the nix

Se minha memória não me falha, comprei esse livro por sugestão da Amazon. Como o título e a capa não diziam muita coisa, fui ler os reviews, que eram tão entusiasmados que acabei me deixando influenciar. Mas deixei ele quietinho na estante, junto com muitos outros que comprei e ainda não consegui ler, sem conseguir furar as múltiplas filas de leitura da minha vida – pós-graduação, vários clubes de leitura, grupo de estudo, desafios de leitura, podcast. O tamanho dele o deixa menos convidativo – é grosso e desconfortável demais pra ler na cama, pesado demais pra levar na bolsa.

Aí um dia ele aparece na minha timeline de alguma rede social, já não lembro qual. Pensei que podia ser uma boa ideia de livro de ficção pra alternar com as outras coisas mais intelectualmente desafiadoras que ando lendo, algo pra substituir o Alias Grace, que eu tinha terminado. Olhei pra ele, ele olhou pra mim, rolou um sentimento, comecei.

Rapaz… Que livro. Que livro!

Quem me conhece sabe que eu sou chata pra caramba não só com relação a tudo na vida, mas principalmente quanto à língua escrita. Há muitos livros que eu amo porque contam histórias, ou explicam conceitos, que eu considero interessantes e inteligentes. Mas são raros os que conseguem conjugar conteúdo shopster e forma, linguagem, modo de escrever, fora do comum. E quando isso acontece, eu sou fisgada na hora. The Nix é um deles.

O primeiro texto em inglês que eu realmente gostei de ler foi um conto do Roald Dahl. Não lembro mais qual era, mas eu ainda tava estudando no Britannia, era adolescente e não gostava de ler em inglês. Esse conto me pegou com as suas descrições inesperadas, com as associações de palavras pouco usuais – acho que foi a primeira vez que li algo como “terribly good”. Roald Dahl ainda é um dos meus escritores preferidos, certamente o contista que eu mais admiro no mundo inteiro ever. Depois dele fui ler Tolkien, por influência de um colega de turma do Britannia, e daí não parei mais de ler em inglês. Hoje 99% do que eu leio é nessa língua, e com o tempo eu fui ficando cada vez mais chata, porque tem MUITA coisa de qualidade, mas obviamente são poucos os que realmente conseguem fazer magia com as palavras.

Um exemplo de maga absoluta, sacerdotisa do inglês é a Zadie Smith – seu White Teeth é uma obra-prima de deixar qualquer um de queixo caído. Esse ano eu li Eleanor Oliphant is Completely Fine, de Gail Honeyman, que é um absoluto deleite, definitivamente a melhor leitura do ano (um obrigado gigantesco à rainha Vevila, que me passou essa maravilha). The Nix está na mesma categoria.

O autor é Nathan Hill, que eu até então desconhecia. Não sabia absolutamente nada sobre o livro antes de começar a ler, pois escolhi ler só os reviews sem spoiler. A história tem mil camadas, mas em nenhum momento você se perde; tudo é muito bem amarrado. As personagens são muito bem desenvolvidas e as situações inusitadas são maravilhosamente críveis e descritas com palavras escolhidas a dedo. Camelo e lata de sopa de tomate da Campbell’s na mesma cena? Tem. Qualquer coisa que eu disser além disso vai ser spoiler, então paro por aqui.

Coisas assim bem escritas têm dois efeitos possíveis sobre mim: ou me dão vontade de parar tudo o que eu tô fazendo pra sentar e escrever alguma coisa, qualquer coisa, ou deixam em mim a certeza de que jamais devo escrever mais nada na vida, nem receita de bolo, porque é impossível sair algo tão habilidoso quanto o que eu acabei de ler. De qualquer forma, fui dormir com um sorriso no rosto – literalmente; quando dei por mim, estava deitada no escuro sorrindo, ouvindo os roncos do Mirco ao meu lado, pilhada demais de felicidade pra conseguir dormir. Sonhei com o livro a noite toda.

Acabei de ver que tem em português, então aconselho vivamente que leiam. Ótimo presente de Natal. Busquem nas livrarias de bairro, perguntem se tem na sua biblioteca de estimação.

livritos de 2019 – big little lies

Eu pessoalmente não gosto muito da ideia de colocar na categoria “livro de uma série” livros stand-alone que deram origem a séries – pra mim série de livros é mais de um livro – mas se elas autorizaram, quem sou eu pra dizer que não rola, não é mesmo. De modo que lá se vai mais um pro desafio das Desqualificadas.

O negócio é o seguinte: numa das viagens entre Brasil e Itália, num avião antigo em que eu não podia escolher o que ver na tela, acabei vendo um pedaço de algo que tinha a Reese Witherspoon e a Nicole Kidman e o Tarzan (ou o irmão dele, nunca sei), mas não sabia o que era porque peguei no meio e depois dormi no meio também. Tempos depois fiquei sabendo que se tratava de uma série da HBO, que depois fiquei sabendo que era baseada num livro, que depois fiquei sabendo que super valia a pena ver e ler. Vi? Na época não. Li o livro? Também não. Até que precisei ler pra gravar mais um episódio do Perdidos na Estante (lembram que ano passado eu reli e vi A Garota no Trem pra gravar?), e ora ora ora que beleza, o livro se encaixa na categoria 23 do desafio, dois coelhos com uma cajadada só. No podcast a gente comenta livro e série, de modo que vão lá ouvir. Mas fica aqui um breve parecer pra quem não tem saco pra escutar.

Trata-se de mais um caso de conteúdo legal – personagens bem desenvolvidas, apesar de algumas serem bem caricatas; história interessante, que prende a atenção, você quer saber o que vai acontecer depois – mas do ponto de vista estético, não é nenhuma obra-prima. Definitivamente não é uma maga das palavras com o a Gail Honeyman, mas tem coisas interessantes.

‘It’s sort of interesting when you think about it,’ said Jane, glancing at the photo once before she flicked it off with her thumb. ‘Why did I feel so weirdly violated by those two words? More than anything else that he did to me, it was those two words that hurt. Fat. Ugly.’

She spat out the two words. Madeline wished she would stop saying them.

‘I mean a fat, ugly man can still be funny and lovable and successful,’ continued Jane. ‘But it’s like it’s the most shameful thing for a woman to be.’

‘But you weren’t, you’re not-‘ began Madeline.

‘Yes, OK, but so what if I was!’ interrupted Jane. ‘What if I was! That’s my point. What if I was a bit overweight and not especially pretty? Why is that so terrible? So disgusting? Why is that the end of the world?’

Madeline found herself without words. To be fat and ugly actually would be the end of the world for her.

‘It’s because a woman’s entire self-worth rests on her looks,’ said Jane. ‘That’s why. It’s because we live in a beauty-obsesses society where the most important thing a woman can do is make herself attractive to men.’

‘Is that really true?’ said Madeline. For some reason she wanted to disagree. ‘Because you know I often feel secretly inferior to women like Renata and Jonathan’s bloody hot-shot wife. There they are, earning squillions and going to board meetings or whatever, and there’s me with my cute little part-time marketing job.’

‘Yes, but deep down you know that you win because you’re prettier,’ said Jane.

‘Well,’ said Madeline. ‘I don’t know about that.’ She caught herself caressing her hair and dropped her hand.

**

Enfim, nenhum insight brilhante, mas é sempre bom ler coisas desse tipo. Melhor ainda se essas reflexões forem transpostas pra tela, onde o alcance é maior. Quanto mais gente pensando sobre isso, quanto mais fichas caírem, melhor.

Agora vão lá ouvir o Perdidos na Estante, vão.

livritos 2019 – ada la scienziata

E temos aqui mais um pro desafio, na categoria Livro Infantil. Esse aqui foi um que o Mirco achou legal e comprou pra Carol, e realmente é uma gracinha. O original se chama Ada Twist, Scientist, e ele é muito, muito bonitinho. A autora é Andrea Beaty e as ilustrações, absolutamente adoráveis, são de David Roberts.

O livro conta a história de Ada (quem adivinhar de onde veio esse nome, ganha um punhado de good vibes de presente), menina negra, com pais estilosíssimos e um irmão um tanto quanto banana, que é claramente uma cientista nata e faz uma certa bagunça de gente incompreendida até os pais entenderem que precisam lidar com isso porque o que ela faz é ciência e ponto final. Os desenhos são lindos, a Ada é uma fofura e o texto, bem simples, é uma delicinha de ler. Lembrem-se: REPRESENTATIVIDADE É TUDO. Meninas PRECISAM ver personagens meninas em todo tipo de literatura e mídia, fazendo todos os tipos de coisas. Meninas negras precisam mais ainda.

Não achei tradução em português e o original em inglês na Amazon é carérrimo, mas se por ventura alguém tiver acesso, leia porque é muito legalzinho mesmo. Carol ainda gosta também desses livros pra crianças menores e já leu esse várias vezes; ganhou o Selo Cabela de Livro Maneiro :D

livritos de 2019 – interrompidos

O outro livro que comprei na Barbante foi o Interrompidos, de Alê Motta, também por indicação da Ana. Foi publicado pela Editora Reformatório (o site tá fora do ar, ao que parece) e é uma edição meio nhé (a cada não sei quantos contos há uma página com uma foto em preto e branco de resolução duvidosa, mas o papel é legalzinho). São microcontos um tanto quanto mórbidos e você lê o livro todo em uma tacada só, bem rapidinho. É um formato interessante, que requer uma certa genialidade pra funcionar direito; tem alguns realmente muito bons, mas ao terminar o livro fiquei com a impressão de que muitos eram parecidos.

Gosto bastante do primeiro, que já dá o tom de como serão os outros:

Quebra de contrato

Meu marido é um cara bonito. Sarado, charmoso, aquele bad boy que domina, enlouquece e arrasa. Um kit perdição.
Os processos de assédio estão na moda. E os homens cono vítimas são certeza de vitória. Chega daquela novela de mulher oprimida. Homem lindo e oprimido é a nova tendência.
Finalmente ele pegou sua chefe. A conquista mais trabalhosa. Fiz as contas, analisei as estatísticas. Processo com vitória garantida. Vamos ganhar muito dinheiro.
Ele sorri, satisfeito com a missão cumprida. Eu sorrio porque planejo meu futuro. Viúva rica é a nova tendência.

É legal, mas não é oooooooooh. Interessantinho, e só.

livritos de 2019 – pó de parede

Poucos dias antes de viajar pra Itália no final do ano passado a Ana me convidou pra tomar um café e dar um pulo numa livraria que abriu recentemente lá no centro da cidade. A minha amiga Fer já tinha me convidado pra um evento infantil lá, mas não lembro por qual motivo eu não pude ir com a Carol. Como eu comentei no nosso episódio sobre o mercado editorial, a experiência de estar numa livraria menor é bem diferente. Sim, eu já tive experiências muito boas em livrarias de redes, porque o pessoal costuma ser jovem e bem treinado, inteirado das novidades e tal, mas numa loja onde há pouca gente – e, nesse caso, menos títulos, pois só há livros de editoras independentes à venda – você acaba descobrindo, com ou sem a ajuda de quem estiver te atendendo, pérolas que costumam passar despercebidas em meio ao ruído de best-sellers, livros de colorir da Peppa Pig e canetas coloridas da Stabilo (inclusive amo).

Pois bem, tomamos o nosso café e passamos na livraria, onde obviamente não me contive e fiz lindas comprinhas: o Pó de Parede, do qual vou falar agora, um de microcontos que li logo depois, um sobre Cuba que dei de presente e um sobre a Turquia que ainda não li. Todos lindinhos, o miolo em papel mais grossinho, textura delícia, cor gostosa pros olhos – e todos de autores que eu não conhecia. O Pó de Parede e o de microcontos foram indicações da Ana; confesso que eu não conhecia a Carol Bensimon e fiquei curiosa porque gosto muito de contos, é um formato que sempre me agradou. O livro é da Não Editora (que nome maravilhoso).

Pois bem, o primeiro conto, A Caixa, é o mais longo dos três. Os outros dois são mais ou menos do mesmo tamanho. Meu preferido é o último, Capitão Capivara, mas o trecho abaixo é do primeiro mesmo. Gostei bastante do jeito dela escrever, das coisas que ela observa, das analogias que faz. É um estilo bem próprio que acho que se eu ler novamente vou reconhecer imediatamente como dela, sabe. Vejam que delícia:

Pegue um dia de calor. O bairro está fervendo e se preparando para as férias. Eu dentro do ônibus escolar. Uma bala gigante, do tipo que contam já ter matado crianças, passeia pelo interior das minhas bochechas. … O bairro vai passando na janela, os cheiros dos almoços se misturam no meu nariz e as casas se repetem como num gibi feito por um desenhista preguiçoso, mas uma floreira na sacada é suficiente para acreditarmos em calor humano. Não há muita gente andando por aí, faz calor pra burro mesmo, e os cachorros devem estar dentro de casa fazendo cocô sobre jornais porque os seus donos não vão encarar um passeio com eles agora. Sigo olhando mais do mesmo, então começo a sentir sobre mim o olhar de alguém. Viro para o lado, para a outra fila de bancos. Tomás está me encarando com aquela cara inocente dele. O Tomás é um menino que também não costuma falar muito com os outros, porque é ruivo, intensamente ruivo com um milhão de sardas, e isso gera um monte de apelidos e implicâncias, mas a impressão que dá é que ele não se importa, porque está sempre sorrindo e bancando o bobo. Como agora. Eu tenho um cabelo ridículo cortado por uma amiga da minha mãe que também faz mapa astral, é isso que Tomás está vendo. Uma franja para brincar de esconde-esconde. Tento me vestir como meus colegas, mas alguma coisa sempre dá errado: ou chego atrasada demais na moda, ou visto duas coisas que sim todo mundo está usando, mas não ao mesmo tempo. Tomás sorri e vem sentar junto comigo. Sua mochila aterrissa antes que ele chegue. Pah no banco, e ele senta depois. Oi, Alice. Oi. Tomás gosta muito de falar sobre guerreiros e elfos, não duvido que logo comece, e também teorias sobre Jack, o Estripador, o que pode ser divertido se eu puder dizer uma coisa ou outra sobre histórias de detetive e música barulhenta, mas acontece que ainda não me sinto disposta a fundar o clube dos anormais.

Enfim, recomendo, principalmente se você gosta de contos. E ainda por cima conta pro desafio das Desqualificadas – no meu caso, vai na categoria 4, autora brasileira. A autora é de Porto Alegre, então se você for gaúcha ou de PoA, já mata as duas categorias de bônus também ;)

e não é só isso!

Não contente em escrever aquele trambolhão de post xicante sobre a Davis, cá estou novamente falando sobre o segundo livro do ano, que eu achei que não cabia no desafio, mas ORA, ORA, ORA, eu estava enganada, cabe sim! Cabe na categoria 12, livro vencedor de algum prêmio, pois ganhou o British Book Awards! Rá! Dois já foram, faltam 22, dois patinhos na lagoa, hohoho.

Eu tava de olho nele há um tempo, porque a safada da Amazon tava jogando essa sugestão na minha cara há meses. Resisti bravamente por motivo de: TENHO LIVROS DEMAIS ÇOCORR. Até que a belíssima lindíssima maravilhosíssima Vevila veio ao meu resgate e largou esse livro na minha mão quando nos encontramos em Londres dizendo simplesmente “leia porque você vai gostar”. Eu atualmente tô fazendo com hype de livros a mesma coisa que faço com hype de filmes: fujo de sinopses assim como fujo de trailers, então não tinha a menor ideia do que esperar.

Senhores… Tinha MUITO tempo que um livro não me pegava desse jeito. Devorei em três dias, perdi horas de sono, deixei de fazer faxina, atrasei o almoço, atrasei um artigo pra pós, sonhei com ele. Porque assim, a tetralogia napolitana da Ferrante me pegou demais pela história e pelo desenvolvimento das personagens no ano passado, mas como eu comentei (estou com preguiça de ir buscar os links, vão lá ver nos posts de dezembro), ela não é, pra mim, uma maga das palavras. Mas a Gail Honeyman é uma maga das palavras. Há anos – não lembro quantos, na real – um livro não me pegava pela forma tanto quanto pelo conteúdo tanto quanto esse me pegou. Leitura absolutamente deliciosa, e recomendo muitíssimo a leitura em inglês, se possível.

Trata-se de Eleanor Oliphant is Completely Fine (Eleanor Oliphant Está Muito Bem), de Gail Honeyman.

O lance é o seguinte, e PODE CONTER SPOILERS: a personagem principal é muito interessante, de uma maneira muito estranha e paradoxal. Porque ela tem um monte de conhecimentos aparentemente inúteis e prioridades muito ridículas (muitas das quais são minhas também hahahahahah) e ao mesmo tempo ZERO conhecimento de como o mundo funciona, e o motivo pra isso a gente vai desvendando aos poucos. A meu ver ela só é interessante porque existe um motivo pra isso, do contrário seria somente uma pessoa incrivelmente, irremediavelmente chata.

O vocabulário e o senso de observação que a autora bota, respectivamente, na boca e no cérebro da Eleanor são absolutamente deliciosos. Deleitem-se:

A young man with a grey shirt and a shiny tie was staring at the banks of giant TV screens. I approached, and informed him that I wished to purchase a computer. He looked scared.

‘Desktop laptop tablet,’ he intoned. I had no idea what he was talking about.

‘I haven’t bought a computer before, Liam,’ I explained, reading his name badge. ‘I’m a very inexperienced technology consumer.’

He pulled at the collar of his shirt, as though trying to free his enormous Adam’s apple from its constraints. He had the look of a gazelle or an impala, one of those boring beige animals with large, round eyes on the sides of its face. The kind of animal that always gets eaten by a leopard in the end.

This was a rocky start.

Mais não posto, senão é spoiler. A história é uma delícia, o desenvolvimento das personagens é ótimo, a linguagem é maravilhosa, os diálogos são fantásticos, é um primor de livro. Recomendo DEMAIS da conta.

livritos de 2019

Detesto resoluções de ano novo. Nunca cumpro nada; não funciono bem com planos, não tenho objetivos, não sou ambiciosa (mas sou repetitiva, como vocês já notaram). De modo que minhas únicas decisões pra esse ano foram ler mais que o ano passado e ir dormir mais cedo, por uma questão de saúde mesmo: dormir pouco e mal acaba comigo e quando vou dormir mais cedo eu durmo infinitamente melhor. Por enquanto, estou conseguindo manter a parte do sono. A parte dos livros está sendo facilitada pelo desafio das Desqualificadas.

Se por algum motivo incompreensível e imperdoável você não sabe o que é o desafio das Desqualificadas, vai dar uma olhadinha no Insta delas e estudar a lista das leituaras, vai. (E APROVEITA E OUVE O PODCAST, NÉ)

O negócio é o seguinte: você pode nunca ter reparado, mas tenho certeza que a vida toda cê leu muito mais autores homens que mulheres. Mas assim, MUITO MUITO MUITO mais. Porque mulheres escrevem menos? Talvez sim. Mas por que mulheres escrevem menos? (Note que a diferença entre porque e por que é proposital, tá, leia em voz alta que faz sentido.) Porque são menos incentivadas a escrever. Porque acham que têm pouco a dizer. Porque a síndrome do impostor bate forte. Porque falta tempo mesmo, já que trabalhamos muito mais do que os homems, como todo mundo que raciocina tá careca que saber. E certamente há preconceito com autoras mulheres também, há preconceito contra a chamada chick lit (CHER, COMO ODEIO ESSE TERMO), homens normalmente não têm saco sequer pra OUVIR mulheres, que dirá pra LER mulheres.

Faz parte da nossa política no Pistolando trazer convidadas mulheres sempre que dá (e quase sempre dá) pra falar de todos os assuntos, tanto que só temos um episódio especificamente com temática feminina. Faz parte desse desafio de leitura ler livros de autoras mulheres, não necessariamente falando de temas femininos, e facilita bastante ter essa listinha pra dar ideias do que ler. No insta elas dão várias dicas pro caso de você empacar e não ter ideias de autoras nesses temas. Se você achar que não vai gostar do que elas indicaram, pede outra sugestão. Elas são umas fofas e vão dar outras ideias e no final das contas você vai acabar descobrindo um monte de autoras mulheres sensacionais que nem sabia que existiam.

Por acaso o primeiro livro que eu li esse ano correspondeu ao número 1 do desafio, um livro escrito por uma mulher negra, e além disso também fala de feminismo. Interseccional, que era exatamente o que eu precisava ler agora. Infelizmente eu sou uma anta e só fui lê-lo agora, sendo que o livro é de 1981 e estava lá em casa na Itália há um bom tempo. O resultado é que o livro está TODO sublinhado – e eu normalmente não escrevo em livro de maneira alguma – e entupido de post-its. Foi bem difícil escolher trechos pra botar aqui, porque, meus amores, esse livro é um canavial de insights e uma chuva de socos na sua cara, o tempo todo. Se não leu ainda, leia, leia, leia, leia. Leia. Agora. Ontem. Aproveita e (ou ouve na íntegra, se preferir) a participação do Dann, da Aline e da Luiza na CCXP aqui e presta bem atenção na fala do Dann: ou vai todo mundo, ou não vai ninguém.

O livro, claro, é o Women, Race and Class (Mulheres, Raça e Classe), da Angela Davis.

Ela dá uma perspectiva histórica incrivelmente bem fundamentada e documentada do entrelaçamento dos movimentos antiescravagista, antirracista e sufragista nos EUA, mostrando como todas as vezes em que eles soltaram as mãos uns dos outros, deu ruim. Não tem outro jeito: todo mundo tem que caminhar junto. E ainda por cima fala mal do capitalismo também. Como não amar?

Na resenha da Boitempo (cliquem ali em cima e vão ver no site e COMPREM O LIVRO porque ô edição linda, puta merda):

Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, é uma obra fundamental para se entender as nuances das opressões. Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, da forma pela qual a mulher negra foi desumanizada, nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo. Além disso, a autora mostra a necessidade da não hierarquização das opressões, ou seja, o quanto é preciso considerar a intersecção de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo de sociedade.

Alguns trechos, começando com um pedaço sobre Sojourner Truth, que seria o nome do meu animal de estimação, se eu tivesse um, porque essa mulher foi absolutamente sensacional, uma força da natureza:

The leader of the provocateurs had argued that it was ridiculous for women to desire the vote, since they could not even walk over a puddle or get into a carriage without the help of a man. Sojourner Turth pointed out with compelling simplicity that she herself had never been helped over mud puddles or into carriages. “And ain’t I a woman?” With a voice like “rolling thunder,” she said, “Look at me! Look at my arm,” and rolled up her sleeve to reveal the “tremendous muscular power” of her arm.

I have ploughed, and planted, and gathered into barns and no man could head me! And ain’t I a woman? I could work as much and eat as much as a man – when I could get it – and bear the lash as well! And ain’t I a woman? I have borne thirteen children and seen them most all sold off to slavery, and when I cried out with my mother’s grief, none but Jesus heard me! And ain’t I a woman?

Mais um:

Even the most radical white abolitionists, basing their opposition to slavery on moral and humanitarian grounds, failed to understand that the rapidly developing capitalism of the North was also an oppressive system. They viewed slavery as a detestable and inhuman institution, an archaic transgression of justice. But they did not recognize that the white worker in the North, his or her status as “free” laborer notwithstanding, was not different from the enslaved “worker” in the South: both were victims of economic exploitation.

Pensem no que o Frederick Douglass tem a dizer, amores:

When women, because they are women, are dragged from their homes and hung upon lamp-posts; when their children are torn from their arms and their brains dashed upon the pavement; when they are objects of insult and outrage at every turn; when they are in danger of having their homes burtn down over their heads; when their children are not allowed to enter schoolds; then they will have [the same] urgency to obtain the ballot.

E ouçam com atenção suas próprias cabeças explodindo ao ver como tudo está interligado:

Bourgeois ideology – and particularly its racist ingredients – must really possess the power of dissolving real images of terror into obscurity and insignificance, and of fading horrible cries of suffering human beings into barely audible murmurings and then silence.

When the new century rolled around, a serious ideological marriage had linked racism and sexism in a new way. White supremacy and male supremacy, which had always had an easy courtship, openly embraced and consolidated the affair. During the first years of the twentieth century the influence of racist ideas was stronger than ever. The intellectual climate – even in progressive circles – seemed to be fatally infected with irrational notions about the superiority of the Anglo-Saxon race. This escalated promotion of racist propaganda was accompanied by a similarly accelerated promotion of ideas implying female inferiority. If people of color – at home and abroad – were portrayed as incompetent barbarians, women – white women, that is – were more rigorously depicted as mother-figures, whose fundamental raisson d’être was the nurturing of the male of the species. White women were learning that as mothers, they bore a very special responsibility in the struggle to safeguard white supremacy. After all, they were the “mothers of the race”. Although the term race allegedly referred to the “human race”, in practice – especially as the eugenics movement grew in popularity -0 little distinction was made between “the race” and “the Anglo-Saxon race.”

Serião, não dê o mole que eu dei, demorando tanto tempo pra ler isso. Vai lá no site da Boitempo e compra, lê, sublinha, marca, relê, cria um clube do livro, como o Kim Doria sugeriu no nosso episódio, e fala sobre ele, procura gente que entende mais do que você, faz pergunta. É um livro pra ser estudado, dissecado, questionado, compreendido, abraçado. Principalmente se você é homem, principalmente se você é branco/branca, principalmente se você é privilegiado(a) do ponto de vista econômico. Se for tudo isso junto, então, é leitura obrigatória.

P.S.: O Dann me passou esse link e achei pertinente, dá uma olhada aí.

leituras de 2018 – parte 10, a cerejinha no topo

Unspeakable Things: Sex, Lies and Revolution (Laurie Penny)

Honestamente não lembro mais quem me deu a dica – algo me diz que foi o perfil do Conexão Feminista no Insta, mas não tenho certeza.

Como vem acontecendo com frequência, me arrependi de ter comprado esse livro no Kindle. Ultimamente prefiro usar o e-reader pra ler ficção; não-ficção requer um nível de atenção que só o papel me proporciona, e eu ODEIO ter que procurar os highlights no dispositivo, em vez de procurar os post-its colados nas páginas do livro impresso. Como esse foi de longe a melhor coisa que eu li esse ano, vou comprar o impresso também e atochar de post-it, até porque prevejo que ainda usarei MUITOS trechos dele pra ilustrar um monte de coisas aqui e no Pistolando, e consultar no papel ainda é mais fácil, pra mim, do que no e-reader.

Alguns:

Women, like any oppressed class, learn to fear our own rage. Our anger is legitimately terrifying. We know that if it ever gets out, we might get hurt, or worse, abandoned. One sure test of social privilege is how much anger you get to express without the threat of expulsion, arrest, or social exclusion, and so we force down our rage like rotten food until it festers and sickens us.

I believe that if anything can save us in this fraught and dazzling future, it is the rage of women and girls, of queers and freaks and sinners. I believe that the revolution will be feminist, and that when it comes it will be more intimate and more shocking than we have dared to imagine.

Public ‘career feminists’ have been more concerned with getting more women into ‘boardrooms’, when the problem is that there are altogether too many boardrooms, and none of them are on fire.

The world has changed for women and queers as much as it possibly could without upsetting the underlying structure of society, which is still sexist, homophobic and misogynist, because it relies for its continued existence on sexual control, on social inequality and on the unpaid labour of women and girls. Further change will require more ambition than we have hitherto been permitted.

Feminism is not a set of rules. It is not about taking rights away from men, as if there were a finite amount of liberty to go around. There is an abundance of liberty to be had if we have the guts to grasp it for everyone. Feminism is a social revolution, and a sexual revolution, and feminism is in no way content with a missionary position. It is about work, and about love, and about how one depends very much on the other. Feminism is about asking questions, and carrying on asking them even when the questions get uncomfortable.

While we’re on the subject, here’s what I want. I want mutiny. I want women and queers and everyone else who’s been worked over by gender and poverty and power, which by the way means most of us, to stop waiting to be rewarded for good behaviour. There are no gold stars coming and there are few good jobs left. Even if we buy the right clothes and work the right hours and show up every day with the same cold gag of a smile clenched between our teeth, there’s no guarantee we’ll be left alone to grow old before the floodwaters come in.

Forget it. It’s done. Thd social revolution that’s been choking and stumbling down a gauntlet of a century and more, the feminist fightback, the sexual re-scripting, the tearing up of old norms of race and class and gender, it has to start again, with all of us this tie, not just the rich white kids who needed it last. So it has to be mutiny.

It must be mutiny. Nothing else will do. I used to be less hardline about this. I used to vote, and sign petitions, and argue for change within the system. I stayed up all night to watch Obama get elected; I cheered for the Liberals in London. I thought that maybe if we kept asking for small change – a shift in attitudes about body hair, a slight increase in the minimum wage, maybe shut down a few porn shops and let the gays marry – then eventually we’d get the little bit of freedom we wanted, if it wasn’t too much trouble.

No more of that. Being a good girl gets you nowhere. Asking nicely for change gets you nowhere. Mutiny is necessary. Class mutiny, gender mutiny, sex mutiny, love mutiny. It’s got to be mutiny in our time.

TUDO ISSO SÓ NA INTRODUÇÃO. Eu quero casar com essa mulher, pelamooooooooooooooooooor

Enfim. Eu já indiquei ele no Pistolando e provavelmente continuarei indicando. Leiam. Leiam. Leiam.

leituras de 2018 – parte 9

The Name of the Wind (Patrick Rothfuss)

Então, eu li esse livro mais ou menos na época em que ele saiu, porque fez um sucesso danado e os fãs de fantasy amaram. O Sidney comentou que tinha amado e eu lembrava de ter lido, mas não lembrava da história, e na minha memória tinha achado o livro meio nhé. Resolvi reler. Agora que sentei pra escrever isso aqui, fui catar aqui no blog e vi que em 2010 eu escrevi isso aqui sobre ele:

Depois resolvi escolher um stand-alone, pra não ficar me desesperando enquanto o próximo livro não sai. Só que, sendo uma anta, não fui conferir na internet se o livro era realmente sozinho ou se parte de uma série. Adivinhem? É o primeiro de uma série. Adivinhem quando sai o próximo? Em DOIS MIL E ONZE! Puta que me pariu. De qualquer maneira, gostei pra caramba: The Name of the Wind. A resenha fala de uma mistura de Harry Potter com sei lá o que mais, porque uma parte da história se passa em uma universidade, mas achei o paralelo meio forçado. O cara escreve bem pra caramba, a história é envolvente e eu fiquei com ódio de mim mesma por ter escolhido um livro que acaba em cliffhanger e a continuação só sai ano que vem. Merda. Meu único problema com esse livro foram os nomes dos personagens. Kvothe? Que merda de nome é esse? Jack e David? Oi? Metade dos personagens tem nomes inventados de fantasy, quase sempre no mesmo nível de horror de “Kvothe”; a outra metade se chama Jack, Jimmy, Mary. Coisa mais broxante. Mas enfim, não se pode ter tudo, não é mesmo.

Notem que a minha nomescrotofobia é uma coisa antiga e recorrente na minha vida. Nessa segunda releitura também torci o nariz pros nomes, e não achei nenhuma Brastemp não, senhores.

Ou seja: não confie jamais na sua memória.

Mas enfim, a história tem coisas bem interessantes, o universo construído é maneiro, mas dessa vez meu santo não bateu, de verdade. Me lembrou um pouco a série Scandal, que parei de ver porque TUDO NO MUNDO MUNDIAL parecia ter algo a ver com a personagem principal, das borboletas batendo as asas no México a tsunamis na Indonésia, e aquilo foi me irritando de um jeito que acabei parando de ver. O mesmo acontece com esse personagem, e até agora não apareceu uma explicação plausível pra isso, então não me apaixonei não.

O problema é que o cliffhanger continua lá, então vou ser forçada a ler o segundo livro e me irritar porque o terceiro ainda não saiu, que tal?

O Ódio como Política (organizado por Esther Solano)

A capa é ve

Comprei esse livro no evento de podcasts que rolou na Tapera Taperá, em setembro. Só fui ler depois das eleições, e confesso que precisei prestar muita atenção e voltar pra reler vários trechos; estou desacostumada a ler coisas sérias assim sobre assuntos sérios. Mas a coletânea de textos é muito boa. Como qualquer coisa que eu falar não vai ser inteligente o suficiente, sugiro ouvir pessoas brilhantes comentando, aqui no Revolushow. Aproveitem e vejam também os vídeos do evento, que foi sensacional; aquele fim de semana foi um dos mais legais da minha vida, de verdade. Tem texto da Sabrina, do Carapanã, de um monte de gente foda. Vão lá e leiam, e comprem mais coisas da Boitempo porque eles são legais DEMAIS.

leituras de 2018 – parte 8

Noite Branca (Renato Guedes)

Jeremias: Pele (Rafael Calça)

Como eu disse antes, não sou muito fã de HQs, mas essas duas me conquistaram. O Noite Branca é bacana, mas o Jeremias, que foi indicação do Fafazinho e depois de outros amigos que comentaram, é sensacional. Fala de racismo de uma maneira muito tocante e as ilustrações são lindas. Vale MUITO a pena.

Storia della Bambina Perduta (Elena Ferrante)

O quarto livro fecha a tetralogia com chave de ouro, deixando muitas coisas inexplicadas e um monte de dúvidas na nossa cabeça. Leiam logo tudo e ouçam o EPEPa.

Lila é uma das melhores personagens literárias já escritas, ponto.

Forse ciò che aveva attratto Nino era l’impressione di aver trovato in Lila ciò che anche lui aveva presunto di avere e che ora, proprio per confronto, scopriva di non avere. Lei possedeva l’intelligenza e non la metteva a frutto, ma anzi la sperperava come una gran signora per la quale tutte le ricchezze del mondo sono solo un segno di volgarità. Questo era il dato di fatto che doveva aver ammaliato Nino: la gratuità dell’intelligenza di Lila. Essa si distingueva tra tante perché con naturalezza non si piegava a nessun addestramento, a nessun uso e a nessun fine. Tutti noi c’eravamo piegati e quel piegarci ci aveva – attraverso prove, fallimenti, successi – ridimensionati. Solo Lila niente e nessuno pareva ridimensionarla. Anzi, pur diventando con gli anni stupida e intrattabile come chiunque, le qualità che le avevamo attribuito sarebbero rimaste intatte, forse si sarebbero addirittura ingigantite. Anche quando la odiavamo finivamo per rispettarla e temerla. Non mi sorprendeva, a pensarci, che Nadia, pur avendola incontrata in poche occasioni, la detestasse e volesse farle del male. Lila le aveva preso Nino. Lila l’aveva umiliata nele sue credenze rivoluzionarie. Lila era cattiva e sapeva colpire prima di essere colpita. Lila era plebe ma rifiutava ogni redenzione. Insomma Lila era una nemica onorevole e nuocerle poteva essere una soddisfazione pura, senza il corredo dei sensi di colpa che di certo suscitava una vittima designata come Pasquale.

Talvez o que tivesse atraído Nino fosse a impressão de ter encontrado em Lila aquilo que ele também presumira ter e que agora, justamente pelo contraste, descobria que não tinha. Ela possuía inteligência e não tirava proveito disso, ao contrário, a
desperdiçava como uma aristocrata para quem todas as riquezas do mundo são apenas um sinal de vulgaridade. Esse era o dado de fato que deve ter deslumbrado Nino: a gratuidade da inteligência de Lila. Ela se distinguia entre tantas porque, com naturalidade, não se dobrava a nenhum adestramento, a nenhum uso e a nenhum fim . Todos nós nos dobráramos, e aquele dobrar-se — por meio de provas, fracassos, sucessos — nos redimensionara. Somente Lila, nada nem ninguém parecia redimensioná-la. Ao contrário, mesmo se tornando com o passar dos anos estúpida e intratável como qualquer um, as qualidades que lhe havíamos atribuído permaneceriam intactas, quem sabe até se agigantassem. Mesmo quando a odiávamos, acabávamos por respeitá-la e temê-la. Pensando nisso, não me surpreendia que Nadia, apesar de tê-la encontrado pouquíssimas
vezes, a detestasse e quisesse fazer mal a ela. Lila tomara Nino dela. Lila a humilhara em suas crenças revolucionárias. Lila era má e sabia atacar antes de ser atacada. Lila era plebe, mas recusava qualquer redenção. Em suma, Lila era uma inimiga notável e prejudicá-la podia ser uma satisfação pura, sem o adorno do sentimento de culpa que certamente suscitava uma vítima assinalada como Pasquale.