uhuuuu

Hoje o país amanheceu sacudido por dois acontecimentos ribombantes.

O primeiro foi a prisão da mulher do Ministro da Justiça, que é um notório idiota. A mulher é presidente da região Campania (onde fica Nápolis), e está sendo acusada de, entre outras coisas e junto com outras pessoas, pressionar o presidente do sistema de saúde regional a colocar um tal fulano numa tal posição, onde ele não deveria estar. O ministro se demitiu, graças aos céus, porque é realmente um imbecil, além de ser claramente o Rei dos Favores: eles moram numa cidadezinha perto de Roma numa casa gigante, e praticamente toda a vida da cidade gira ao redor deles. Vimos uma reportagem uma vez mostrando a romaria que é no portão da casa todos os dias de manhã: é gente levando “presentes” uma atrás da outra, o que muito provavelmente indica agradecimento por favores, e todo mundo sabe que num mundo ideal a política, principalmente tratando-se de escalões tão altos, não deveria funcionar assim. Mas eles são uma família muito católica, dizem, e tais demonstrações de afeto só servem pra indicar o quanto eles são legais. Então tá.

A segunda coisa, pra mim muito mais emocionante, é que ontem o Papa, que tinha sido convidado sabe-se lá por quem pra falar numa universidade laica de Roma, foi recebido por uma manifestação contra a sua presença na instituição. O argumento dos manifestantes, muito lógico, era o que raios um líder religioso tem a dizer em uma universidade laica que todo mundo já não saiba, visto que somos bombardeados com notícias sobre ele todos os dias na televisão, e todo mundo sabe o que ele fala, pensa, come, faz, comenta, peida? De frente aos cartazes de “A ciência é laica”, digamos que ele teve um ataque de simancol e voltou pra casa, de onde aliás nunca deveria ter saído.

Pronto! Armou-se a tempestade! A extrema direita acusa a universidade de ser um “lixão ideológico”, de ser desrespeitoso, de queimar o filme da Itália no mundo (como se fosse possível piorar a imagem da Itália no mundo…) porque agora “nós somos o país que não deixa o papa falar”, e por aí vai. Acusa a faculdade de ter impedido o homem de se expressar, quando na verdade ele mesmo resolveu não ir depois que viu as manifestações contra. E, lógico, os pobres católicos começam logo a queixar-se de como são perseguidos, coitados, logo eles, tão tolerantes.

Ontem à noite, em vez de ir dormir cedo porque hoje tenho muito trabalho pra fazer antes de sair de casa pra aula do Lindão Fodão de Relazioni Internazionali, fiquei hipnotizada vendo o programa daquele nojo do Bruno Vespa. Porque convidaram um grande matemático italiano que eu amo, e que é a cortesia e a calma em pessoa, um professor emérito da universidade que rejeitou o papa, um velhinho foférrimo, e um chato de galochas da esquerda radical que fuma feito uma chaminé e pra tudo faz greve de fome, e, como todo bom italiano sem modos, só fala gritando e interrompe todo mundo, mas apesar disso tudo está longe de ser um idiota. Do lado do coitado do papa, um cardeal, que também é reitor de uma PUC de Roma, e um outro político famoso de direita, ex-ministro e tal. O debate foi lindo.

O homem da greve de fome acusa a mídia italiana de falar do papa o tempo todo e de nos enfiar goela abaixo uma propaganda nada velada que tem conseqüências sérias pro país – atualmente anda-se falando, por exemplo, de mudar a lei que aprova o aborto na Itália, porque o Papa cismou de voltar ao tema “quem aborta vai pro inferno”. O cardeal respondeu espetando que a igreja não faz nada pra aparecer na mídia, e que se lhe dão espaço é porque o assunto interessa, e que eles não precisam fazer greve de fome pra aparecer na televisão. Ainda: afirmou, idioticamente, que não é verdade que a ciência é laica, porque ele também faz ciência como todo mundo. Quer dizer, botou no mesmo patamar teólogos, físicos, biólogos, matemáticos, sacam. Esqueceu de dizer que a “ciência” da igreja não trabalha com evidências mas sim com dogmas, e logo não é ciência. Simples assim.

O matemático replicou, com muita educação, que o papa realmente não tem nada que ir a uma faculdade simplesmente porque o pensamento religioso e o pensamento científico são incompatíveis por definição, e que não deveria nem ter aceitado o raio do convite. Adicionou que o atual papa é um cara polêmico e gosta de comprar briga, vide a sua declaração da semana passada de que a matemática é a prova de que deus existe. E contou, a título de curiosidade, que uma vez, recebendo um grupo de matemáticos pra um congresso internacional (o grupo incluía alguns Nobel winners) que tinham interesse em conhecer o papa, pediu, através desse mesmo cardeal que estava no mesmo programa, um encontro com o alemão. O pedido lhe foi negado. Hohoho.

Aí, quando o programa já tava terminando, os créditos rolando, o homem da greve de fome, que é um grandíssimo filho da mãe, soltou a seguinte pérola:

– Espero que o senhor se envergonhe pelo que disse antes. Se a televisão italiana desse aos laicos e à esquerda o mesmo espaço que dá à igreja católica, nós não precisaríamos fazer greve de fome. É muito fácil pro senhor falar uma coisa dessas, assim, com todo esse ouro *sendo cardeal, a corrente de ouro que pendia do pescoço do homem era tão grossa quanto uma corrente de bicicleta, pra não falar da cruz gigante e do anel imenso, tudo logicamente de ouro maciço*, vocês e a sua igreja cheia de simonias.

Cai o pano. O cardeal ficou verde de ódio, mas a música de abertura já tava tocando e não dava mais tempo de responder. Lindo.

Eu não escutava a palavra simonia desde as aulas de história na escola, e nunca, em todos esses anos de Itália, ouvi ninguém enfrentar tão descaradamente a igreja católica, ainda por cima no programa com maior ibope na sua faixa horária, e que é ridiculamente de direita, conservador e cristão. Faltou só apontar o dedo pro nariz do cardeal e chamar de feio e bobo. Ficamos, eu e Mirco, completamente abobalhados. A-do-rei.

Não preciso nem dizer que hoje vou sair de casa com a minha camiseta da RDFRS.