede de ser paracula, como veremos mais adiante) e fala o tempo todo, sem parar. Queríamos provar a centolla (pronúncia: centoja), um caranguejo imenso feio pra cacete que é a iguaria típica de Ushuaia. Ela nos recomendou um restaurante, Al Grande Chef, que segundo ela não é coisa de turista, é freqüentado pela gente do lugar. Então, depois de uma rápida volta no centro, de três pares de calças jeans pro Mirco (porque ele SEMPRE arruma algum lugar pra comprar jeans baratos, onde quer que vá, e não é maluquice mas porque ele precisa, já que basta uma espirrada de tinta pra destruir uma peça de roupa) comprados numa galeria onde com certeza voltaremos antes de ir embora, de um banho no hotel, tocamos pro tal restaurante.

Nosso garçom era vesgo, com queixo de barracuda, e incrivelmente simpático e bonzinho. O mais engraçado nessa viagem até agora é definitivamente a nossa comunicação com os garçons, vendedores e afins, porque eu abomino o espanhol e só entendo se falam muuuuuuuuuito devagar, mas não consigo dizer uma palavra em espanhol sem ter vontade de rir (porque me lembro logo da Maria do Bairro, de Topázio e outras bizarrices mexicanas); Mirco namorou uma argentina por algum tempo e fez curso de espanhol e acha que fala, mas não fala nada; Gianni e Chiara estudam espanhol no curso tabajara do Comune de Bastia, mas ele é totalmente desprovido de talentos lingüísticos e ela, que aparentemente tem facilidade pra coisa, teve poucas aulas, que não são suficientes pra tornar mais fácil a comunicação. Mas de qualquer maneira conseguimos: Mirco não queria peixe e pediu uma parrilla que nem tocou porque lhe veio um episódio lancinante de cefaléia, eu pedi truta com recheio de centolla e acompanhamento de legumes (gostoso, mas não gostoooooooooso), Gianni foi corajoso e pediu centolla crua marinada no limão, e Chiara foi de centolla à milanesa, que segundo ela tinha gosto só de queijo e mais nada. Na verdade a centolla tem gosto de kani-kama, ou seja, de nada. Mas pode ter sido porque não fomos ao Tia Elvira, que tem fama de servir a melhor centolla da cidade e nos foi recomendado pelo taxista que nos pegou no aeroporto.

O vesguinho arrumou uma aspirina pro Mirco, chamou um remis pra gente, e tocamos direto pro hotel de paredes lilás.


Postado por leticia em 20:25

20.03.05

Parque Nacional Torres del Paine, Chile

Acordamos às cinco da manhã. Na noitinha anterior, a dona da pousada tinha deixado no nosso quarto uma bandejona com bolo, garrafa térmica com café com leite, geléia e torradinhas. Tomamos café às 5:40 e às 6 o microônibus passou pra nos pegar. Pensamos que seria o mesmo esquema de ontem, ou seja, depois mudaríamos pra um ônibus maior, mas que nada! Passamos em vários albergues e hotéis e pousadas na cidade, recolhendo gente. Todo mundo meio sonolento, encasacado e cheio de comida na mochila, porque o dia seria longo.

A estrada é longa e tediosa, em linha reta, ladeada de desertos, com um carneiro aqui e ali, pastando os tufos de plantas ressecadas. A van era velha e sacolejava toda, e depois de uma certa hora ninguém mais conseguia dormir. Acabamos fazendo amizade com uma galesa boazinha mas muda feito um peixe, uma russa interessante que morava em NY, e uma suíça maluca e muito simpática. Depois de não sei quantas horas de viagem, finalmente chegamos à fronteira com o Chile. Aí começa a chatice: todo mundo desce da van, faz fila na casinha da Argentina, entra, dá o passaporte, olham todos os seus carimbos, carimbam felizmente na mesma página do enorme carimbo de entrada na Argentina, devolvem o passaporte, sai, entra outro. Sobe todo mundo na van de novo. Atravessamos alguns quilômetros de terra de ninguém, chegamos à casinha do Chile. Desce todo mundo da van, faz fila na porta da casinha, não pode entrar com certas coisas no parque, tipo salames e embutidos, frutas, etc, todo mundo começa a comer desesperadamente as bananas e sanduíches que tinha trazido achando que ia conseguir passar, dá o passaporte, carimbam, devolvem o passaporte, vai ali na esteira que vão revistar a mochila, confiscam uma banana, jogam no INCINERADOR. Sai, entra outro. Sobe todo mundo numa Besta, também com o pára-brisa rachado, fazemos três metros e paramos outra vez. É uma espécie de bar-lojinha de souvenir, um cabeludo surge não se sabe de onde e nos manda entrar pra trocar dinheiro, porque pra pagar o ingresso no parque tem que usar necessariamente pesos chilenos. Desce todo mundo da van, entram no bar-lojinha, trocam dinheiro e compram balas e chicletes, sobe todo mundo na van de novo, e continuamos.

Não chegamos nunca, é o que parece. A estrada é TERRÍVEL, nem asfaltada mas nem de terra, mas de pedras. Não falo de paralelepípedos nem de cascalho, mas de PEDRAS mesmo, de modo que pulamos feito cabritos por mais ou menos uma hora, as vozes saindo tremidas por causa dos pulos, enquanto o vento uivava lá fora e o tempo fechava. O Gianni tem hérnia de disco e acho que nunca sofreu tanto na vida dele. Na entrada do parque, a russa, a suíça e mais uma galera desceram, porque iam passar uma semana inteira fazendo trekking e dormindo nos hotéis e albergues do parque. Aliás, descobri que há um vastíssimo mundo de trekking que eu não conhecia, a literatura sobre o assunto é extensa, as lojas vendem infinitos modelos de casacos, calças impermeáveis e/ou antivento, tênis de trekking caríssimos. Fiquei tentada.

Entre os doidos que tinham feito aquela viagem imensa de ida pra ficar só um dia e encarar outra viagem enorme de volta, além de nós quatro, dois casais de espanhóis e a pobre da galesa muda. Depois de uma parada pra tirar fotos coletivas, montamos na Besta de novo e tocamos pra frente.

Vimos inúmeros guanacos, esses primos do lhama. Algumas emas também, cinzentas, camufladas contra o cenário de tons de cinza e terra. Depois de uma curva, no meio do nada, vemos o cabeludo na estrada, fazendo sinal de carona. Entra na Besta e se apresenta: é Daniel, nosso guia naquele dia. Paramos num laguinho pra tirar fotos em meio àquele vento fortíssimo, e quem nos esperava? Uma raposinha, zorro, em espanhol. Demos sorte, porque apesar de não ser rara, é arisca e normalmente prefere não se deixar observar. Ela ficou lá, deitadinha, os pêlos se agitando no vento, os olhinhos piscando, olhando muito séria pra gente enquanto o pessoal tirava fotos e mais fotos. Quando alguém abusava e chegava muito perto ela botava os dentinhos pra fora, mas com o vento não dava pra ouvir o rosnado. Linda, linda, linda!

Daniel explica que paine, na linguagem indígena local, quer dizer azul. As torres mesmo nós não vimos, até porque o tempo tava horrível, mas ele nos mostrou os Cuernos del Paine, ou chifres, coitados, que eu achei, pelas fotos que vi das Torres, ainda mais bonitos e interessantes. Com aquele céu tempestoso em cima, então, pareciam uma pintura.

Passamos por vários lagos e riachos. A paisagem é lindíssima; imagino que em um dia de céu limpo seja realmente de deixar você de boca aberta. O mapa que nos deram na entrada mostra inúmeras trilhas de trekking, algumas sobre as várias geleiras. O parque tem uma superfície de 242.242 hectares e foi criado em 1959. Em 78 foi declarado Reserva da Biosfera pela UNESCO. O folhetinho também fala das coisas que poderemos ver: o guanaco, o zorro, o puma, o raro huemul, em extinção, os cisnes, o condor. No verão a temperatura alcança máximas de 15º C e mínimas de 3º; no inverno vai de 8 a 2,5 graus. Os ventos predominantes sopram de oeste pra leste, e podem chegar a 60 km/h nos meses de outubro a março. Que sorte a nossa.

Paramos pra ver uma cachoeira, que molhou todo mundo naquele vento. Vimos um pato quebra-corrente, também raro, de cabeça vermelha, que se joga na correnteza como se fosse muito simples nadar contra aquela água forte e voltar pras pedras. A vista é deslumbrante e tiramos milhões de fotos, mas não foi fácil voltar à Besta, caminhando contra aquele vento maldito.

Já era hora do almoço e fomos comer numa espécie de pensão-restaurante tabajaríiiiissima no meio do parque. Eu tava sem fome e pedi uma sopa de frango, que veio com pelotas de pó pra sopas tipo Knorr, na maior cara-de-pau. Como sentamos todos juntos porque éramos poucos, acabamos finalmente conhecendo os dois casais de espanhóis, muito simpáticos. Os mais jovens eram de Barcelona, os senhores eram de Valencia, e falou-se muito da situação econômica decadente de Itália e Espanha e das gafes dos políticos de ambos os países.

Depois de comer continuamos até o Lago Grey, que tem esse nome porque é cinzento, pelo menos mais do que os outros lagos, que são azuis como o Lago Argentino. Pra chegar nele atravessamos uma ponte de madeira e cordas, daquelas que balançam terrivelmente. Subimos uma ladeira, olhamos pro alto e vemos periquitos dando escândalo, pousados no galho de uma árvore. Continuamos, e de repente vemos um murundu de gente em silêncio tirando fotos. Daniel logo faz shhhhhhhhhhh e vamos todos ver o que era: HUEMULS!!! São cervos, lindíssimos, estatisticamente considerados extintos. Em toda a extensão do parque só existem 50 exemplares, e nós demos a cagada de ver um casal descansando amarradão entre troncos caídos e o capim alto. Confesso que fiquei emocionada e por pouco não comecei a chorar. O Daniel trabalha no parque há seis anos e só tinha visto o bicho uma vez. São lindos, lindos, lindos.

Descemos a ladeira e damos de cara com a seguinte paisagem: uma praia IMENSA, de areia cinzenta, com um arbusto esquisito aqui e ali, inclinado pelo vento; uma massa de água cinzenta, e esses pedaços de gelo azuis boiando; ao fundo, as montanhas envoltas em nuvens e, supostamente, neve; láaaaa no fundo, a geleira, prima do Perito Moreno, que deu origem a esses pedaços flutuantes de azul. Meninos, não tem como descrever. Tem até foto no flickr, mas vocês têm que ir lá ver com os zóio que a terra há de comer. É bonito demais, e mais ainda porque é completamente surreal. Na praia de cascalhos, grandes pedaços de gelo esculpido pelo vento. O vento sopra sem parar e depois de meia hora afasta um pouco as nuvens; as fotos ficam melhores. A praia é longa e não chegamos até o final, de onde se vê melhor a geleira. Já tá tarde e é hora de voltar. Paramos pra ver uma moita de calafate, experimentamos as frutinhas, que têm gosto de amora e mancham a língua. O macho do huemul ainda tava ali quietinho, a fêmea já tinha ido embora.

Montamos na Besta e tocamos de volta pra casa. No caminho Daniel explicou que o puma, que infelizmente não deu as caras, é o único predador do guanaco no parque. Quando passamos pelos bandos de guanacos, um deles, que o Daniel explicou ser o macho dono do harém, logo vinha na nossa direção, botando banca. Se fosse um puma ou algo igualmente ameaçador, bastaria o guanaco-sultão levantar o rabinho: os outros do bando entenderiam o sinal e sairiam correndo em fila, porque eles sempre fogem em fila (e isso eu vi, porque algum sultão deve ter sido apressado e deu o sinal sem esperar pra ver se era puma ou não. Todos correndo ladeira acima em fila indiana, uma gracinha). No caminho até a saída do parque ainda vimos flamingos num laguinho.

A viagem de volta foi dura e longa e chata, ao lado da Chiara veio um israelense fedorento que ouvia música altíssima no walkman mesmo depois de ter caído no sono, e quando finalmente chegamos, já era meia-noite e eu não queria mais saber de nada. Os meninos foram papear com os meninos do albergue ao lado, mas eu tomei meu banho, escrevi no meu diarinho, e dormi vendo E.R.

Postado por leticia em 22:11

19.03.05

el calafate - perito moreno

Tomamos café da manhã praticamente feito em casa: pão quentinho, torradinhas deliciosas, geléias de pêssego e cereja feitas em casa que todo mundo adorou (eu não, tenho pavor de geléia), bolo de laranja e de chocolate, café com leite, suco de laranja, eu com meu leite + achocolatado. Preparamos nossos sanduíches com as compras de ontem, e às oito um microônibus veio nos pegar na porta da pousada. Descemos até a cidade, onde mudamos pra um ônibus normal (a pousada fica na parte alta da cidade, e ônibus grandes não seguram a onda das ladeiras de areia), e fomos direto ao Parque Nacional Los Glaciares. A estrada é bem longuinha e a paisagem é estranha e muda bastante quando se entra no parque: começa-se a ver estranhas árvores peladas, de troncos cinzentos e retorcidos, aparentemente mortas, mas com alguns brotos saindo daqui e dali. Muitas árvores derrubadas – os ventos patagônicos podem chegar a TREZENTOS E CINQÜENTA QUILÔMETROS PÓR HORA. Há tratores e caminhões fazendo obras na estrada estreita, e durante um período do dia, no meio da tarde, o trânsito fica proibido.

E aí acontece o seguinte: você vai vindo pela estrada, vendo aquelas árvores todas, aquelas montanhas com o topo pelado e o resto coberto de vegetação, e de repente, lá atrás de uma curva, vê uma coisa branco-azulada muito esquisita, boiando na água anil do Canal de los Témpanos, que cai no Lago Argentino, às margens do qual fica a cidade de El Calafate. O ônibus vai se aproximando, se aproximando, o negócio branco-azulado vai ficando mais visível mas ainda incompreensível, você vai ficando curioso, querendo entender, até que o ônibus pára e te deixa numa espécie de praça/estacionamento de ônibus e o motorista marca um horário pra você voltar e você sai descendo pelas passarelas e começa a babar, porque é uma coisa linda demais da conta, sô. Mas então, você tá ali tirando fotos e babando, tentando entender aquele azul de onde é que vem, quando de repente escuta um crack. Saca desenho animado, quando o coiote tá na beira de um precipício e a plataforma onde ele está se racha e começa a se separar do corpo da montanha e você ouve o barulho da rachadura se alongando? É aquele barulho, igualzinho, mas muito mais alto. E depois vem um barulho de tiro ou de trovão, e você não sabe de onde vem, e não entende o que é enquanto não vê um pedação da parte anterior da geleira se destacando e caindo na água anil do canal. Cada pedação monumental, e o barulho é assustador. A geleira é linda, e mais linda ainda porque fica no meio daquela água azul, e com montanhas verdes e árvores ao fundo. Ou seja, totalmente nada a ver. Então agora vou explicar como é que essa geleira consegue estar ali, já que não é tãaaaao frio (porque se fosse as árvores não existiriam, certo?). A explicação quem nos deu foi o guia do minitrekking, que conheceremos daqui a pouco.

El Calafate não fica tão no sul assim. Sua latitude equivalente no hemisfério norte é roughly a mesma de Londres ou Paris. Ou seja, em teoria o clima é temperado. Só que uma conjunção muito particular de fatores geográficos causa fenômenos estranhos, como essas geleiras malucas: como em todo aquele intervalo entre paralelos, ao redor da Terra, só existe a Nova Zelândia, além da Patagônia, os ventos que giram naquela faixa não só correm livres, sem obstáculos, como também carregam uma cacetada de umidade, recolhida da evaporação do mar. Quando os ventos, que normalmente correm de oeste a leste, dão de cara com os pequenos e delicados Andes, lógico que não conseguem passar direto como se nada fora. Encontrando aquelas alturas geladas, os ventos úmidos não têm outra alternativa que não nevar. Neva 300 dias por ano naquela zona, nas montanhas. Toda aquela neve que cai vai se compactando sob o seu próprio incrível peso, virando uma massa densa que, com os anos, vai virando gelo. Entenderam? NÃO É ÁGUA QUE CONGELOU, É NEVE QUE COMPACTOU. E por que é que essa massa de neve dura desce a ladeira, então? Por três motivos, segundo nosso guia: porque é muito pesada, e seguindo a máxima de que pra baixo todo santo ajuda, quanto mais pesado, maior vai ser a velocidade de descida. Porque as montanhas são altas, ou seja, o plano é inclinado, e quanto mais inclinado, maior vai ser a velocidade de descida. E porque, como não é exageradamente frio, conforme vai se afastando do cume gelado das montanhas, uma parte da geleira vai derretendo. A película de água que se forma entre a geleira e a montanha funciona como lubrificante, facilitando a descida da geleira. Disse o guia que até 1917 a geleira descia cerca de uma centena de quilômetros por ano, e que nesse ano tocou a península de Magallanes pela primeira vez, e a partir daí se estabilizou. Hoje é uma das poucas geleiras estáveis do mundo, fica mais ou menos no mesmo lugar o tempo todo. A velocidade de formação, com a neve nas montanhas, é de um metro ao dia; esse mesmo metro é mais ou menos o que se perde por dia, entre os blocos que se soltam e a neve que derrete. Então ele vai descendo muito pouco conforme o inverno chega, descendo, descendo devagarinho, paciente; no máximo do inverno toca a península de Magallanes, bloqueando a passagem da água de um lado pra outro do canal. O lado que não se comunica com o Lago Argentino continua a receber água dos riachos e rios que descem das montanhas e colinas, e o nível da água vai aumentando. O peso dessa água toda pressiona essa ponta da geleira que toca a península, formando arcos, que mais tarde caem. Ou então a quebra é mais violenta, com a pressão da água derrubando de uma vez essa ponta que toca a península – e nessas vezes dizem que o espetáculo é uma coisa impressionante, como aconteceu no ano passado. Esse ano, infelizmente, a ruptura foi gradual e nada espetaculosa, e aconteceu de janeiro a fevereiro – normalmente rola em março. Como essa geleira mais famosa, o Perito Moreno, existem pelo menos outras 50, menos famosas e algumas menos acessíveis.

Mas então, continuando: depois de um zilhão de fotos e várias babações, fizemos nosso lanchinho e voltamos pro ônibus. Andamos mais um pouco e descemos num pequeno porto do outro lado do canal, o tal lado que não se comunica diretamente com o Lago Argentino quando a geleira desce e bloqueia a passagem da água. Passamos pertinho da outra diagonal da ponta da geleira, e a vista é deslumbrante, mas rola um medinho de ver um pedação caindo e fazendo rebolar o barco. Felizmente (ou infelizmente, porque apesar do medo deve ser lindo) não vimos nada do gênero. Descemos na margem lá do outro lado, onde há um refúgio dos guias que fazem esse minitrekking. Todo mundo faz xixi, deixa as bolsas e mochilas que não servem e calça luvas que eles sempre têm de reserva – repito, não porque é frio, mas porque a geleira não é de gelo mas de neve congelada, que corta feito navalha. Parece que é superfrio porque estamos muito vestidos, mas na verdade estávamos era suando debaixo daqueles casacos todos, que não queríamos deixar no Refúgio porque, bem, nunca se sabe. Caminhamos por entre pedregulhos grandes e poças d'água até chegar às margens da geleira, onde ela se encontra com a terra e as rochas. Paisagem estranhíssima. Nossos guias eram Fernando, que foi quem nos explicou a formação da geleira, usando um graveto pra desenhar na areia, a Luli e o Fabio, todos muito gentis. Sentamos nuns banquinhos e os guias começam a amarrar esses papatinhos com grampos por baixo, nos nossos sapatos. Recebemos instruções de como nos movimentar sobre a geleira, e começamos a subida. Claro que não subimos na parte que parece uma floresta de picos de gelo azul, mas nessa parte lateral, onde a neve compactada formou dunas, por causa do relevo do terreno que há por baixo. É divertido e bonito, mas MUITO cansativo porque os diabos dos "sapatos" são pesados que nem a peste, e porque subir e descer ladeira toda encasacada não é nada legal. No caminho vêem-se poças de água, buracos ("sumidouros") às vezes do diâmetro de um braço, às vezes do tamanho de um carro, causados pelo derretimento da geleira. A água dentro desses buracos é cristalina e puríssima – deliciosa, porque não tem gosto de nada. Descemos em um desses grandes buracos, e é uma coisa esquisitíssima: esse teto de gelo azul que pinga na sua cabeça sem parar, e um riacho correndo por entre a terra e as pedrinhas, por baixo. Bizarro.

Depois de cerca de uma hora de trekking, os guias nos levam até um mini-vale entre duas dunas onde fica perpetuamente armada uma mesinha com uma tigela de bombons da Arcor imitando Serenata de Amor, umas garrafas de whisky, copos e duas jarras, que se enchem com água de um sumidouro qualquer. O whisky é servido, claro, com gelo raspado diretamente da geleira. Now that's a classy whisky on the rocks alright.

Voltamos ao Refúgio, pegamos nossas coisas, quem queria tomou café, quem precisava fez xixi, o barco chegou, voltamos ao porto, pegamos o buzum e voltamos pra cidade. Gianni e Chiara foram à missa das 8 e eu e Mirco fomos fazer compras e trocar dólares. Pegamos os meninos na igrejinha e fomos jantar no Mi Viejo de novo; dessa vez pedi um salmão grelhado, que veio imenso e delicioso, com pirê de batata. Os meninos atacaram de chinchulinas (em italiano se chamam trecciole e são consideradas uma iguaria, ainda mais depois que todas as doenças malucas de vacas e afins proibiram sua comercialização: são os intestinos da vitela, coitada. Não como nem que me paguem.) e parrilla, Chiara pegou leve e além das chinchulinas comeu só uma omelete espanhola (com batatas e cebolas). Voltando à pousada, fui direto dormir (leia-se ver E.R.), enquanto o resto do pessoal foi bater papo com o Mariano e o Matias no albergue.

Postado por leticia em 23:35

18.03.05

el calafate

Acordamos às cinco da manhã, nada de café porque o bar/restaurante colado ao hotel ainda não tinha aberto (mas já tinha gente esquentando as chapas e recolocando as cadeiras no lugar), às quinze pras seis o nosso bom velhinho taxista de Mendoza nos esperava na porta. Deixamos as malas maiores, com as roupas de verão, no novo hotel e fomos direto pro aeroporto internacional, o Ezeiza (e vou evitar comentários sobre esse nome ridículo). Mirco demorou mas finalmente chegou; tinha sido mandado pra esteira errada de bagagem, e pra fila errada do novo check-in, mas no final das contas tudo correu bem e às 7:50 partimos com o vôo 1892 com destino a El Calafate, já na Patagônia. No aeroporto de Calafate, que, se não me engano, tem menos de dois anos de vida e é superbonitinho, uma van nos esperava pra nos levar ao hotel. O hominho segurava um cartaz com nossos nomes, TODOS errados, menos o meu: Balducci virou Valducci, Baldan virou Valdan, e Gianni, que não tem B nem no nome e nem no sobrenome, virou outra coisa que não lembro.

O caminho até a cidade não é longo mas é esquisito: tudo muito desértico, em tons de cinza e marrom, aquele lago azul-anil (o Lago Argentino), as montanhas nevadas ao fundo. E cercas, muitas cercas. Mas o que diabo neguinho tanto cerca aqui, se não há nada? De vez em quando víamos cavalos e uma meia dúzia de ovelhas, nada que, na nossa cabeça, justificasse as cercas, mas vai entender. O motorista fazia o tipo antipaticão (devia ser porteño) e preferimos não perguntar nada.

O hotel era uma diliça. Novíssimo, quatro meses de vida. A casinha bonitinha tem dois andares: embaixo fica a recepção, a mini-cozinha e as mesinhas onde os hóspedes tomam o café da manhã. No andar de cima mora a dona da pousada, que tinha aquela simpatia profissional de quem sabe que tem que ser simpático pra poder faturar. Não preciso dizer que é porteña. A pousada tem um cachorro, que se chama Pasqual e é um amor. Milhões de outros cachorros circulam por essa parte da cidade, fora do centro, onde as ruas são de areia – não terra, areia mesmo. Os únicos quatro quartos da pousada ficam nessa construção com cara de estrebaria. Tudo novíssimo, lógico, de bom gosto, o aquecimento sai do chão e assim não ocupa espaço, tudo é limpo e cheiroso, o banheiro tem a maldita cortina de plástico e uma janelinha sem cortina que dá de frente pra um restaurante, mas com a água quente aberta o vapor embaça a vidraça e funciona como cortina. Tem TV a cabo, graças aos céus. Não tem armário, e sim um cabideiro aberto atrás da porta do quarto, mas ninguém fica aqui por muito tempo, por isso não teria sentido ter um armário propriamente dito.

Nós só deixamos as malas nos quartos e pedimos pra porteña chamar um rádio-táxi (que aqui se chama remis). Descemos até a cidade, que é charmosíssima, e no caminho vimos uma infinidade de novas construções brotando do chão, algumas casas, outras presumivelmente serão pousadas ou restaurantes, algumas são grandes mesmo e virarão mega-hotéis, já que pelo visto a Patagônia vai ser o grande must turístico dos próximos anos. Preço surreal do táxi, o primeiro de muitos que pegamos e, como TODOS os outros, com o pára-brisa rachado por causa das pedras que o vento joga: TRÊS PESOS. Menos de um euro. Dividido por quatro pessoas. Ho ho ho. A arquitetura é linda e me lembra cidadezinhas do interior da Noruega, sei lá, muita madeira, casas pequenas, de um andar só, com imensas vidraças e vasinhos de flores e plaquinhas de madeira e telhados fofinhos e cerquinhas ajeitadinhas. Um hotel em particular me deixou de boca aberta de tanto que é bubu, mas há vários, vários outros, sempre assim de madeira e tanto, tanto vidro. Lindos! À noite, iluminados por dentro, são escandalosamente bonitos e elegantes. As lojas são bonitinhas e cheias de coisas lindas pra comprar. Muitas vendem cafonices tipo roupas indígenas, artesanato em couro cru, essas coisas horrorosas que ripongas adoram, mas há muitas coisas bonitas. Há uma quantidade impressionante de cachorros nas ruas, muitos com coleira e medalhinha de identificação. Andam sozinhos ou se reúnem em grupos, mas não vimos nenhuma briga, só algumas "discussões em voz alta", por assim dizer. Muito estranho.

Não tínhamos almoçado e eram duas da tarde, e saímos catando restaurantes pra almoçar. São muitos e todos com cara de limpinho; acabamos entrando no Mi Viejo, um restaurante bonitinho que exibia, como numa vitrine, quatro cordeiros pendurados cozinhando/defumando em torno de um braseiro. Estávamos todos loucos por uma parrilla, o bom e velho churrasco, e pedimos uma que o menu dizia ser suficiente pra seis pessoas. O garçom, eficiente e prestativo, trouxe a chapa fumegante à mesa, mas se aquilo ali dava pra seis pessoas, então são seis pessoas de Biafra com estômagos do tamanho de limões-galegos, desculpem o mau gosto. No final das contas alguns pedaços de carne eram ótimos, mas pra mim carne espetacular é carne que você come toda sem deixar nada no prato, sem precisar ficar roendo osso, lutando contra nervos e pedaços de gordura, mastigando por cinco minutos até conseguir engolir. As lingüiças eram horríveis. Mas a salada e o pirê de batata eram ótimos. O vinho local era muito xexelento, mas foi só pra provar mesmo, então tá de bom tamanho.

Voltamos pro hotel e paramos no albergue grande e envidraçado ao lado da nossa pousada. Era ali que inicialmente pretendíamos dormir, porque eles se chamam albergue mas também têm quartos de casal, mas estavam lotados. Muito gentilmente, foram eles que negociaram nossa hospedagem com a pousada ao lado, e também foram eles que nos venderam o passeio ao Perito Moreno, que vamos fazer amanhã. Descobrimos que o/a famoso/a Seba, com quem troquei vários e-mails, era O Seba, apelido de Sebastián, que estava em Buenos Aires mas deixou o irmão, Martín, e um outro porteño, Mariano, administrando o albergue. O Mariano morou no Rio e fala português, e, como todo mundo por aqui, usa Havaianas. O albergue é muito legal, os meninos são simpáticos (paraculos, mas simpáticos), a vista pro lago é maravilhosa. Batemos papo, discutimos o passeio ao parque de Torres del Paine, no Chile, aceitamos a sugestão de fazer o minitrekking no Perito Moreno, pagamos tudo e fomos à cidade jantar.

Os meninos tavam com desejo de comer pizza (...) e fomos pra um lugar pseudo-italiano. A pizza aqui vem, como no Brasil, entupida de mussarela vagaba e com quilos de orégano. A pizza italiana é espartana nos toppings e o orégano só vem se você pedir. Eu não tava com fome e não jantei, mas os meninos até que comeram a pizza sem reclamar. Sabendo que faríamos o tal minitrekking sobre a geleira no dia seguinte, saímos feito loucos pelas ruas tentando achar um par de luvas, que o Mirco esqueceu de trazer, e um gorro decente, que o Mirco esqueceu de trazer e eu não tenho porque odeio qualquer coisa que se ponha na cabeça. Acabamos achando tudo por preços meio turísticos, mas quando não tem tu, vai tu mermo. Também fizemos umas comprinhas num supermercado chamado La Anonima (...): pão, queijo, presunto, suco de laranja, guardanapos, tudo pra merenda de amanhã, já que ali no Parque Los Glaciares não há bares ou restaurantes e nós somos criaturas esfomeadas. Voltamos pra pousada em mais um táxi de pára-brisa rachado, sacolejando naquelas ruas de paralelepípedos, e fomos dormir.

Postado por leticia em 23:54

17.03.05

Foz do Iguaçu - Buenos Aires

Acordamos cedo e Hernán nos esperava na porta. Fizemos o check-out e fomos direto a Itaipu ver a represa. É interessante, imensa, impressiona – e o passeio é grátis. O ônibus com ar-condicionado vai passando devagar pelas estradas internas e o alto-falante vai explicando o que a gente está vendo. Gostei particularmente do Bosque dos Funcionários: ao completar 15 anos de serviço, cada operário planta uma muda do que quiser nesse tal bosque, que na verdade ainda é apenas um gramado com algumas árvores adolescentes que mal dão sombra. Mas gostei do conceito.

Dali fomos finalmente ao centro de Foz fazer compras. Consegui achar uma agência do Itaú pra desbloquear meu novo cartão, e aí pronto, fiz a festa. Comprei o teclado onde estou digitando agora, mas que só funciona no Word, não adianta nada pra escrever e-mail – alguém saberia me ajudar a configurar esse treco? Comprei um sabonete pro rosto no Boticário. Comprei um Collins Ing-Port-Ing, que não era exatamente o que eu queria mas dá pro gasto. Fizemos compras no supermercado: guaraná, gelatina Royal, shampoo pra cabelo ruim, farinha de mandioca, um osso de couro comestível pro Leguinho, aveia com mel e castanha de caju da Quaker, desodorante, escova de dentes, Ninho Soleil (depois fiquei mal por ter interrompido momentaneamente meu boicote à Nestlé, mas eu ADORO Ninho Soleil e aqui não tem), suco Maguary; os meninos compraram um caminhão de Havaianas e suco de manga e cachaça e limão pra caipirinha. Passeamos muito pela cidade, que é feinha, coitada, paramos pro pessoal tomar água de côco, que eles obviamente nunca tinham experimentado, batemos (bati) altos papos com o Hernán, que como eu já disse é malandro mas é legal. Almoçamos na parte de fora de um restaurante com nome alemão: os meninos arriscaram uma pizza, que felizmente estava boa, e eu e Hernán dividimos um filé com alho torradinho, arroz branco e brócolis. Ainda demos um pulo numa loja estilo armadilha pra turista, cafonérrima, com direito a chaveiro de arara e tudo, pros meninos comprarem as Havaianas tamanho gigante pro Gianni, que no supermercado não tinha, e dali tocamos pro aeroporto.

Novamente o vôo foi uneventful, mas quando chegamos a Buenos Aires nenhum taxista queria nos levar, porque as malas eram muitas! Os carros são velhérrimos, tão velhos que a gente nem reconhece mais a marca, e o espaço na mala geralmente é pequeno. Acabamos convencendo um velhinho, que por acaso era de Missiones (ali onde fica o parque das cataratas argentinas) e por isso mesmo muito simpático. Fomos os três espremidos atrás, e uma malona no banco do carona, e o motorista tinha que segurar a coitada nas curvas senão caía por cima dele.

Se você acha que o trânsito de Nápoles é uma loucura, experimente uma meia hora em Buenos Aires. Vai fazer Nápoles parecer Zürich. Ali cinto de segurança não existe mesmo, de verdade. Assim como não existe sinal vermelho, nem faixa de pedestres. O próprio taxista falou que pra ele, no trânsito, só existem duas cores: verde e verde-morango, que seria o vermelho, solenemente ignorado. Os ônibus, todos caindo aos pedaços, pintados em cores cafonas e incrivelmente barulhentos, passam voando nas ruas, se jogando por cima dos carros (não, não é como no Rio. É pior.), buzinando. Enquanto íamos passeando pela cidade, porque queríamos examinar melhor o bairro onde ficava o hotel já reservado e pago pela internet, o taxista ia contando piadas, quase todas contra os argentinos. Dei muita risada, o que significa que entendi tudo, porque ele não era portenho nem mal-educado e falava beeeem devagar. Nosso hotel ficava no Once, lugar barra-pesada depois do pôr-do-sol, e antes mesmo de fazer o check-in e nos instalar resolvemos continuar com o velhinho e catar outros hotéis. Tínhamos anotado os nomes de várias possibilidades pros últimos três dias na cidade, mas esquecemos de um pequeno e delicado detalhe, do qual só nos lembramos depois de conversar muito rapidamente com duas napolitanas enquanto esperávamos nossas malas na esteira: esses três últimos dias caíam na Semana Santa, e os hotéis da cidade estavam todos lotados. Acabamos conseguindo dois quartos com duas camas de solteiro cada num hotel 4 estrelas onde o Moreno dormiu quando esteve em BsAs em fevereiro, e tinha dito que era ótimo, lindo, todo de madeira e vidro, e coisa e tal. Nem vimos o quarto: fizemos a reserva pros últimos dias, montamos no táxi e voltamos pro nosso hotelzinho xumbrega no Once.

Depois de um bom banho no box com cortina de plástico, eca, desci pra encontrar os meninos. O hotel se comunica com um restaurante de mesmo nome (La Perla), e ficamos batendo papo enquanto os meninos comiam: Chiara pediu vitamina de pêssego e Gianni foi de hamburger. Sempre impressionados com os preços baixos pra quem ganha em euro, fomos alongando nossas listas de compras, e comparando nossas impressões iniciais sobre a cidade. Os meninos adoraram o que viram até o momento, mas acho que grande parte da empolgação deles foram justamente os preços baixos e a boa comida, já que pra eles comer mal e não poder comprar nada são grandes fatores de stress e de estragamento de viagem. Voltamos pros nossos quartos, ajeitamos as malas com as roupas de verão que deixaríamos no outro hotel na manhã seguinte, no caminho pro aeroporto, e eu dormi vendo E.R. no Warner Channel. God bless cable TV.

Postado por leticia em 14:10

16.03.05

Parque Nacional Iguazu - Argentina

Em teoria eu deveria acordar os meninos, mas antes da hora combinada a Chiara ligou. Também tinham dormido mal e acabaram descendo pra dar uma volta no hotel e tomar café. Desci, e enquanto esperava os meninos fui bater papo com um motorista de táxi pra dar uma checada nos preços. Achei o Hernán meio caro em alguns aspectos mas mais barato em outros, e ainda por cima com a van todas as nossas malas cabiam sem problemas, então acabei dispensando o taxista. Fui tomar meu café da manhã, maravilhoso, com tudo o que tem direito, inclusive pão de queijo, queijo Minas, sucos frescos, mil tipos de pão, iogurtes gostosos. Fiz a festa, e depois de escovar os dentinhos fomos lá pra recepção esperar o Hernán. Ele é paraculo mas é legal, podem perguntar por ele ali no aeroporto de Puerto Iguazu (quem nos mandou pra ele foi o Davi, que fica ali naquelas escrivaninhas de que falei, na saída do aeroporto).

Do hotel fomos direto à parte argentina das cataratas. Na entrada pedi informações pro hominho da recepção, e ele nos deu mapinhas e sugestões de percursos. Fizemos como ele disse, e na parte da manhã fizemos os percursos inferior e superior, que somados dão horas e horas de caminhada e de vistas deslumbrantes. As passarelas são muitas, as possibilidades fotográficas são infinitas, os turistas chatinhos são excessivos, e lá embaixo víamos umas lanchas que zuniam pelo rio e chegavam pertinho das cataratas. A Chiara não sabe nadar e tem horror a barco, mas eu e Gianni resolvemos arriscar: pagamos os 30 pesos por pessoa, botamos os coletes salva-vida e lá fomos nós, sentados bem nos primeiros lugares. Dão umas sacolas de plástico pra proteger máquinas fotográficas e sapatos; no início dá pra fotografar, mas quando você vai se aproximando da cascatona, melhor enrolar bem a máquina no plástico e agarrar o embrulho com força pra ele não sair voando e cair no rio. Vou-lhes dizer: É MUITO MANEIROOOOO! Eu, toda inocente, achando que o barco chegava no máximo até a nuvem de vapor que se forma quando a água cai, mas que nada! Chega-se muito, mas muito perto da cascata de San Martín, que não é a Garganta del Diablo mas é bem impressionante. A água cai forte na sua cabeça, entra no nariz e na boca, aquela água cheirosa de rio e de floresta e de sol, sem cloro, sem flúor, sem o maldito calcário europeu, só água, forte, pesada, limpa, fresca, absolutamente deliciosa e depuradora. MUITO, MUITO BOM. E necessário. Desembarcamos absolutamente ensopados, eu feliz da vida e, pelo menos momentaneamente, desdeprimida; Gianni meio confuso, porque nunca tinha tomado banho de água de rio na vida, ainda mais assim, com essa intensidade toda. Dali pegamos o trenzinho e voltamos à entrada do parque pra almoçar.

O restaurante se chamava La Selva, e fomos comer lá porque na entrada um dos funcionários do parque estava distribuindo vales-desconto pro almoço. A comida não tava lá essas coisas: a clássica parrillada, ou o bom e velho churrasco, que não era nenhuma Brastemp; meia dúzia de acompanhamentos meio macambúzios e uma caipirinha grátis por cabeça. Pelo menos gastamos pouco, muito pouco. Como é bom viajar a países em crise.

Ainda molhados, pegamos de novo o trenzinho até a última estação, a Garganta del Diablo. Fomos andando pelas passarelas, que têm pouco mais de um quilômetro no total. Passamos por cima de pilares de uma antiga passarela derrubada pela enchente de 92, e mesmo sabendo que a quantidade de água que passa por ali é impressionante, fica difícil de imaginar a cena, porque o rio é manso, manso. Há vários pontos de água estagnada, os únicos lugares onde vimos peixinhos. Plantas estranhas, pedras esverdeadas de lodo exibindo-se no meio do rio, um bem-te-vi que cantava de cá enquanto outro respondia de lá. O sol forte batendo na moleira, japoneses de luvinhas brancas e guarda-chuvas abertos contra o sol, americanos ripongas com dreadlocks parafinados, o céu azul acima de nós. Ficamos imaginando quando é que a maldita cascatona iria aparecer, e se realmente era tão impressionante quanto parece nas fotos e cartões-postais e documentários televisivos.

E então eu vos digo, amiguinhos: é MUITO mais impressionante. Nada no mundo, nada, nenhuma foto, nenhuma filmagem, nenhum Globo Repórter é capaz de preparar a gente praquilo. Não consigo nem explicar direito o que eu senti quando dei de cara com aquele monstro. Você vem vindo pela passarela, batendo papo e admirando a fauna humana ao seu redor, apontando pra uma flor esquisita lá naquele canto ali, ó, ih, alá, uma tartaruga pegando sol na pedra, e coisa e tal, e de repente começa a ouvir um barulho, mas um barulho, e a taquicardia chega, e você inicialmente vê só a parte mais alta e externa, um ralo gigante, aquela quantidade absurda, intergaláctica de água caindo não se sabe onde, até que a passarela faz uma dobra à esquerda e você finalmente dá de frente com a Garganta, e olha lá pra baixo e não consegue mesmo ver pra onde a água vai porque é tudo vapor, e o coração parece que vai sair pela boca, que por sinal está aberta e babando, e as lágrimas são absolutamente inevitáveis, e parece que o mundo parou e a única coisa que se move é aquela massa ridiculamente exagerada de água que cai em movimentos hipnotizantes de verde e branco e espuma, e então não importa se tem uma horda de fotógrafos profissionais (cof cof) que sobem em escadas como aquelas que a Maria usa pra limpar as janelas do seu apartamento, pra tirar fotos dos turistas do alto, tendo a Garganta no fundo; não importa se a língua mais ouvida ao seu redor é aquela josta de espanhol; não importa se ao seu lado há uma velhinha americana de cabelos lilás e camiseta cafona com uma arara e escrito “Maceió” em letras vermelhas, nada disso importa, não importa nada, porque a única coisa em que você consegue pensar é CARALHOS ESTRELADOS, como é possível que exista tanta água junta, não é possível, PRA QUE ISSO? Fiquei séculos lá parada, hipnotizada, paralisada, petrificada, olhando praquela coisa monstruosa que cai sempre no mesmo ritmo, sempre igual mas sempre diferente, mais espumoso à esquerda de quem olha, mais esverdeado à direita, e ali no meio ela dá um pulo antes de cair porque tem uma pedra protuberante, e bem no seu lado direito há uma plataforminha de pedra que é tão protuberante que a água não cai exatamente em cima, e então uma moita de alguma planta guerreira se instalou ali, no meio do campo de batalha, e aquele barulho enlouquecedor, e há tantas outras micro-cascatas ao redor que a gente não sabe pra onde olhar, mas os olhos sempre voltam pra Garganta, porque é ela que a gente não consegue entender nem mensurar nem aceitar nem nada, e não consigo evitar de imaginar como seria bonito morrer ali, stravolta dalle acque possenti. Então ficou estabelecido na minha cabeça que não existe coisa mais bonita no mundo inteiro. Não existe, por mais que o Mirco encha a casa e o meu saco com fotos de Ayers Rock. Não existe, porque eu gosto de movimento e não de monumento; gosto de dinâmica e cinemática e da conseqüente potência, e uma cascata é viva e forte e pode tudo, entorpece TODOS os seus sentidos ao mesmo tempo, desliga o seu cérebro que por longos minutos absorve só ela, seu barulho, o cheiro da água, a sensação de umidade na pele, o frescor do vapor d’água no rosto, o gosto de água fresca e natural na língua, e sobretudo aquela visão infinita e absurda de toda aquela água que a gente não entende o que raios está fazendo ali, pra que que serve tanta água junta assim?

Ao redor, tudo é lindo: o capim das rochas brilha com as gotículas de água, as folhas se agitam ao vento causado pelo simples deslocamento daquela água toda, flores pequenininhas crescem em moitas em ilhotas que parecem ikebanas no meio das partes mais calmas do rio. Não há peixes, logicamente; a vista é ótima mas a vizinhança é barulhenta e movimentada demais. Borboletas passeiam sobre as nossas cabeças e quando voltamos, muito a contragosto, a tartaruga ainda está lá na pedra, lagartando ao sol, perto dos pilares destruídos. Continuei abobalhada e muda por todo o percurso de volta à estação, e durante a volta no trenzinho, com os pés estendidos no banco à minha frente pra secar as meias. Comprei uns colares de contas de um índio perto da saída do parque (eles são cadastrados pra poder trabalhar no parque e vendem uns bichos artesanais horrendos – ou tudo que é artesanal é horrendo, a não ser o gelato italiano? – mas os colares de contas são bonitos), dei um tchau mental pra Garganta pensando que um dia ainda vamos nos encontrar novamente, tia, e fomos embora.

Hernán nos esperava na saída, e a primeira coisa que perguntou foi se tínhamos pego a lancha pra nos batizar nas águas de San Martín, como diz o panfleto do parque. Os meninos queriam comprar uma rede, então paramos pra escolher uns exemplares que um paraibano sorridente e com bafo de cachaça vendia à beira da estrada. Puxa de cá, conversa de lá, acabamos levando duas com um pequeno desconto. Fiquei com pena dele porque praticamente há só um fornecedor pra todo mundo que vende rede ali na área, e os vendedores não podem dar muito desconto porque afinal de contas eles também precisam comer. Nós fomos o primeiro cliente do dia e ele agradeceu com sinceridade, e sorriu sem dentes pra foto com o Gianni.

Resolvemos jantar no restaurante do hotel. Os meninos comeram saladas, omelete e arroz branco, e acharam tudo ótimo, coisa maravilhosa porque italiano é chato pra cacete pra comer, ainda mais quem foi acostumado com tomate da horta, frango do galinheiro da avó, vinho feito pelo tio. Eu ainda tava abobalhada demais pra sentir fome, e pedi pro garçom encomendar uma vitamina caprichada na cozinha, de mamão, banana e laranja, minha preferida.

Subi cedo pro quarto e fiquei estatelada na cama esperando o ar condicionado refrescar o quarto, antes de cair no sono. Revi os acontecimentos do dia, me preparando pra escrever, e cheguei à conclusão de que o parque argentino é mais tosco do que o brasileiro, mas como área natural é mais bonito, porque maior. Só que a nossa vegetação tropical é aquela exuberância deselegante que a gente conhece bem, conseqüência inevitável do calor e da umidade. Nada de bosques europeus arrumadinhos, não. No hemisfério pobre há muito undergrowth, sottobosco, uma confusão danada de parasitas, de bambus caídos, de plantas que trocam de casca, de cipós pendurados em ângulos aparentemente impossíveis, uma variedade confusa de verdes. Um excesso, uma bagunça, uma indisciplina, uma improvisação, enfim, um samba do crioulo doido que é, ao mesmo tempo, o nosso tesouro e a nossa inevitável ruína. É tudo tão vulgar, tão exagerado, tão desnecessário. Penso nas combinações bizarras e despudoradas de cores das roupas de muitas meninas sul-americanas que vimos no parque, e vejo que tem tudo a ver, não poderia mesmo ser de outro jeito. Tudo faz sentido. Ou talvez sou eu que sou self-conscious demais, não sei.

Postado por leticia em 13:42

15.03.05

Roma - Buenos Aires - Foz do Iguaçu

Passei a manhã em casa dando uma última geral, terminando de arrumar as malas, passando roupa. Almoçamos correndo e às três da tarde Gianni e Chiara passaram aqui. Quem nos levou até o aeroporto foi a Roberta, irmã do Gianni, que é muito gente boa. Quando viajam, Gianni e Chiara sempre têm que fazer o check-in o mais cedo possível, pra tentar arrumar lugar nas fileiras mais anteriores ou perto da porta de emergência, porque são muito altos e precisam esticar as pernas, senão morrem de desconforto. Acabamos sentando separados, mas pelo menos todo mundo tinha espaço suficiente pra evitar formigamentos, dores musculares e pés inchados. Voamos com a Aerolineas, e demos o azar de pegar uma tripulação antipaticíssima. O avião era meio velhusco. Nada do telão mostrando a posição do avião, velocidade, temperatura, tempo de viagem, essas coisas. O vôo estava lotado, uma quantidade impressionante de velhos sem loção, do tipo que não trancam a porta do banheiro e aí chega alguém querendo usar o banheiro e abre a porta e vê o velho lá dentro sentadinho na privada. Diliça. O jantar foi franguinho refogado com arroz branco e vagem, bem razoável pra mim, mas eu adoro comida de avião. Os meninos, obviamente, detestaram. Ao meu lado esquerdo, um piacentino fedendo a cigarro que só lá pro final do vôo resolveu puxar papo e contou que tinha um restaurante, mas que agora o vendeu e resolveu tirar um mês de férias pra pensar no que fazer da vida. No meu lado direito, um argentino que felizmente dormiu o tempo todo. Eu consegui dormir direitinho, até porque já tinha visto o filme que passou (Neverland), e entre uma soneca e outra dei uma lida no guia Lonely Planet que o Gianni comprou pra viagem. Qual não foi a minha surpresa ao ler aquela velha história de que os argentinos são italianos que falam espanhol e acham que são ingleses! Apesar de ser de três anos atrás, a edição italiana do guia é legalzinha, dá alguns toques básicos sobre a arrogância dos argentinos (chamada repetidamente de ”orgulho”) e sobre a decadência de Buenos Aires. Me diverti.

Chegamos bem cedo e pegamos um táxi até o outro aeroporto, o Aeroparque, que seria o equivalente ao Santos Dumont no Rio. O carro era um Peugeot caindo aos pedaços, com os vidros rachados e mala que não fechava direito. O motorista era uma figura, o clássico portenho paraculo (palavra italiana que eu amo e quer dizer algo como malandro, espertalhão), com cara de napolitano, cabelos muito escuros, sobrancelhas marcadas, olhar safado. Pegou um caminho comprido e engarrafado, e enquanto ele falava sem parar íamos vendo a paisagem: um viaduto parecido com o Paulo de Frontin, inclusive pela feiúra dos prédios colados nele, placas de trânsito tortas, poluição. Vimos até umas coisas favelais brotando nas margens de estrada, bem no estilo Maré, se o dono da casa estende o braço pra fora da janela chega quase a encostar nos carros que passam. E enquanto tudo isso passava o motorista falava que falava, descrevendo em detalhes o parto do primeiro filho, o sangue, a placenta, uma delicadeza só. Mas eventualmente chegamos, e esse aeroportinho é bem bonitinho, de frente pro rio, com uns belos gramados em torno. A estrutura parece nova e moderna, e ficamos dando umas voltas até a hora do vôo. Acabamos sentando num café pra passar o tempo, e puxei papo com uma senhora que morava em Foz e trabalhava com turismo e nos deu umas dicas do que ver, quanto tempo gastaríamos pra ver as cataratas, os preços dos ingressos e mais ou menos quanto os motoristas da zona cobravam pra levar os turistas pra lá e pra cá. Disse que nosso hotel não ficava muito perto do centro e por isso seria uma boa idéia estabelecer um preço fixo por dia com uma das quatro empresas que fazem esse trabalho por ali, de modo que teríamos sempre um carro e um motorista à nossa disposição.

O vôo, sempre da Aerolineas, saiu com 15 minutos de atraso, mas foi bem light. Serviram só uns sanduíches de queijo e presunto no pão de forma, porque o vôo era curto. Chegamos em Puerto Iguazu, que tem um aeroporto bonitinho, todo de tijolinhos, e logo de cara vimos as quatro escrivaninhas com os quatro fulanos que a senhora tinha descrito, sentadinhos ali entre a esteira das bagagens e a porta de saída, caçando turistas. Escolhemos um ao acaso e ele nos passou a um lourinho de óculos escuros, o Hernán, que é argentino de Mendoza, ao norte, mas morou em Foz e namorou brasileira e fala bem o português. Seguimos os conselhos da senhora no aeroporto de Buenos Aires e fomos direto do aeroporto pras cataratas brasileiras, que são menos extensas e podem ser visitadas numa tarde. Cruzamos a ponte Tancredo Neves, aquela cafonice das cores da argentina até a metade, e dali em diante o concreto lateral pintado em verde e amarelo. É cafona, mas não agüentei e dei de chorar. Não só por estar tecnicamente pisando no Brasil, mas principalmente por estar vendo árvores e plantas e pássaros que eu reconhecia, embora não conhecesse tudo, claro. Vi pés de mamão, mangueiras, bananeiras, flamboyants e muitas outras plantas às quais nunca fui apresentada pessoalmente mas que conheço de vista. Nunca tinha parado pra reparar nessas coisas, mas acho que é mesmo porque a gente só sente falta de determinadas coisas quando elas não fazem mais parte da nossa vida. Quem diria que o canto de um bem-te-vi, que aqui na Bota não existe, me faria chorar até o nariz inchar.

Mas tudo ali é tão feio, a gente é feia, a terra é vermelha e fina e mancha tudo, tudo é tão improvisado, os letreiros são pintados a mão, os carros são velhos, todo mundo perambula de sacola de plástico pendurada no braço (bem coisa de pobre, né não?), os nomes das lojas são terrivelmente cafonas, as Havaianas de pivete imperam – são aquelas brancas com as tiras verde-água, sacam?

O Parque Nacional é muito bonito e aparentemente muito organizado. Paguei meu ingresso com desconto mostrando meu passaporte, comprei uma lata de guaraná Antarctica no barzinho antes de entrar, passamos pela roleta e subimos num ônibus muito colorido, com um tucano estilizado pintado nas laterais. Sentamos no andar superior, e fomos passando pela estradinha asfaltada mas esburacada que atravessa a floresta. Outros ônibus vinham da outra direção, alguns do parque, outros de turismo; a gravação nos alto-falantes explicava onde estávamos, que animais poderíamos ter esperanças de ver, advertia a não dar comida aos quatis, jamais, porque eles ficam abusados e não podem ver um saco de batata frita que avançam na maior cara-de-pau. Descemos na última estação, Trilha das Cataratas, e percorremos todos os caminhos possíveis. As passarelas chegam bem perto das quedas menores e a gente fica lá, de boca aberta, tirando fotos com as mãos cobrindo a máquina pra que o vapor d’água não a molhe. A sensação é maravilhosa, aquelas gotículas finiiiiiinhas cobrindo meu rosto, meu rabo-de-cavalo torto, meus tênis vermelhos. Poderia ter ficado lá o dia todo, mas estávamos cansados e o Hernán nos esperava às seis e pouco na entrada do parque, então voltamos pra lojinha, compramos uns cacarecos e cartões-postais e fomos pro ponto de ônibus. Um pouco depois do hotel maravilhoso em estilo colonial que fica dentro do parque há um mini-complexo de lojas e barzinhos onte paramos pra tomar um suquinho Maguary de manga, que os meninos adoraram. Logo em frente fica uma estátua do Santos Dumont, que eu obviamente tive que explicar quem era e coisa e tal. Enquanto esperávamos o ônibus pra saída do parque, vimos um grande grupo de quatis saindo da mata e atravessando a rua na maior. Uma imbecil, que não sei de qual país da América Latina saiu, caiu na asneira de tirar da bolsa um pacotinho de salgadinhos. Não deu outra, os quatis enlouqueceram, começaram a pular nas pernas dela, estendendo as patinhas e puxando a mochila com os dentes. A idiota da mulher quase morreu de susto, e eu só pensando bem feito, vai na fé, quati, quem mandou ser otária e não obedecer às instruções da administração do parque? Gianni e Chiara, que nunca tinham visto um animal “selvagem” tão de perto, ficaram enlouquecidos. E assim terminou nosso passeio no parque.

Fomos direto ao hotel, que é bonitinho mas deu uma mancada tão, mas tão grande comigo que eu nem vou contar pra não me irritar outra vez. Meu quarto dava pra piscina, e naquele dia abafado o ar-condicionado foi muito bem vindo. Estranho assistir à TV em português de novo, ver pedaços de novelas que não conheço, atores novos, ex-atores-mirins que cresceram. Tomei um banhão show de bola no box imenso com portas de Blindex e desci pra encontrar os meninos. Mais tarde o Hernán passou pra nos pegar e fomos, caindo de sono, jantar no RafaIn, churrascaria com show de danças típicas sul-americanas. Dispensamos o show e comemos bem, mas não maravilhosamente bem. As carnes não tavam lá essas coisas, mas o feijão tava delicioso, a farofa idem, as frutas eram muitas, as saladas eram lindas, e os doces ótimos. Paguei com cheque do Itaú, que minha mãe tinha mandado para o hotel pelo correio. Assim que cheguei no quarto meu pai ligou, depois minha mãe, e depois não agüentei e chapei. Dormi mal, tive sonhos estranhos e acordei muitas vezes de madrugada. Excesso de cansaço não ajuda muito a dormir direito...

Postado por leticia em 12:10

14.03.05

ub40

Enquanto espero a máquina de lavar acabar o ciclo, pra poder ligar o forno e a batedeira (tudo ligado ao mesmo tempo da sobrecarga e a corrente elétrica cai), boto uns CDs pra tocar. Coisa rara, já que normalmente ligo a TV e dificilmente escuto música em casa. Abro a caixa do Birds of Prey, do Live, e solto um grunhido: trouxe a caixa pra casa mas o CD ficou no carro. Vou pra pilha de CDs acumulados na minha estantezinha do escritório e pego a primeira coisa que vejo pela frente, o Promises and Lies do UB40 que minha mãe mandou numa dessas caixas que chegam aqui recheadas de coisas que eu nem lembrava que tinha. Eu AMO esse CD e tinha séculos que eu não ouvia. A versão deles pra Can’t Help Falling in Love é linda de morrer, e eu gosto do CD todo. Até porque acho todos muito simpáticos e fica difícil não gostar da música deles, igualmente simpática :)

The playlist:

C’est la Vie
Desert Sand
Promises and Lies
Bring Me Your Cup
Higher Ground
Reggae Music
Can’t Help Falling In Love
Now and Then
Things Ain’t Like They Used to Be
It’s A Long Long Way
Sorry

Postado por leticia em 10:22

fala que eu te escuto

Ah, crianças: enquanto eu estiver fora, é mais fácil se comunicar comigo pelo leticia arroba interludio ponto net (cortesia de Newlands) ou pelo leticiadaquer arroba gmail ponto com (cortesia da Ana - Aliáaaaaaaaaaaas, seu presentinho chegou! Adorei! Ainda vai demorar pra eu conseguir ler, mas eu chego lá :))) Muito obrigada!). NÃO VOU CHECAR O LETICIA ARROBA PACAMANCA PONTO COM, então só escrevam pra lá se não tiverem pressa nenhuma. Também não sei com que freqüência vou conseguir checar e-mail. Sabem como é viagem, né.

Postado por leticia em 09:07

ui

Hoje preciso:

- dar outra limpada na casa pra pelo menos garantir um estado de semi-limpeza quando voltarmos, já que o Mirco não tem tempo nem de se coçar, quando mais de passar o aspirador de pó.
- lavar o cabelo e rezar pra ele se comportar direito.
- levar a mala velha cheia de roupa de verão pra garagem.
- preparar o almoço.
- passar um Everest de roupas que se acumularam aqui nas últimas semanas. Ainda não fechei a mala porque dois pares de calça Capri e duas blusinhas amarrotadas estão na fila de espera do tratamento anti-rugas.
- decidir qual livro levar pra ler no avião.
- separar o calmantinho meia-boca pro Mirco, se ele não conseguir dormir no avião – coisa pouco provável, já que ele dorme até em pé, se deixar.
- resistir e não dormir depois do almoço, porque quero chegar exausta ao aeroporto e ver se assim consigo dormir no avião.

Quem vai nos levar a Roma é a Roberta, irmã do Gianni. Quero só ver se as malas vão caber no Golf. De qualquer maneira, saímos daqui às três e meia da tarde. Precisamos chegar cedo e ser os primeiros a fazer o check-in, pra ver se conseguimos botar Gianni e Chiara nas poltronas da frente, que têm mais espaço pras pernas. Nessas horas ser alto é realmente um porre.

Postado por leticia em 08:59

13.03.05

box e tortellini

E hoje, depois que voltamos do almoço na Arianna, Gianni e Chiara passaram aqui. Mirco já estava arrumando a mala, apesar de só partir na quinta-feira, e começamos a falar de roupas, malas, a péssima qualidade das cuecas da Coop, se vai ter lugar no carro, o trem que o Mirco vai pegar até o aeroporto, quem vai nos buscar quando voltarmos no domingo de Páscoa, enfim, esses assuntos de viagem. Os dois nervosíssimos, porque detestam andar de avião e nunca encararam um vôo assim tão longo – a maior distância que já percorreram via aérea foi até o Quênia, e foi traumatizante. Chiara duplamente ansiosa porque ainda não tinha começado a fazer as malas e não conseguia decidir o que levar e coisa e tal, e me ajudando a decidir o que EU deveria levar, insistindo no casaquinho de crochê que minha avó fez e que eu adoro, mas não vai ter nenhuma utilidade nessa viagem porque não esquenta nada. Enquanto nós dávamos o toque final às nossas malas, os dois foram visitar a avó da Chiara; meia hora depois saímos de casa e encontramos os pimpolhos no cinema em Foligno, onde já nos esperava a irmã do Gianni com o namorado. Vimos Million Dollar Baby, que adoramos, apesar de todo mundo ter chorado. Aliás, o cinema inteiro chorou, ouvia-se um monte de gente fungando ao meu redor, barulho de embalagem de lenço de papel abrindo, gente tossindo pra disfarçar.

Dali eu e Mirco fomos direto a Santa Maria pra jantar com Marco, Michela e Peppone no Bella Vista. A Michela, que já é chatinha por natureza, grávida fica pior ainda. Tudo enjoa, tudo é horrível, a boca é amarga, o vinho ficou ruim porque a boca tá amarga, a pizza demora e ela começa a se sentir mal, blah blah blah. Quase todo mundo foi de pizza, mas eu não sou exatamente fã da coisa e praticamente só como pizza quando vamos ao Penny Lane, então dessa vez pedi tortellini com molho de espinafre e tartufo nero di Norcia. A massa tava gostosa e o tartufo era verdadeiro e muito perfumado, mas o espinafre era obviamente do tipo congelado porque não tinha gosto de rigorosamente nada. Mas deu pro gasto. O chato é que o Bella Vista é supercomercial, trabalha muito com grupos de turistas então tá sempre EN-TU-PI-DO de gente, e a pizza dos meninos levou uma hora e meia pra chegar. Saímos de lá antes das onze e voltamos pra casa.

Postado por leticia em 08:57

12.03.05

enxaq

Imaginem que ontem, depois de antecipar a aula da Quarentona Estressada porque o Burbone e a Burbina não puderam vir, resolvi dar um pulo na minha médica, pra pegar mais umas amostras do remédio pra enxaqueca. Os horários dela são muito estranhos e por isso depois daquela vez em que ela me deu uma amostrinha pra experimentar, não tive mais tempo de ir lá – minhas aulas concidem com todos os horários possíveis da doutora. Dessa vez tive sorte, e quando cheguei só tinham 6 pessoas na minha frente. E eu, retardada, sem um livrinho pra ler, porque esqueci no carro. O tempo passa, e sinto estranhas pontadas atrás do olho esquerdo. Ironia do destino, quando finalmente entrei pra falar com a doutora, já não estava enxergando nada. Peguei minhas duas caixinhas de amostra grátis, a receita pra pegar outra caixa de grátis na farmácia, tomei logo um comprimido, entrei no carro e não tenho a menor idéia de como consegui chegar em casa, porque não só não via nada, como não entendia nada do que estava acontecendo ao meu redor. Me joguei na cama e chapei até as nove e meia, quando acordei sozinha, e arrisquei ligar a TV. Apesar de ter tomado o remédio tarde demais, mais ou menos uma hora depois do início dos sintomas, deu uma ajudada boa e consegui assistir à televisão. Grissom me fez companhia enquanto o Mirco foi ao cinema com o Moreno, que tinha entrado em crise novamente depois de rever a ex, o grande amor da vida dele, numa discoteca. Só que depois não consegui mais dormir. Mirco voltou e eu ainda no sofá da sala, a TV ligada baixinho e a dor latejante atrás do olho já bem mais sutil. Às quatro da manhã desisti e fui pro computador terminar a revisão da tradução maneira. Terminei às dez e meia, fui fazer compras e aos correios, voltei pra casa, fiz faxina, engatilhei o almoço (peito de frango grelhado, brócolis no vapor saltati all’aglio e olio, pirê de batata), lavei a cabeça, desci à garagem pra pegar as malas, comecei a fazer as malas, me irritei porque não achei um suéter que o Mirco me deu há dois anos e eu amo e não sei onde enfiei, experimentei roupas pra saber o que cabe e o que não cabe e conseqüentemente o que posso levar e o que não posso, e às quatro da tarde o Mirco chegou da oficina, rugindo de fome. Almoçamos, minhas olheiras assustaram a nós dois, fui tirar um ronquinho enquanto ele foi comprar luvas de borracha pra oficina, mais tarde pensamos em ir ao cinema mas desistimos e ficamos vendo TV. Pra variar, chapamos no sofá.

Postado por leticia em 08:37

09.03.05

blé

Ando meio assim sem sono, e quando acordo cedíssimo pego um livro, obviamente, e detono o bichinho. Domingo de manhã detonei La Stagione della Caccia, mais um Camilleri bem legal. Hoje foi a vez de The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde, que apesar de ser uma peça de teatro (eu ODEIOOOOOOOOOOOOOOO teatro) é bem legalzinho, mordaz, malvado, divertido – um ótimo passatempo. De hoje até a hora de viajar, na segunda, provavelmente só vou ter tempo de ler mais um mísero livrinho, porque tenho mil coisas pra fazer. A agitação pré-viagem ainda não tomou conta de mim, provavelmente porque eu detesto argentinos, detesto espanhol, detesto frio, vou pisar no Brasil só por dois dias e meio em Foz e não vai dar pra ir ao Rio, porque não tenho todo o dinheiro de que precisaria pra comprar tudo o que eu quero, porque meu cabelo tá uma merda, porque a situação econômica aqui (e com "aqui" me refiro à Itália no bojo) tá mais preta que o bico do peito da nega do leite.

A tradução legal que preciso entregar antes de viajar já foi devidamente terminada, agora falta dar uma superhipermegarevisada, trabalho muito dificultado pelo fato de que eu não tenho dicionário de português aqui. Se as mulas do hotel em Foz não derem pra trás, pelo menos esse problema vai ter sido resolvido nos próximos trabalhos, porque o Houaiss em CD já foi expedido pro Paraná. Também pretendo comprar um teclado brasileiro, pra parar com essa palhaçada de ter que acentuar na mão.

E juntamente com a revisão da tradução, com as aulas que me restam a dar, com as manhãs na oficina e com o dia-a-dia da casa, ainda tenho que pegar a mala na garagem, selecionar as roupas de verão que vou levar, achar lugar pra botar o resto (e essa vai ser a parte mais difícil, porque os armários estão cheios de volumosas roupas de inverno e não tem lugar nem pra mais uma calcinha, quanto mais pra blusinhas e afins), deixar uns molhinhos prontos pro Mirco poder almoçar sem estresse enquanto eu não estiver, tomar cuidado pra não deixar nada de estragável na geladeira senão o Mirco esquece e quando voltarmos vai ter um fungo gigante e mutante dentro, passar as roupas de verão que estão desde setembro enfiadas em malas na garagem, preparar o beauty case, o kit quelóide e o kit protetor solar fator um milhão, fazer uma lista do que eu pretendo/preciso comprar, essas coisas. Caraca, agora lembrei que também tenho que levar os cachorros pra vacinar.

E aí quando voltar vai ser ralation total: em abril vence meu IPVA, meu INPS, meu permesso di soggiorno, e o relaxamento do meu cabelo. Maravilha.

Mas abril também é o mês do meu aniversário. Dia 17. Cês já pensaram no que vão me mandar de presente? Hein?

Postado por leticia em 19:11

08.03.05

E assim, como quem não quer nada:

- 6 kg e contando.

Postado por leticia em 07:15

que porre

Tem gente que parece que veio ao mundo só pra encher o saco dos outros, ainda que indiretamente.

A Suely Maria nunca me encheu o saco pessoalmente, embora às vezes escute Adriana Calcanhoto nas alturas. Mas o cafet... opa, o companheiro é aquele que fuma no elevador e ocupa duas vagas inteiras quando estaciona. E ontem mais um ser que gravita ao redor dela veio me torrar, pela segunda vez. Uma amiga, nordestina tão baixinha que mal se via na tela do videofone. Eu tava me preparando pra sair de casa pra dar aula, com a cabeça ainda na tradução que fiz durante a tarde, e o téééééém do interfone me deu um susto danado. Como não tava esperando ninguém, porque o hominho da máquina de lavar tinha vindo logo depois do almoço, não respondi, fiquei olhando pra ver se reconhecia. A pessoa tocou de novo, olhei melhor e vi um pedaço de óculos. Pensei que fosse a FeRnanda, embora ela, como pessoa educada, sempre ligue antes de passar aqui. Tirei o interfone do gancho e respondi em italiano: pronto? A criatura respondeu em português: vim visitar uma amiga. Quem é a sua amiga? Suely Maria. Caralhos estrelados, pensei, então por que é que você vem tocar o MEU interfone? Não é aqui não, minha senhora. Então dá pra senhora abrir pra mim por favor? Abri de muita má vontade e bati o interfone no gancho, extremamente irritada. É a segunda vez que essa anta toca aqui em casa. Na próxima vez não vou abrir. Se a Suely Maria até hoje não botou o nomezinho no interfone lá embaixo e se a retardada da amiga é incapaz de decorar em qual posição fica o botão dela, não é culpa minha. Tem cabimento uma coisa dessas?

Agora me diz por que meus vizinhos ou são mortos ou são incomodativos assim. Não podia ser alguém tipo a Vera Lúcia, que mora em Ripa também, e ensina literatura em Lecce e está quase sendo expulsa de casa pelos zilhões de livros que tem e o marido é um amor e fala português direitinho? Não podia ser, sei lá, tipo a Pamela, lá da escola, que embora tenha estudado espanhol na faculdade de Letras é uma menina legal e interessante? Não podia ser, deixa eu ver, um casal de arquitetos gays chiquérrimos e engraçados e gourmets? Não, jacaré. Fui cair no mesmo andar de SUELY MARIA. Como diz a Syrléa, devo ter tomado muita pinga no Santo Graal mesmo pra merecer uma coisa dessas.

Postado por leticia em 07:11

07.03.05

:))))))

Olha que coisa bubú que os Três Mosqueteiros me mandaram por e-mail hoje:

Dear Leticia,

It's a very big pleasure for us to have a teacher, like you, for the second
half of the course. You are a very good teacher but you are a very good
person too.
We sincerely love you.

See you soon,

XXXXX


Vou entupir todo mundo de alfajor quando voltar.

Postado por leticia em 07:14

05.03.05

Montalbano

Anna Tropeano se n’era appena andata via che la porta della càmmara del commissario si spalancò battendo contro la parete e Catarella trasì a palla allazzata.

"La prossima volta che entri così, ti sparo. E tu lo sai che parlo sul serio" fece calmissimo Montalbano.

Catarella però era troppo eccitato per darsene pinsèro.

"Dottori, ci voleva dire che mi hanno acchiamato dalla Quistura di Montilusa. S'arricorda che le dissi di quel concorso d'informaticcia? Accomincia lunedì matino e io mi devo apprisintari. Come farete senza di mia al tilifono?"

"Sopravviveremo, Cataré."

"A dottori dottori! Lei mi disse di non distrupparlo a mentre che parlava con la signora e io obbediente fui! Ma arrivò uno sdilluvio di tilifonate! Tutte le scrissi a sopra di questo pizzino."

"Dammelo e vattene."

Su una pagina di quaderno malamente strappata c’era scritto: "Ano tilifonato Vizzallo Guito Sera falle Losconte suo amicco Zito Rotonò Totano Ficuccio Cangialosi novamente di novo Sera falle di bolonia Cipollina Pinissi Cacomo".

Montalbano cominciò a grattarsi in tutto il corpo. Doveva trattarsi di una misteriosa forma d'allergia, ma ogni volta ch'era costretto a leggere uno scritto di Catarella lo pigliava un prurito irresistibile. Con santa pazienza decrittò:

Vassallo, Guido Serravalle l'amante bolognese di Michela, Loconte che vendeva stoffe per tende, il suo amico Nicolò Zito, Rotondo il mobiliere, Todaro quello delle piante e giardini, Riguccio l’elettricista, Cangelosi che aveva invitado a cena Michela, di nuovo Serravalle. Cipollina, Pinissi e Cacomo, ammesso e non concesso che si chiamassero così, non sapeva chi fossero, ma era facile supporre che avessero telefonato perché amici o conoscenti della vittima.

La Voce del Violino, Andrea Camilleri.

In-tra-du-zí-vel.

Postado por leticia em 09:27

uia

Hoje vai ser, aparentemente, um sábado cheio. Tenho que lavar o cabelo, torcer pro hominho da máquina de lavar vir, sair pra comprar umas saladas, frutas, verduras, porque só tenho cenoura e funcho na geladeira, traduzir, limpar a casa e estudar francês.

Logo de cara, duas boas notícias e uma não-notícia: só ontem fui ver que o cartão do Itaú tinha vencido em fevereiro e entrei em pânico, porque tava afinzona de comprar uns pacotes de farinha de mandioca e coisas assim em Foz do Iguaçu; pois bem, como é o banco mais eficiente do mundo, o cartão novo já tá lá em casa, e minha mãe vai mandar o bichinho lá pro hotel. Também recebi um e-mail de uma agência de traduções de NY que ficou mesmerizada com o meu currículo “impressive” e mandou umas coisas interessantes, que não vou detalhar porque não tem nada certo ainda. A não-notícia é que o hotel ainda não respondeu, o que anda me deixando num estado de irritação intergaláctico. Mais tarde mando um fax enfurecido avisando que se eu chegar lá e meus pacotes não estiverem separados num canto direitinho pra mim, vou rodar a maior baianona (mentira, que eu não sou disso, mas não custa assustar).

E agora dá licença que tenho umas coisas maneiras pra traduzir antes de tomar coragem pra lavar a cabeça. Ando cada vez mais de saco cheio com o assunto cabelo, e ultimamente sonho com freqüência que estou raspando a cabeça, feliz da vida.

Postado por leticia em 07:55

04.03.05

friday

O dia foi um mix balanceado de coisas boas e coisas chatas.

A manhã foi produtiva em termos de tradução, mas por outro lado o hominho que deveria ter vindo consertar a máquina de lavar roupa, que agora deu pra fazer escândalo durante a centrifugação, me deu o cano. Chovia sem parar, mas a temperatura subiu e não precisei deixar o aquecimento aceso.

Almocei massa curta saltata in padella com abobrinha e berinjela em cubinhos, deixei molho de tomate pronto pro Mirco e fui mais cedo à escola pra xerocar umas coisas pros meus alunos. A primeira aula era à uma da tarde, com os Três Mosqueteiros, mas a bendita fruta da turma não pôde vir, então me concentrei em corrigir o dever de casa dos meninos, tirar dúvidas e fazer uns exercícios do livro-texto que tratavam da Escócia – um dos meninos é fissurado com a Escócia. Notei que estavam meio macambúzios e perguntei qual era o problema. O problema era que ontem eles tinham feito umas contas (são cunhados e amigos de infância e se vêem com freqüência) e notaram que a minha parte do curso com eles estava terminando. É que a política da escola é usar um professor não-madrelingua na primeira metade do curso, pra poder explicar a gramática em italiano, e um madrelingua pra segunda parte. Só que, queridos, em todas as vezes em que estive nos EUA e nos dois anos e tanto em que vendi vinho e javali a americanos ricos na loja do Fabrizio o Louco, nenhum americano jamais me perguntou de onde eu vinha. Aliás, sim, em duas situações: pra perguntar se eu era californiana, sabe-se lá por quê, ou então depois que me ouviam discutindo em italiano à velocidade da luz com aquela mala do Fabrizio, o que os levava a concluir que 1) eu não era italiana, porque italiano não fala inglês direito nem a porrada, e 2) não era americana, porque americano não fala bem italiano nem a porrada. E dali vinha a curiosidade. Por isso posso, absolutamente sem modéstia porque vocês sabem que eu não tenho dessas coisas, entrar na categoria native speaker, e os meninos, quando lhes disse que não eram obrigados a mudar de professor, foram logo depois da aula tentar falar com a lourinha que cuida dessas coisas, que estava fora mas depois ligaria pra eles. Resultado: não vamos mudar coisa nenhuma, vou dar mais 30 horas de aula pra eles, o que eu acho ótimo, porque são espertos, estudiosos, interessantes e engraçados e me divirto horrores com eles, e, melhor, me esforço realmente pra dar uma aula interessante, e faço com prazer. Sempre levo algum material extra pra eles lerem ou fazerem exercícios, recomendo filmes, livros, gramáticas e dicionários, e até hoje não houve nenhuma pergunta deles que eu não tenha sido capaz de responder. Como além de tudo isso sou muito engraçada e temos vários interesses em comum, diga ao povo que fico. Claro que a lourinha me deu a notícia mais tarde, na presença do chefe e da chefa da sede de Gubbio. Adoro quando ela faz isso. Esse tipo de coisa me dá o poder, por exemplo, de pedir pra ser paga sexta-feira dia 11, quando normalmente o pagamento é feito dia 15, mas como dia 15 já vou estar em Foz...

Às quatro e meia chegaram Burbone e Burbina, com quem também me divirto, embora também pene um pouco porque o pai não é exatamente talentoso em termos de pronúncia e a filha demora um pouco a aprender em relação ao pai, o que às vezes a irrita e faz com que ela perca a concentração. A coisa boa é que Burbone é médico do trabalho, e ontem finalmente consegui entender o que diabos é o raio do gelone, essa maldita dor no pé que todo inverno me maltrata horrivelmente. Aqui se fala muito de gelone, mas obviamente os camponeses não sabem do que se trata, e já ouvi as explicações mais absurdas. Sempre achei que fosse algo articular, porque a pele estica com o inchaço e fica brilhante e vermelha; se fosse algum problema só de pele, teria descamação, ou feridas, ou sei lá. E ele me explicou que realmente é uma inflamação articular, ou seja, uma artrite, parecida com a artrite reumatóide – se vocês derem uma googlada vão entender o pé no saco que é. Coça, dói pra cacete, incha – aliás, rubor, calor, tumor, dor, tá tudo lá. A boa notícia é que a pomada de corticóide que uso pro quelóide também serve pra artrite, o que significa que não preciso gastar mais dinheiro comprando remédio pra esse gelone, que ainda por cima é doença de pobre, que nem frieira, unheiro, essas coisas cafonas.

Enquanto esperava a Quarentona Estressada, que teve problemas no trabalho e no celular e não veio à aula nem pôde nos avisar, bati um papo a jato com um novo professor, um metido a gostosão enfiado num paletó risca-de-giz que acho que acabou de entrar na escola mas já tem a maior intimidade com todo mundo. Basicamente fizemos um acordo: ele vai me dar aula de francês, e eu a ele de português. Assim ninguém desembolsa nada e todos ficam contentes.

Também aproveitei o tempo livre pra começar mais um Camilleri da série do Montalbano, "La Voce del Violino". Voltei mais cedo pra casa depois de esperar a Quarentona por 40 minutos, achei na internet o dicionário que eu tava querendo, vi que a porra do hotel não tinha respondido nada mas não quero nem saber e vou mandar entregar tudo lá mesmo e foda-se, fiz uma sopinha de legumes bobinha pro jantar, Mirco chegou dizendo que não íamos mais à festa do Roberto, felizmente, porque eu não tava com saco, sentamos no sofá pra ver C.S.I. que agora passa duas vezes por semana, quando começamos a bater cabeça fomos correndo pro quarto, e dormi com o Camilleri na mão e Grissom na TV, com o timer programado pra desligar em dez minutos porque eu não sou sócia da Light. Aliás, da Enel.

Postado por leticia em 23:47

03.03.05

afe!

Sabe uma coisa que me irrita imensamente? Gente/empresa/qualquer um que disponibiliza e-mail mas não responde.

Mandei um e-mail pro hotel em Foz perguntando se tinha algum problema dar o endereço deles pra entregar umas coisas que pretendo comprar pelo Submarino pra trazer pra cá. Jacaré respondeu? Nem eles. Eu acho muito, mas MUITO grave um HOTEL, of all things, ter um endereço de e-mail disponível no site mas não responder às mensagens que chegam. Sou eu que tô ficando maluca? Eu acho que não.

Postado por leticia em 16:15

02.03.05

ristorante

Hoje, depois de uma manhã insana na oficina, preparando as faturas de janeiro, finalmente consegui dar a primeira aula decente aos dois alunos de Petrignano. As aulas são no restaurante do hotel do Walter, que é o ex-companheiro da mãe do Ivan, o outro aluno. O Walter é um caso perdido, não presta atenção, não entende nada, não aprende mais nada, mas o Ivan é esperto. O problema é que eles nunca conseguem ter aula: esquecem, viajam, não podem, ficam doentes. Em teoria eu comecei com eles em fevereiro, mas só fui conhecer o Walter semana passada, e mesmo assim a aula durou meia hora porque ele chegou atrasado e saiu mais cedo.

A coisa engraçada é que a aula termina às oito, quando já tem alguns clientes chegando ao restaurante pra jantar. Nós ali, sentados num canto perto da porta da cozinha, discutindo o uso de there is e there are, e os clientes observando de longe enquanto pedem o filé com pimenta verde e verdura no alho. Outra coisa engraçada é que o toca-fitas que usamos pra ouvir as fitas do livro normalmente fica na cozinha, ao lado da máquina que faz a massa, ou seja, é todo coberto de respingos de massa de macarrão. Coisa de louco. Mas ontem até que me diverti, não posso reclamar. E também recebi uma sondagem telefônica de uma escola de línguas em Perugia onde nem lembrava mais de ter deixado o currículo. Parece que tem mais alguma louca querendo aprender Português, e se a garota concordar com o preço pode ser que role. Bom, muito bom.

Postado por leticia em 07:49

basta!

Quando saímos da casa da Roberta, irmã do Gianni, ontem à noite, o termômetro do carro marcava – 4° C. Não aguento mais esse frio chato! Non ce la faccio più! No 'ie la fo' più!

Paramos pra visitar o Leguinho na volta e encontramos o Leo soterrado embaixo de mil cobertores, Demo descoberto porque afinal de contas ele é peludo pra isso mesmo, e Leguinho todo encolhido no seu cantinho. Amarrei um suéter velho de lã no pescoço dele, outro na cintura, pra cobrir as costas, dei boa noite e voltamos pra casa.

Só me restou terminar The Old Man and the Sea, que é uma delícia, e começar The Curious Incident of the Dog in the Night-Time, que é outra delícia. E acordei hoje pensando em quanto fui idiota de não ter botado o ficus pra dentro de casa. Com esse frio, ele morreu, acho. Os cravos estão florescendo numa boa, o cactus vai bem, obrigado, as tulipas devagarzinho vão se manifestando. Mas o ficus morreu, e essa realmente me deixou triste.

Postado por leticia em 07:42