livritos de 2019 – pó de parede

Poucos dias antes de viajar pra Itália no final do ano passado a Ana me convidou pra tomar um café e dar um pulo numa livraria que abriu recentemente lá no centro da cidade. A minha amiga Fer já tinha me convidado pra um evento infantil lá, mas não lembro por qual motivo eu não pude ir com a Carol. Como eu comentei no nosso episódio sobre o mercado editorial, a experiência de estar numa livraria menor é bem diferente. Sim, eu já tive experiências muito boas em livrarias de redes, porque o pessoal costuma ser jovem e bem treinado, inteirado das novidades e tal, mas numa loja onde há pouca gente – e, nesse caso, menos títulos, pois só há livros de editoras independentes à venda – você acaba descobrindo, com ou sem a ajuda de quem estiver te atendendo, pérolas que costumam passar despercebidas em meio ao ruído de best-sellers, livros de colorir da Peppa Pig e canetas coloridas da Stabilo (inclusive amo).

Pois bem, tomamos o nosso café e passamos na livraria, onde obviamente não me contive e fiz lindas comprinhas: o Pó de Parede, do qual vou falar agora, um de microcontos que li logo depois, um sobre Cuba que dei de presente e um sobre a Turquia que ainda não li. Todos lindinhos, o miolo em papel mais grossinho, textura delícia, cor gostosa pros olhos – e todos de autores que eu não conhecia. O Pó de Parede e o de microcontos foram indicações da Ana; confesso que eu não conhecia a Carol Bensimon e fiquei curiosa porque gosto muito de contos, é um formato que sempre me agradou. O livro é da Não Editora (que nome maravilhoso).

Pois bem, o primeiro conto, A Caixa, é o mais longo dos três. Os outros dois são mais ou menos do mesmo tamanho. Meu preferido é o último, Capitão Capivara, mas o trecho abaixo é do primeiro mesmo. Gostei bastante do jeito dela escrever, das coisas que ela observa, das analogias que faz. É um estilo bem próprio que acho que se eu ler novamente vou reconhecer imediatamente como dela, sabe. Vejam que delícia:

Pegue um dia de calor. O bairro está fervendo e se preparando para as férias. Eu dentro do ônibus escolar. Uma bala gigante, do tipo que contam já ter matado crianças, passeia pelo interior das minhas bochechas. … O bairro vai passando na janela, os cheiros dos almoços se misturam no meu nariz e as casas se repetem como num gibi feito por um desenhista preguiçoso, mas uma floreira na sacada é suficiente para acreditarmos em calor humano. Não há muita gente andando por aí, faz calor pra burro mesmo, e os cachorros devem estar dentro de casa fazendo cocô sobre jornais porque os seus donos não vão encarar um passeio com eles agora. Sigo olhando mais do mesmo, então começo a sentir sobre mim o olhar de alguém. Viro para o lado, para a outra fila de bancos. Tomás está me encarando com aquela cara inocente dele. O Tomás é um menino que também não costuma falar muito com os outros, porque é ruivo, intensamente ruivo com um milhão de sardas, e isso gera um monte de apelidos e implicâncias, mas a impressão que dá é que ele não se importa, porque está sempre sorrindo e bancando o bobo. Como agora. Eu tenho um cabelo ridículo cortado por uma amiga da minha mãe que também faz mapa astral, é isso que Tomás está vendo. Uma franja para brincar de esconde-esconde. Tento me vestir como meus colegas, mas alguma coisa sempre dá errado: ou chego atrasada demais na moda, ou visto duas coisas que sim todo mundo está usando, mas não ao mesmo tempo. Tomás sorri e vem sentar junto comigo. Sua mochila aterrissa antes que ele chegue. Pah no banco, e ele senta depois. Oi, Alice. Oi. Tomás gosta muito de falar sobre guerreiros e elfos, não duvido que logo comece, e também teorias sobre Jack, o Estripador, o que pode ser divertido se eu puder dizer uma coisa ou outra sobre histórias de detetive e música barulhenta, mas acontece que ainda não me sinto disposta a fundar o clube dos anormais.

Enfim, recomendo, principalmente se você gosta de contos. E ainda por cima conta pro desafio das Desqualificadas – no meu caso, vai na categoria 4, autora brasileira. A autora é de Porto Alegre, então se você for gaúcha ou de PoA, já mata as duas categorias de bônus também ;)

livritos de 2019

Detesto resoluções de ano novo. Nunca cumpro nada; não funciono bem com planos, não tenho objetivos, não sou ambiciosa (mas sou repetitiva, como vocês já notaram). De modo que minhas únicas decisões pra esse ano foram ler mais que o ano passado e ir dormir mais cedo, por uma questão de saúde mesmo: dormir pouco e mal acaba comigo e quando vou dormir mais cedo eu durmo infinitamente melhor. Por enquanto, estou conseguindo manter a parte do sono. A parte dos livros está sendo facilitada pelo desafio das Desqualificadas.

Se por algum motivo incompreensível e imperdoável você não sabe o que é o desafio das Desqualificadas, vai dar uma olhadinha no Insta delas e estudar a lista das leituaras, vai. (E APROVEITA E OUVE O PODCAST, NÉ)

O negócio é o seguinte: você pode nunca ter reparado, mas tenho certeza que a vida toda cê leu muito mais autores homens que mulheres. Mas assim, MUITO MUITO MUITO mais. Porque mulheres escrevem menos? Talvez sim. Mas por que mulheres escrevem menos? (Note que a diferença entre porque e por que é proposital, tá, leia em voz alta que faz sentido.) Porque são menos incentivadas a escrever. Porque acham que têm pouco a dizer. Porque a síndrome do impostor bate forte. Porque falta tempo mesmo, já que trabalhamos muito mais do que os homems, como todo mundo que raciocina tá careca que saber. E certamente há preconceito com autoras mulheres também, há preconceito contra a chamada chick lit (CHER, COMO ODEIO ESSE TERMO), homens normalmente não têm saco sequer pra OUVIR mulheres, que dirá pra LER mulheres.

Faz parte da nossa política no Pistolando trazer convidadas mulheres sempre que dá (e quase sempre dá) pra falar de todos os assuntos, tanto que só temos um episódio especificamente com temática feminina. Faz parte desse desafio de leitura ler livros de autoras mulheres, não necessariamente falando de temas femininos, e facilita bastante ter essa listinha pra dar ideias do que ler. No insta elas dão várias dicas pro caso de você empacar e não ter ideias de autoras nesses temas. Se você achar que não vai gostar do que elas indicaram, pede outra sugestão. Elas são umas fofas e vão dar outras ideias e no final das contas você vai acabar descobrindo um monte de autoras mulheres sensacionais que nem sabia que existiam.

Por acaso o primeiro livro que eu li esse ano correspondeu ao número 1 do desafio, um livro escrito por uma mulher negra, e além disso também fala de feminismo. Interseccional, que era exatamente o que eu precisava ler agora. Infelizmente eu sou uma anta e só fui lê-lo agora, sendo que o livro é de 1981 e estava lá em casa na Itália há um bom tempo. O resultado é que o livro está TODO sublinhado – e eu normalmente não escrevo em livro de maneira alguma – e entupido de post-its. Foi bem difícil escolher trechos pra botar aqui, porque, meus amores, esse livro é um canavial de insights e uma chuva de socos na sua cara, o tempo todo. Se não leu ainda, leia, leia, leia, leia. Leia. Agora. Ontem. Aproveita e (ou ouve na íntegra, se preferir) a participação do Dann, da Aline e da Luiza na CCXP aqui e presta bem atenção na fala do Dann: ou vai todo mundo, ou não vai ninguém.

O livro, claro, é o Women, Race and Class (Mulheres, Raça e Classe), da Angela Davis.

Ela dá uma perspectiva histórica incrivelmente bem fundamentada e documentada do entrelaçamento dos movimentos antiescravagista, antirracista e sufragista nos EUA, mostrando como todas as vezes em que eles soltaram as mãos uns dos outros, deu ruim. Não tem outro jeito: todo mundo tem que caminhar junto. E ainda por cima fala mal do capitalismo também. Como não amar?

Na resenha da Boitempo (cliquem ali em cima e vão ver no site e COMPREM O LIVRO porque ô edição linda, puta merda):

Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, é uma obra fundamental para se entender as nuances das opressões. Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, da forma pela qual a mulher negra foi desumanizada, nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo. Além disso, a autora mostra a necessidade da não hierarquização das opressões, ou seja, o quanto é preciso considerar a intersecção de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo de sociedade.

Alguns trechos, começando com um pedaço sobre Sojourner Truth, que seria o nome do meu animal de estimação, se eu tivesse um, porque essa mulher foi absolutamente sensacional, uma força da natureza:

The leader of the provocateurs had argued that it was ridiculous for women to desire the vote, since they could not even walk over a puddle or get into a carriage without the help of a man. Sojourner Turth pointed out with compelling simplicity that she herself had never been helped over mud puddles or into carriages. “And ain’t I a woman?” With a voice like “rolling thunder,” she said, “Look at me! Look at my arm,” and rolled up her sleeve to reveal the “tremendous muscular power” of her arm.

I have ploughed, and planted, and gathered into barns and no man could head me! And ain’t I a woman? I could work as much and eat as much as a man – when I could get it – and bear the lash as well! And ain’t I a woman? I have borne thirteen children and seen them most all sold off to slavery, and when I cried out with my mother’s grief, none but Jesus heard me! And ain’t I a woman?

Mais um:

Even the most radical white abolitionists, basing their opposition to slavery on moral and humanitarian grounds, failed to understand that the rapidly developing capitalism of the North was also an oppressive system. They viewed slavery as a detestable and inhuman institution, an archaic transgression of justice. But they did not recognize that the white worker in the North, his or her status as “free” laborer notwithstanding, was not different from the enslaved “worker” in the South: both were victims of economic exploitation.

Pensem no que o Frederick Douglass tem a dizer, amores:

When women, because they are women, are dragged from their homes and hung upon lamp-posts; when their children are torn from their arms and their brains dashed upon the pavement; when they are objects of insult and outrage at every turn; when they are in danger of having their homes burtn down over their heads; when their children are not allowed to enter schoolds; then they will have [the same] urgency to obtain the ballot.

E ouçam com atenção suas próprias cabeças explodindo ao ver como tudo está interligado:

Bourgeois ideology – and particularly its racist ingredients – must really possess the power of dissolving real images of terror into obscurity and insignificance, and of fading horrible cries of suffering human beings into barely audible murmurings and then silence.

When the new century rolled around, a serious ideological marriage had linked racism and sexism in a new way. White supremacy and male supremacy, which had always had an easy courtship, openly embraced and consolidated the affair. During the first years of the twentieth century the influence of racist ideas was stronger than ever. The intellectual climate – even in progressive circles – seemed to be fatally infected with irrational notions about the superiority of the Anglo-Saxon race. This escalated promotion of racist propaganda was accompanied by a similarly accelerated promotion of ideas implying female inferiority. If people of color – at home and abroad – were portrayed as incompetent barbarians, women – white women, that is – were more rigorously depicted as mother-figures, whose fundamental raisson d’être was the nurturing of the male of the species. White women were learning that as mothers, they bore a very special responsibility in the struggle to safeguard white supremacy. After all, they were the “mothers of the race”. Although the term race allegedly referred to the “human race”, in practice – especially as the eugenics movement grew in popularity -0 little distinction was made between “the race” and “the Anglo-Saxon race.”

Serião, não dê o mole que eu dei, demorando tanto tempo pra ler isso. Vai lá no site da Boitempo e compra, lê, sublinha, marca, relê, cria um clube do livro, como o Kim Doria sugeriu no nosso episódio, e fala sobre ele, procura gente que entende mais do que você, faz pergunta. É um livro pra ser estudado, dissecado, questionado, compreendido, abraçado. Principalmente se você é homem, principalmente se você é branco/branca, principalmente se você é privilegiado(a) do ponto de vista econômico. Se for tudo isso junto, então, é leitura obrigatória.

P.S.: O Dann me passou esse link e achei pertinente, dá uma olhada aí.