dolce far niente

Eu sou muito privilegiada e tenho uma vida muito confortável. Reconheço esse privilégio (parem de encher meu saco, EU SEI QUE SOU PRIVILEGIADA, não me venham com “ain mas assim até eu” porque cês sabem muito bem que “até eu” o cacete, como vou explicar depois pra ficar mais claro ainda) mas me recuso a me sentir culpada. Por um motivo muito simples: lembro muito bem do quanto eu trabalhava antes da Carol nascer. Saía de um emprego pro outro, de uma escola pra outra, do escritório pra loja em Assis, teve um período em que eu dava DEZ HORAS DE AULA por dia, minha última aula acabava às 22:30 e eu chegava em casa sem voz e chorando de exaustão. Isso durou alguns anos, e em 2006 apareceu a psoríase. Eu tava um dálmata, toda coberta de manchas e placas, e descamava tanto que precisava varrer o chão ao meu redor várias vezes por dia.

Não é legal.

Há uns anos, recém-chegada a Curitiba, numa conversa no famigerado grupo de mães da escola, o assunto de repente foi animais de estimação, e alguém comentou que não tinha cachorro porque não tinha tempo de cuidar. Uma outra respondeu que trabalhava 12 horas por dia, tava na terceira pós-graduação, e mesmo assim tinha dois cachorros e uma cacatua. Perguntei que horas ela ficava com o filho dela, já que o dia tem 24 horas pra todo mundo. Silêncio sepulcral no grupo.

Eu nunca entendi essa glorificação do workaholic. Acho ridículo, honestamente. Ridículo. A pessoa que só pensa em trabalhar está claramente neglicenciando, voluntariamente, todos os outros aspectos da sua vida. Isso é legal onde, zente? Que bosta de vida é, pensar só em trabalho e não socializar, não ler um livro, não ir ao cinema, não conhecer os memes atuais, não fazer atividade física, não dar atenção pros entes queridos, não ficar deitado olhando pro teto pensando na vida de vez em quando? Isso é glorificado por quê, caceta?

Quando eu trabalhava aquele tanto de horas por dia, ainda por cima lidando com o público, tava sempre tão cansada que não tinha vontade de conversar, de ler, de nada. Depois que comecei a trabalhar como freelancer, de casa, passei a organizar meu tempo da maneira que eu quero, e isso faz uma diferença brutal na minha vida. Eu trabalho bem menos que outros tradutores, porque eu sou muito, MUITO mais rápida do que qualquer outro tradutor que eu conheço. Nas horas em que não trabalho eu consigo malhar, ler, estudar, me inteirar dos memes, ficar sem fazer nada olhando pro teto ponderando sobre coisas que eu li e vi, sobre conversas que tive, sobre aulas às quais assisti, questionando minhas opiniões e certezas, tendo insights. Quando vou pegar a Carol na escola, eu já malhei, já trabalhei, já li, já ponderei sobre a vida, estou serena e com paciência pra ouvir todas as histórias bobinhas de escola da minha filha, responder às perguntas cabeludas dela, fazer pesquisa sobre os caetés com ela, explicar o livro que eu tô lendo (porque ela sempre pergunta). Jamais conseguiria dar a ela toda a atenção que ela merece se estivesse arrancando os cabelos e chorando de exaustão. Consigo preparar as pautas pro Pistolando, organizar a agenda do podcast, assediar convidados com graça e simpatia, fazer as nossas capas. Consigo parar pra ouvir amigos e conhecidos que vêm se abrir comigo em pvt; consigo fazer novas amizades que enriquecem muito a minha vida. Consigo acompanhar as tretas políticas nas redes sociais e procurar esclarecimentos com amigos que entendem do assunto e podem me ajudar a compreender melhor o que tá acontecendo, já que eu não entendo nada de coisa nenhuma. Consigo ter conversas na Mamilândia que cutucam os meus pontos de vista e me fazem pensar.

Sim, EU SEI que tenho a sorte de não precisar mais trabalhar 10 horas por dia, mas a parada não é essa. A parada é que mesmo quem não precisa trabalhar 10 horas por dia glorifica esse excesso de horas semanais como se isso fosse uma coisa boa. Trabalhar voluntariamente tanto que não se tem tempo pra estar com seu filho NÃO É UMA COISA BOA. Simplesmente não é, por mais que o capitalismo queira te fazer acreditar no contrário. Não é.

(Como sempre, cá estou eu explicando novamente que a minha crítica é pra quem pode fazer as coisas de um jeito, mas ESCOLHE fazer de outro. Assim como meu problema com o “conje” do Moro não é ele falar errado, é um JUIZ falar errado. Minha sogra semianalfabeta pode falar errado. Juiz não pode. Ponto.)

É por isso que eu me recuso a me sentir culpada. Certamente não produzo materialmente o mesmo que um trabalhador 9-6, mas o meu ócio, hoje, produz maternidade serena e consequentemente uma filha que não enche o saco dos outros, produz parte do Pistolando, que pode não ser grande coisa mas é conteúdo de qualidade pros poucos que nos escutam, produz gentileza, pois não estou estressada o suficiente pra ignorar as pessoas ao meu redor (cumprimentem os garis, porteiros, guardas de trânsito da sua rua, cumprimentem as pessoas com quem vocês cruzam na rua todo dia, cumprimentem as pessoas, caceta), produz amizade, porque só com tempo e calma consigo emprestar meus ouvidos e ombros aos amigos que precisam deles, produz evolução, pois só com tempo e calma consigo refletir sobre as minhas atitudes e falas.

Essa glorificação do trabalho extremo em detrimento de, bem, de viver, precisa absolutamente acabar. Senão a gente acaba que nem esse pessoal no Japão aqui, vejam que maravilha.

Ouçam mais sobre isso no Boa Noite Internet, do Cris Dias, aqui. Ouçam o que o Danilo/Dimitra tem a dizer sobre isso aqui. E por acaso (ou algoritmo) li esse fio aqui exatamente sobre esse assunto hoje.

P.S.: Como tudo nesse mundo, ter tempo pra pensar na vida também tem seus lados ruins: a autoanálise é das coisas mais dolorosas que existem. Talvez muita gente desprovida de vida interior preencha seu tempo trabalhando exatamente pra não ter que pensar, porque pensar dói. Mas pessoalmente acredito que a imensa maioria simplesmente siga a manada mesmo: espera-se de nós que trabalhemos loucamente, nosso valor na sociedade está diretamente ligado ao que produzimos, e poucos são os que refletem sobre isso e se desgarram da manada. Mas também tem o seguinte, né, como você vai refletir se trabalha 10 horas por dia e perde 3 horas diárias no deslocamento? O capitalismo não quer que você tenha tempo pra raciocinar. Como dizia aquele grandíssimo filho da puta pseudopoeta golpista que foi nosso presidente, não pense em crise, trabalhe. Ao que eu respondo: teu cu.

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