livritos de 2019 – big little lies

Eu pessoalmente não gosto muito da ideia de colocar na categoria “livro de uma série” livros stand-alone que deram origem a séries – pra mim série de livros é mais de um livro – mas se elas autorizaram, quem sou eu pra dizer que não rola, não é mesmo. De modo que lá se vai mais um pro desafio das Desqualificadas.

O negócio é o seguinte: numa das viagens entre Brasil e Itália, num avião antigo em que eu não podia escolher o que ver na tela, acabei vendo um pedaço de algo que tinha a Reese Witherspoon e a Nicole Kidman e o Tarzan (ou o irmão dele, nunca sei), mas não sabia o que era porque peguei no meio e depois dormi no meio também. Tempos depois fiquei sabendo que se tratava de uma série da HBO, que depois fiquei sabendo que era baseada num livro, que depois fiquei sabendo que super valia a pena ver e ler. Vi? Na época não. Li o livro? Também não. Até que precisei ler pra gravar mais um episódio do Perdidos na Estante (lembram que ano passado eu reli e vi A Garota no Trem pra gravar?), e ora ora ora que beleza, o livro se encaixa na categoria 23 do desafio, dois coelhos com uma cajadada só. No podcast a gente comenta livro e série, de modo que vão lá ouvir. Mas fica aqui um breve parecer pra quem não tem saco pra escutar.

Trata-se de mais um caso de conteúdo legal – personagens bem desenvolvidas, apesar de algumas serem bem caricatas; história interessante, que prende a atenção, você quer saber o que vai acontecer depois – mas do ponto de vista estético, não é nenhuma obra-prima. Definitivamente não é uma maga das palavras com o a Gail Honeyman, mas tem coisas interessantes.

‘It’s sort of interesting when you think about it,’ said Jane, glancing at the photo once before she flicked it off with her thumb. ‘Why did I feel so weirdly violated by those two words? More than anything else that he did to me, it was those two words that hurt. Fat. Ugly.’

She spat out the two words. Madeline wished she would stop saying them.

‘I mean a fat, ugly man can still be funny and lovable and successful,’ continued Jane. ‘But it’s like it’s the most shameful thing for a woman to be.’

‘But you weren’t, you’re not-‘ began Madeline.

‘Yes, OK, but so what if I was!’ interrupted Jane. ‘What if I was! That’s my point. What if I was a bit overweight and not especially pretty? Why is that so terrible? So disgusting? Why is that the end of the world?’

Madeline found herself without words. To be fat and ugly actually would be the end of the world for her.

‘It’s because a woman’s entire self-worth rests on her looks,’ said Jane. ‘That’s why. It’s because we live in a beauty-obsesses society where the most important thing a woman can do is make herself attractive to men.’

‘Is that really true?’ said Madeline. For some reason she wanted to disagree. ‘Because you know I often feel secretly inferior to women like Renata and Jonathan’s bloody hot-shot wife. There they are, earning squillions and going to board meetings or whatever, and there’s me with my cute little part-time marketing job.’

‘Yes, but deep down you know that you win because you’re prettier,’ said Jane.

‘Well,’ said Madeline. ‘I don’t know about that.’ She caught herself caressing her hair and dropped her hand.

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Enfim, nenhum insight brilhante, mas é sempre bom ler coisas desse tipo. Melhor ainda se essas reflexões forem transpostas pra tela, onde o alcance é maior. Quanto mais gente pensando sobre isso, quanto mais fichas caírem, melhor.

Agora vão lá ouvir o Perdidos na Estante, vão.

livritos de 2019

Detesto resoluções de ano novo. Nunca cumpro nada; não funciono bem com planos, não tenho objetivos, não sou ambiciosa (mas sou repetitiva, como vocês já notaram). De modo que minhas únicas decisões pra esse ano foram ler mais que o ano passado e ir dormir mais cedo, por uma questão de saúde mesmo: dormir pouco e mal acaba comigo e quando vou dormir mais cedo eu durmo infinitamente melhor. Por enquanto, estou conseguindo manter a parte do sono. A parte dos livros está sendo facilitada pelo desafio das Desqualificadas.

Se por algum motivo incompreensível e imperdoável você não sabe o que é o desafio das Desqualificadas, vai dar uma olhadinha no Insta delas e estudar a lista das leituaras, vai. (E APROVEITA E OUVE O PODCAST, NÉ)

O negócio é o seguinte: você pode nunca ter reparado, mas tenho certeza que a vida toda cê leu muito mais autores homens que mulheres. Mas assim, MUITO MUITO MUITO mais. Porque mulheres escrevem menos? Talvez sim. Mas por que mulheres escrevem menos? (Note que a diferença entre porque e por que é proposital, tá, leia em voz alta que faz sentido.) Porque são menos incentivadas a escrever. Porque acham que têm pouco a dizer. Porque a síndrome do impostor bate forte. Porque falta tempo mesmo, já que trabalhamos muito mais do que os homems, como todo mundo que raciocina tá careca que saber. E certamente há preconceito com autoras mulheres também, há preconceito contra a chamada chick lit (CHER, COMO ODEIO ESSE TERMO), homens normalmente não têm saco sequer pra OUVIR mulheres, que dirá pra LER mulheres.

Faz parte da nossa política no Pistolando trazer convidadas mulheres sempre que dá (e quase sempre dá) pra falar de todos os assuntos, tanto que só temos um episódio especificamente com temática feminina. Faz parte desse desafio de leitura ler livros de autoras mulheres, não necessariamente falando de temas femininos, e facilita bastante ter essa listinha pra dar ideias do que ler. No insta elas dão várias dicas pro caso de você empacar e não ter ideias de autoras nesses temas. Se você achar que não vai gostar do que elas indicaram, pede outra sugestão. Elas são umas fofas e vão dar outras ideias e no final das contas você vai acabar descobrindo um monte de autoras mulheres sensacionais que nem sabia que existiam.

Por acaso o primeiro livro que eu li esse ano correspondeu ao número 1 do desafio, um livro escrito por uma mulher negra, e além disso também fala de feminismo. Interseccional, que era exatamente o que eu precisava ler agora. Infelizmente eu sou uma anta e só fui lê-lo agora, sendo que o livro é de 1981 e estava lá em casa na Itália há um bom tempo. O resultado é que o livro está TODO sublinhado – e eu normalmente não escrevo em livro de maneira alguma – e entupido de post-its. Foi bem difícil escolher trechos pra botar aqui, porque, meus amores, esse livro é um canavial de insights e uma chuva de socos na sua cara, o tempo todo. Se não leu ainda, leia, leia, leia, leia. Leia. Agora. Ontem. Aproveita e (ou ouve na íntegra, se preferir) a participação do Dann, da Aline e da Luiza na CCXP aqui e presta bem atenção na fala do Dann: ou vai todo mundo, ou não vai ninguém.

O livro, claro, é o Women, Race and Class (Mulheres, Raça e Classe), da Angela Davis.

Ela dá uma perspectiva histórica incrivelmente bem fundamentada e documentada do entrelaçamento dos movimentos antiescravagista, antirracista e sufragista nos EUA, mostrando como todas as vezes em que eles soltaram as mãos uns dos outros, deu ruim. Não tem outro jeito: todo mundo tem que caminhar junto. E ainda por cima fala mal do capitalismo também. Como não amar?

Na resenha da Boitempo (cliquem ali em cima e vão ver no site e COMPREM O LIVRO porque ô edição linda, puta merda):

Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, é uma obra fundamental para se entender as nuances das opressões. Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, da forma pela qual a mulher negra foi desumanizada, nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo. Além disso, a autora mostra a necessidade da não hierarquização das opressões, ou seja, o quanto é preciso considerar a intersecção de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo de sociedade.

Alguns trechos, começando com um pedaço sobre Sojourner Truth, que seria o nome do meu animal de estimação, se eu tivesse um, porque essa mulher foi absolutamente sensacional, uma força da natureza:

The leader of the provocateurs had argued that it was ridiculous for women to desire the vote, since they could not even walk over a puddle or get into a carriage without the help of a man. Sojourner Turth pointed out with compelling simplicity that she herself had never been helped over mud puddles or into carriages. “And ain’t I a woman?” With a voice like “rolling thunder,” she said, “Look at me! Look at my arm,” and rolled up her sleeve to reveal the “tremendous muscular power” of her arm.

I have ploughed, and planted, and gathered into barns and no man could head me! And ain’t I a woman? I could work as much and eat as much as a man – when I could get it – and bear the lash as well! And ain’t I a woman? I have borne thirteen children and seen them most all sold off to slavery, and when I cried out with my mother’s grief, none but Jesus heard me! And ain’t I a woman?

Mais um:

Even the most radical white abolitionists, basing their opposition to slavery on moral and humanitarian grounds, failed to understand that the rapidly developing capitalism of the North was also an oppressive system. They viewed slavery as a detestable and inhuman institution, an archaic transgression of justice. But they did not recognize that the white worker in the North, his or her status as “free” laborer notwithstanding, was not different from the enslaved “worker” in the South: both were victims of economic exploitation.

Pensem no que o Frederick Douglass tem a dizer, amores:

When women, because they are women, are dragged from their homes and hung upon lamp-posts; when their children are torn from their arms and their brains dashed upon the pavement; when they are objects of insult and outrage at every turn; when they are in danger of having their homes burtn down over their heads; when their children are not allowed to enter schoolds; then they will have [the same] urgency to obtain the ballot.

E ouçam com atenção suas próprias cabeças explodindo ao ver como tudo está interligado:

Bourgeois ideology – and particularly its racist ingredients – must really possess the power of dissolving real images of terror into obscurity and insignificance, and of fading horrible cries of suffering human beings into barely audible murmurings and then silence.

When the new century rolled around, a serious ideological marriage had linked racism and sexism in a new way. White supremacy and male supremacy, which had always had an easy courtship, openly embraced and consolidated the affair. During the first years of the twentieth century the influence of racist ideas was stronger than ever. The intellectual climate – even in progressive circles – seemed to be fatally infected with irrational notions about the superiority of the Anglo-Saxon race. This escalated promotion of racist propaganda was accompanied by a similarly accelerated promotion of ideas implying female inferiority. If people of color – at home and abroad – were portrayed as incompetent barbarians, women – white women, that is – were more rigorously depicted as mother-figures, whose fundamental raisson d’être was the nurturing of the male of the species. White women were learning that as mothers, they bore a very special responsibility in the struggle to safeguard white supremacy. After all, they were the “mothers of the race”. Although the term race allegedly referred to the “human race”, in practice – especially as the eugenics movement grew in popularity -0 little distinction was made between “the race” and “the Anglo-Saxon race.”

Serião, não dê o mole que eu dei, demorando tanto tempo pra ler isso. Vai lá no site da Boitempo e compra, lê, sublinha, marca, relê, cria um clube do livro, como o Kim Doria sugeriu no nosso episódio, e fala sobre ele, procura gente que entende mais do que você, faz pergunta. É um livro pra ser estudado, dissecado, questionado, compreendido, abraçado. Principalmente se você é homem, principalmente se você é branco/branca, principalmente se você é privilegiado(a) do ponto de vista econômico. Se for tudo isso junto, então, é leitura obrigatória.

P.S.: O Dann me passou esse link e achei pertinente, dá uma olhada aí.