saúde na bota

Felizmente aqui em casa quase não ficamos doentes, mas pra quem precisa de atendimento médico sério a coisa deve ser muito, muito complicada. Vou contar a saga do otorrino pra vocês terem uma ideia de como anda a situation por aqui.

Apesar de ficarmos doente menos frequentemente do que todos os nossos amigos, esse ano o inverno foi longo e muito frio, todo mundo passou meses enfurnado em casa (e ainda estamos; 15 graus hoje, chovendo) e a TODO MUNDO ficou doente. Na escola da Carol passamos dez dias com metade dos alunos em casa com febre, as duas professoras E a assistente doentes também – em duas ocasiões diferentes. Na natação a turma dela se reduziu à metade. Enfim, um horror. E desde o final do ano passado que toda vez que ela fica resfriada e encatarradésima, fica completamente surda. Otite mesmo só rolou uma vez esse ano, felizmente, mas ela estava surda direto praticamente desde janeiro, quando começaram as ondas virais e bacterianas na escola, depois das férias de fim de ano. Sabemos que quando o catarro vai embora a audição volta, mas como foram muitos meses seguidos (e eu não aguentava mais ter que falar tudo gritando. ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO gente que berra), resolvemos procurar um otorrino pra avaliar melhor.

O procedimento pra pedir consulta com especialista é o mesmo em toda a Europa, creio: primeiro você tem que passar pelo seu médico de família, que costuma ser uma anta, ele faz o pedido num papelzinho especial e você vai nas agências do SUS (ou em algumas farmácias, no caso da Itália) e reserva. Então fomos à pediatra da Carol, que atende pelo SUS e é muito boa mas está sempre entupida de pacientes. A secretária nos encaixou na hora do almoço da médica juntamente com outras SEIS crianças, todas marcadas no mesmo horário e atendidas por ordem de telefonema. Logicamente a pediatra estava com um mau humor fenomenal, totalmente compreensível dada a situação, e nos atendeu à base de patadas, mas fez o raio do pedido. O Mirco foi direto à farmácia onde compramos todos os remédios desde que a Carol nasceu, porque é em frente à oficina dele, e tentou marcar a consulta. Data: SETEMBRO. Oi? Liguei pro departamento de otorrino do hospital de Perugia, porque o de Assis está fechando e não tem mais quase nada funcionando, e perguntei se tinha pronto-socorro de otorrino, porque aí eu aproveitava que ela estava com dor e entupida de catarro até a alma pra ter uma justificativa pra levá-la pro PS. Não, senhora, não há mais PS de otorrino. Puxa, mas só tem vaga pra consulta em setembro, eu precisava agora. Então pode marcar com o sistema Intramenia, senhora; tem vaga segunda que vem com o chefe do serviço, são 120 euros. Marquei.

O tal sistema Intramenia nada mais é do que uma maneira de evitar a evasão fiscal. Os médicos filhos da puta atendem poucos pacientes por dia e desviam os outros pros consultórios particulares, onde atendem sem nota fiscal; o hospital se prontifica a ceder sala e equipamentos e ganha uma parte desses 120 euros, que o médico tem que declarar porque o paciente paga no caixa no hospital. Todo mundo ganha, menos o paciente, como os dois manés aqui, que ou desembolsavam essa grana ou esperavam até SETEMBRO pra conseguir a porra da consulta. O problema é que a Umbria tem tipo quatro habitantes. Não, sério, a densidade demográfica aqui é baixíssima, o hospital de Perugia acabou de ser todo reformado e aumentado, e mesmo assim faltam leitos, falta pessoal e você só consegue consulta quando o cometa Halley passar de novo. Puta que pariu.

Muito bem. A consulta estava marcada pras 15:40 de hoje. Lá fomos nós voados de casa depois da escola pra chegar no hospital às 15. Demos uma mega cagada e conseguimos estacionar logo de cara, uma raridade porque o estacionamento é completamente subproporcional pro tamanho do hospital e neguinho estaciona em fila dupla, tripla, em cima dos canteiros, na baia do ônibus, numa fila central imaginária no meio das alamedas do estacionamento… Não sabíamos se tínhamos que passar no CUP (o caixa) antes, porque não tínhamos nenhum papel na mão pra comprovar a marcação, já que foi feita por telefone e não envolve nenhum número de protocolo nem nada. Resolvemos passar no CUP pra perguntar, disseram que era lá mesmo. Chegamos no caixa e a mulher não encontrou a Carol porque pelo telefone eu passei o sobrenome do Mirco, mais fácil de soletrar, mas no documento novo constam os meus sobrenomes também. Obviamente a mulher não foi capaz de extrapolar que o nome era sempre Carolina, logo deveria ser a mesma pessoa, e ligou lá pra otorrino pra perguntar. Depois de uma discussão meio longa, ela entendeu o que tinha acontecido e fez tudo direitinho, nos dando quatro páginas A4 impressas – duas cópias da fatura e duas que até agora não entendi pra que servem mas de qualquer forma são um desperdício ridículo de papel.

Agora a coisa começa a esquentar, prestem atenção. Quando marquei a consulta no telefone a moça falou pra ir pro bloco C, quarto andar, mas a mulher do CUP nos mandou pra aceitação (a.k.a. triagem) da otorrino, do outro lado do hospital (que é MONSTRUOSAMENTE GRANDE). Lá fomos nós pra aceitação, onde a mulherzinha nos olhou como se fôssemos alienígenas porque paciente marcado com Intramenia não passa pela aceitação e é atendido em outro lugar, não na enfermaria de otorrino onde a mulher do CUP falou, mas no corredor dos consultórios médicos no tal bloco C. Lá vamos nós procurar o tal bloco (a mulher no telefone tinha razão, afinal de contas). Olha que genial: em vários dos blocos os andares não se comunicam diretamente, você tem que mudar de bloco pra pegar o elevador ou as escadas pro andar que você quer. Legal, né? Andamos pelo hospital por QUINZE MINUTOS procurando a merda do bloco C, até que uma alma caridosa, um enfermeiro manco com um sotaque hediondo de Perugia, se ofereceu pra nos levar até lá, pois era mais ou menos pra onde ele estava indo mesmo. Chegamos no bloco e pegamos o elevador até o quarto andar, mas demos de cara com uma placa que dizia “Hemoterapia” e mais nada. Sai uma enfermeira do corredor, perguntamos onde fica a otorrino e ela não tem a menor ideia. Descemos de novo, perguntamos pra outra pessoa, pegamos outro elevador e fomos parar no bloco certo. Vimos um corredor com a placa “Consultórios Médicos” e saímos procurando a sala do chefe da otorrino. Como o conceito de recepcionista aqui é completamente desconhecido, você tem que sair perguntando pras pessoas nos corredores ou batendo nas portas feito um mendigo, até acertar; na sala marcada como secretaria de otorrino ninguém atendeu, mas ao bater na sala do chefe do serviço ele respondeu que era pra esperar um minutinho. A essa hora estávamos dez minutos atrasados de tanto rodar pelo hospital, mas beleza, o cara tá atendendo outro paciente, esperemos. A Carol vira pra mim e pede pra fazer xixi, com aquele timing maravilhoso que criança tem. Vou procurar um banheiro e vejo a placa: “banheiros públicos somente no andar térreo”. Pra não errar de elevador (eram 4, dispostos em cruz nesse encontro de corredores onde estávamos), descemos de escada. Não encontro o banheiro normal, só o de deficientes físicos, que tem aquela privada esquisita rebaixada na frente. Carol se molhou toda de xixi, a descarga estava quebrada e não tinha sabão nem papel pra secar as mãos; fomos de álcool gel mesmo.

Na volta arrisquei o elevador. Apertei o 4 mas ele parou no 3; como ninguém entrou, eu, com pressa, achei que já fosse o 4. Desci e não achei a merda do corredor dos consultórios médicos, acabei entrando na enfermaria de ortopedia, de onde fui sumariamente enxotada. Subimos até o quarto andar de escada e depois de um breve momento de desorientação, localizei o Mirco, que estava parado na porta do consultório. O médico tinha feito ele entrar e depois desceu pra resolver sei lá o quê não sei onde. A essa altura do campeonato já eram 17:10. Uma moça com o filho adolescente para na porta aberta e pergunta se esse é o consultório do Doutor Tal; respondemos que sim e ela FINALMENTE! Estou rodando há meia hora! Agora nem me importa ter que esperar, pelo menos sei que estou no lugar certo!

O médico aparece uns 10 minutos depois e bota os fones no ouvido da Carol pra fazer a audiometria, explicando igual à cara dele o que ela precisa fazer. Ela, que quando liga a modalidade Mega Timidez Ultra Plus fica esfregando os olhos e não fala absolutamente nada, não respondeu. A tentativa dele durou dez segundos; desistiu dizendo “ela não coopera, vamos fazer uma timpanometria” e ligou pro ambulatório pra ver se tinha algum técnico livre. Explicou onde ficava a maldita da sala da timpanometria e lá fomos nós.

O elevador que ele mandou pegar não estava funcionando. Pegamos outro, mas saímos em outro lado e as instruções que ele deu não valiam mais. Saímos de novo perguntando feito dois retardados, erramos o caminho três vezes mas finalmente achamos a sala. A técnica foi muito simpática e fez o exame rapidinho. Erramos o caminho mais uma vez pra voltar (OK, somos meio geograficamente tapados) e quando chegamos o médico estava atendendo a mãe do adolescente. Esperamos mais um pouco, entramos, conversamos cinco minutos e fomos embora. (Tudo OK com o zovido, por sinal).

Isso tudo nos custou 120 euros e a aula de dança da Carol, que perdemos – não teríamos perdido se tivéssemos encontrado logo o consultório, se ele não tivesse feito a gente esperar, se tivesse banheiro em todos os andares, se ele tivesse tido um pouco de paciência com a Carol e tivesse conseguido fazer a audiometria lá mesmo.

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A avó do Mirco morreu há um mês. Estava senil mas fisicamente OK. Acordou com falta de ar; quando cheguei lá ela já estava sendo descida das escadas pra entrar na ambulância. A médica disse pra gente torcer pra ela não precisar ser internada, porque não havia leito em lugar nenhum, o mais próximo disponível era em Città della Pieve, longe PRA CACETE, lá nas montanhas, depois de uma estrada cheia de curvas onde é impossível ultrapassar morrinha e que fica intransitável quando neva. Vou repetir: não tinha leito nem em Foligno, que é um hospital novinho em folha (onde a Carol nasceu), nem em Perugia, que é GIGANTESCO e foi reformado há coisa de dois anos. Pode isso, Arnaldo?

de festas, paranóias e comidas

Estava lendo o post da Lu sobre a festa de aniversário da Julia na escola e me deu uma tristeza imensa essa maluquice calórica dos americanos. Mas também me deu uma tristeza imensa pensar em como as festas infantis são chatas por aqui.

Na escola da Carol vela pode, mas também é proibido levar comidas feitas em casa, não só por causa de alergias mas também porque se rolar alguma intoxicação alimentar, a comida tem que ser rastreada pra poder alertar o fornecedor e a Saúde Pública. Esse ano eu mandei fazer um bolo numa padaria aqui perto e colei a nota fiscal na caixa; foi o suficiente. Ninguém aconselha nada, cada um leva o que quiser. Na escola da Carol, que é meio “exótica”, todo mundo leva bolo de chocolate. Mas não é a norma.

A norma é assim: quem tem espaço em casa faz festa em casa, quem não tem faz em algum restaurante, de preferência com bem pouco espaço pras crianças brincarem. O cardápio é INEVITAVELMENTE de adultos; estranhamente, os italianos, que têm sobremesas específicas de carnaval, de Natal, de Finados, do cacete a quatro, não têm nenhuma comidinha específica pra festa de criança. Tudo bem que aqui a criançada come de tudo, mas puxa vida, um cardapiozinho especial não custaria nada, né não? Então nas festas tem pizza (normalmente margherita, cogumelos, branca – sem tomate – de alecrim e de cebola), torta al testo (uma espécie de pão achatado que só fazem aqui na nossa província, recheada com presunto cru e/ou linguiça e espinafre), linguiça e outras carnes grelhadas pra comer com o pão sem sal MALDITO que eles adoram por aqui, às vezes sanduíches com recheios bizarros tipo atum com alcachofra ou omelete, abobrinha grelhada (adoro, mas quer coisa menos festiva do que isso?), omelete de abobrinha (ou de outras verduras da estação), tomates recheados, salada de trigo com rúcula e tomates-cereja se for no verão, bruschetta de creme de cogumelos e/ou patê de fígado de galinha, uma especialidade da Itália central. Dependendo do horário tem gente que serve – tcham tcham tcham tcham – macarrão com molho de tomate. Vejam bem, não estou dizendo que isso tudo é ruim, muito pelo contrário – eles aqui são paranóicos com os ingredientes e costumam desprezar comidas industrializadas – mas fica faltando aquele tcham especial de festa, sabe. Pra mim, ocasiões especiais requerem comidas especiais. Da mesma forma que quando como fora nunca peço comidas que costumo fazer em casa. Se é pra comer macarrão com molho de tomate eu como em casa, ora bolas.

De doce temos bolos horrorosos cheios de chantilly, SEMPRE SEMPRE SEMPRE brancos com algum recheio bem bunda tipo crema pasticcera e docinhos de padaria (mini-bombas ou éclairs) com frutas e gelatina incolor em cima. Quase sempre tem refrigerante, mas sempreeeeeeeeeee em temperatura ambiente. Sempre. Tem onze anos que estou aqui e nunca fui a um evento social que tivesse servido refrigerante gelado. Normalmente a água mineral acaba cedo demais, e sempre tem mais água com gás (nojo!) do que sem.

Canta-se parabéns e tem velinha, mas quase ninguém faz decoração; normalmente o “tema” da festa se vê só no bolo de padaria e nos pratos de papel. Não sou particularmente fã de festas temáticas, mas acho que se é pra fazer, então que se faça direito. Brindes pras crianças, nem pensar; nunca ninguém ouviu falar disso. Convite também não rola, é tudo no boca-a-boca. Música? Como assim?

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Por isso que a festa de aniversário do Ettore, filhinho da Fabiola, foi especial. Também foi num restaurante, mas com mesas a céu aberto também e espaço atrás pras crianças brincarem. Se as comidas comidas mesmo foram de adulto, os doces, todos feitos por ela, eram infantilíssimos. Tinha brigadeiro, docinho de coco, bala de coco enrolada naquele papel com franjas (que comprei pra ela na SAARA), mousse de maracujá, brownie, cupcake; teve brinde pras criança tudo (M&M’s, balinha de paçoca também diretamente da SAARA, brinquedinho), teve faixa escrito parabéns, teve parabéns em português e em italiano, e teve música brasileira ao vivo. Carol se esbaldou de dançar. O aniversariante curtiu pouco, tadinho; acabou de fazer um aninho e estava saindo de uns dias de febre, mas todo mundo aqui de casa saiu de lá um pouquinho mais feliz.

terremotos políticos

Além do terremoto sísmico, há outras notícias de mesmas dimensões sacudindo o país. Comecemos pela mais chata: o escândalo dos jogadores de futebol que recebiam dinheiro pra perder jogos importantes, alimentando uma máfia de agências de apostas que vocês não podem imaginar. Tem gente de todas as walks of life envolvidas e a quantidade de dinheiro é MUITO grande; máfias de outros países estão no meio dessa história também. Mas pergunta se alguém já foi preso ou se algum jogo foi cancelado. Escândalos desse tipo volta e meia vêm à tona, mas neguinho não aprende e continua apostando, continua indo aos estádios, continua comprando partidas no pay-per-view, continua comprando álbum de figurinha dos times, camisetas, cachecóis, bandeiras. Só uma greve de torcedores resolveria o problema, mas fanatismo futebolístico é tão horrível quanto o religioso, de modo que vai acabar tudo em pizza, como sempre.

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Meu escândalo preferido da semana foi o roubo de documentos confidenciais do Papa, que como vocês bem sabem é uma das pessoas que mais desprezo no mundo. Ficou-se sabendo sobre o vazamento dessa papelada quando saiu o novo livro do Nuzzi, jornalista que já tinha escrito Vaticano SpA (SpA é um acrônimo que descreve um tipo de empresa italiana, como o Ltda ou S.A. no Brasil, definindo portanto o Vaticano como uma empresa). Eu, que não sou besta, já comprei o livro, com medo que seja retirado das livrarias, hipótese muito provável considerando a capacidade de mandar e desmandar que os padres têm aqui. Ainda não chegou, mas quando ler podem deixar que boto um review aqui.

Bom, por semanas e semanas rolou esse semi-escândalo na televisão, falava-se do roubo destes documentos e da culpa do jornalista por ter receptado os papéis pra escrever o livro (católico é assim, né, você aponta pra lua e eles olham pro dedo), falava-se abstratamente de “corvos”, que seriam os responsáveis por vazar os documentos, mas não se sabia quem era. Pois bem, descobriu-se o culpado, e adivinha quem é? O mordomo do papa. Juro que eu ri de chorar quando vi a notícia na televisão. Pra logo depois querer jogar a televisão pela janela de ódio quando soube que 1) o mordomo foi PRESO, 2) estão mesmo procurando meios legais pra recolher o livro das lojas, 3) NINGUÉM toca no assunto do conteúdo dos documentos, obviamente escabrosos como tudo o que se refere a esses marginais da Igreja Católica Apostólica Romana, falando somente do grande crime de receptação cometido pelo jornalista. Mas hein?

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Como se não bastasse toda essa podridão, dois escândalos antigos, relacionados entre si ou não, não se sabe direito, insistem em voltar à tona. Um é o caso do desaparecimento de Emanuela Orlandi, em 1983. Filha de um funcionário do Vaticano, a garota simplesmente sumiu no nada, quando tinha 15 anos, e nunca mais soube-se nada dela. Volta e meia o irmão aparece na imprensa implorando que o caso seja investigado direito, mas a Igreja se cala, desde sempre. O desaparecimento da Orlandi talvez tenha alguma coisa a ver com De Pedis, o chefe de uma gangue muito violenta que, pasmem, tinha sido enterrado na basílica de Santo Apolinário, em Roma, com tanto de aprovação de cardeais e sei lá quem mais (esse é escândalo número dois). Não lembro mais como começou o bafafá na rede, mas a UAAR teve muito a ver com isso, e o fato é que finalmente começou-se a falar do absurdo que era ter um criminoso enterrado em uma das maiores igrejas de Roma, e resolveram exumar os ossos e tirá-los de lá. Acha-se que De Pedis tenha tido algum envolvimento na quebra do Banco Ambrosiano do IOR (um ramo do Vaticano, digamos assim), que incluiu algumas mortes suspeitas e desaparecimento de documentos, e por isso tenha sido enterrado na igreja. Vamos combinar que a podridão é tanta que parece tudo inventado, né não? Quem precisa daquele horror do Dan Brown pra inventar histórias sem sentido quando a realidade é tão mais divertida.

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E ainda misturando política e religião, porque são inseparáveis aqui na Itália, outro lindo escândalo vem ocupando as manchetes por aqui: o envolvimento de Formigoni, presidente da Região Lombardia, em uma história de corrupção muito feia. Formigoni é um, um, um… Não tenho palavras pra descrever o que é esse homem. Primeiro que é uma bicha enrustida, e odeio gente enrustida – bicha, Trekker, fã do Justin Bieber, fanático por programas de auditório, viciado em corrida, comedor compulsivo, não importa. Não entendo por qual motivo alguém tenta esconder uma coisa que 1) não incomoda ninguém, e 2) todo mundo tá vendo e tá careca de saber. Segundo que ele é um “ciellino” (pronuncia-se “tchiellíno”; vem de CL – tchi elle – que significa Comunione e Liberazione, um ramo “laico” da Igreja Católica famoso pelo fanatismo, principalmente de caráter sexual, e que obviamente poucos deles seguem mas adoram impor aos outros). Os ciellini são uma máfia católica; segundo muitos depoimentos que já li online, não se consegue NADA no norte do país se você não fizer parte dessa panelinha. Emprego público, subir na carreira, licitações, só pra quem tem pistolão ciellino. Os caras monopolizaram a saúde pública lombarda (não estamos falando de Passa Quatro; a capital da Lombardia é Milão e trata-se da região mais rica da Itália, com uma quantidade imensa de indústrias e sedes de empresas) de tal maneira que o negócio virou uma espécie de Ipanema, onde todo mundo conhece todo mundo. Trocam-se favores pra lá e pra cá e o poder de veto deles é imenso; é praticamente impossível fazer um aborto, que, lembro-vos, é legal na Itália, nos hospitais da rede pública, porque os ginecologistas são todos “obiettori di coscienza” (já falei sobre isso aqui) e se recusam a realizar abortos porque vai contra a religião deles. Hello, Irã?

Pois o Formigoni, cujo apelido é “Celeste” de tão religioso e certinho, foi denunciado por um empresário, atualmente preso, por ter aceitado muita, muita grana em troca de favores administrativos (licitações, autorizações e coisa e tal). O cara passava férias no Caribe com tudo pago pelo empresário, mas obviamente nega tudo. Só que aí alguém acaba sempre abrindo a boca, como o comandante do iate do empresário, que afirma que o presidente aparecia no iate toda semana. Já apareceram várias fotos dele no bendito iate. A explicação dele: nós fizemos como todos os italianos que viajam em grupo, alguém paga a hospedagem, outro alguém as passagens, outro alguém o aluguel do carro, e depois fazemos as contas e acertamos, foi só isso. Resposta do empresário: ba-le-la, eu paguei tudo. A réplica de Formigoni: não falo com presidiários. Gente, é de chorar de rir. Pra não chorar.

o bicho tá peganuuuu

Rapaz, tem tanta coisa acontecendo aqui na Bota que nem sei por onde começar. Acho mais fácil iniciar pelos acontecimentos trágicos e depois passar pra minha parte preferida, um pouco de saudável bible-bashing.

Há alguns dias, explodiu uma bomba em uma caçamba de lixo em frente a uma escola técnica de moda e turismo, praticamente frequentada só por meninas. Morreu uma das alunas e uma outra está muito grave no hospital. Foi em Brindisi, uma cidade do sul. Ninguém entendeu nada, mas todas as suspeitas caíram imediatamente sobre a máfia, por causa de uma série de fatos importantes: o sul é notoriamente território mafioso; a escola tem o nome de um famoso juiz da Divisão Antimáfia italiana, morto em um atentado tenebroso com uma quantidade absurda de explosivos, juntamente com a mulher e vários dos seus guardacostas; a explosão aconteceu no aniversário de 20 anos da morte do outro juiz que trabalhava com esse explodido – esse segundo juiz também foi assassinado, em frente à sua casa; naquele mesmo dia passaria pela cidade a caravana de uma organização chamada Libera (proparoxítona), que administra terrenos confiscados à máfia pra transformá-los em áreas produtivas em termos de agricultura; a menina que morreu (ou não; não tenho certeza) era filha de um “collaboratore di giustizia”, mais conhecido como “arrependido”, um mafioso que resolve abrir a boca e colaborar com a justiça. Um homem foi preso depois de analisarem imagens de câmeras de segurança próximas, mas depois foi liberado por falta de evidências. Outro homem parece ter sido identificado em outro vídeo, mas não sei mais em que ponto estão as coisas; como no Brasil, aqui também as notícias têm validade curta, especialmente se houver peixes grandes envolvidos ou for um assunto incômodo. O fato é que oficialmente não se sabe exatamente o que aconteceu, nem como (sabe-se somente que a caçamba de lixo onde foi colocada a bomba não deveria estar ali e foi posicionada pela pessoa responsável pelo atentado), muito menos por quem.

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Depois dessa história horrível veio o terremoto, no dia 20. Pegou a zona da cidade de Ferrara, numa parte do país normalmente não considerada sísmica (a região onde eu moro, por exemplo, é mega sísmica). O terremoto foi MUITO intenso e aconteceu de madrugada, logicamente pegando todo mundo de surpresa. Cidadezinhas inteiras destruídas, mortos e feridos e gente que perdeu tudo, o de sempre. E como se não bastasse, ontem rolou outro – aliás, muitos outros, também muito intensos, não muito longe da área do primeiro terremoto. Pelo menos foi tudo durante o dia, um às nove da manhã e outro na hora do almoço, e por sorte também o pior do frio já passou, embora o calor ainda não tenha chegado. O terremoto terrível que atingiu a cidade de L’Aquila, em abril do ano passado, não só aconteceu de madrugada como pegou uma das regiões mais frias do país, o que dificultou muito mais a vida dos habitantes.

Nesse terremoto de ontem morreu gente também. E como sempre acontece nesses casos, aparece logo um podrezinho básico: os mortos incluíram operários estrangeiros clandestinos forçados a trabalhar mesmo em construções ainda não avaliadas pela Defesa Civil com relação aos danos causados pelo terremoto do dia 20, e dois padres idiotas que insistiram em entrar nas suas igrejas pra avaliar o estrago (esses imbecis não aprendem; no terremotão de 1997 em Assis aconteceu exatamente a mesma coisa. Putz grila, o país sofre com terremoto desde que o mundo é mundo, esses miseráveis ainda não entenderam que os tremores de assentamento continuam, às vezes com muita força, por meses a fio depois do terremoto-mor, e que as construções antigas, obviamente feitas sem nenhum sistema antissísmico, são frágeis? Vai ter prioridades erradas assim lá na casa do chapéu); e obviamente estão rolando altas discussões sobre por que até mesmo construções novas caíram, quando teriam resistido se tivessem sido feitas de acordo com as normas antissísmicas de construção. Acontece que o último terremoto naquela parte do país aconteceu há sei lá quantas dezenas de anos, de modo que o mapeamento das áreas sísmicas do país considerava essa zona da região da Emilia-Romagna como zona de baixo risco sísmico. Então os prédios eram feitos sem seguir essas normas. De quem é a culpa? A culpa é de alguém, afinal, ou é só uma fatalidade?

Pelo menos todas as opiniões que li até agora são muito positivas com relação ao trabalho dos socorros e da Defesa Civil. Pouquíssimo tempo depois do terremotão já havia barracas montadas pras pessoas que perderam as casas e já estavam sendo distribuídas refeições, roupas e remédios. O Twitter, que ainda não é muito usado pelos italianos, está sendo uma bela surpresa: muita da mobilização pra ajudar os envolvidos está rolando online, pois as linhas de telefone estão logicamente todas sobrecarregadas. Muita gente está liberando as próprias conexões wi-fi pra permitir que outras pessoas possam entrar em contato com o resto do mundo. Também online muitas pessoas e hotéis estão oferecendo um lugar pra dormir pra quem perdeu tudo. Está sendo uma experiência interessante pro país, que normalmente mostra muita solidariedade quando essas coisas horríveis acontecem (mas só quando essas coisas horríveis acontecem), e cuja população pela primeira vez está usando as redes sociais pra se ajudar mutuamente.

Enquanto isso, o asno do Presidente da República decidiu não anular a parada militar do dia 2 de junho. A visita daquele outro desgraçado do Papa a Milão também não foi cancelada. Facebook e Twitter estão fervendo com mobilizações pra tentar cancelar esses dois eventos completamente inúteis e usar o dinheiro pra ajudar as vítimas do terremoto e a reconstrução das cidades destruídas. Parece que não vai dar em nada, mas essa revolução online está tomando proporções assustadoras e espero que vire uma coisa real logo logo, porque estamos precisando. Enquanto não instalarem umas guilhotinas na porta do Senado em Roma o oba-oba vai continuar.

Mais sobre a política italiana, tipicamente italiana, amanhã.

perugia em guerra… tolinhos!

Acordei hoje de manhã com meu Facebook entupido de comentários dos meus ex-colegas de faculdade em Perugia, apavorados com a “guerrilha” que rolou ontem à noite na cidade.

Nós não frequentamos o centro histórico de Perugia há anos. Nos meus primórdios aqui no Zaire a gente ia bastante; às vezes ao cinema, às vezes só pra tomar um sorvete e dar uns rolés pelo Corso Vannucci (“Corso” é sempre uma rua de pedestres no centro histórico das cidades por aqui). No verão o Corso fica entupido de gente, jovens, velhos, casais com filhos, todo mundo subindo e descendo a rua, bem diversão de minhoca mesmo (“minhoca” sendo o termo que se refere ao pessoal “ali da terra” e que não tem nada de melhor pra fazer na vida a não ser desfilar, arrumadíssimos, pela rua principal). Ano passado fomos à Eurochocolate, um verdadeiro pesadelo, com Moreno, Marta e Petulla, que obviamente nunca tinha ido. Ao longo dos anos fomos notando que o público que frequentava o final do Corso (ou o começo, dependendo do ponto de vista), ali onde fica a famosa Fontana, considerada um dos mais belos chafarizes da Itália, estava ficando meio esquisito. A escadaria da igreja, bem em frente ao chafariz, ficava sempre povoada de “zeccheroni” (de “zecca”, carrapato, porque é gente que não toma banho) – ripongas, rastas, pseudopunks. Uma nuvem de maconha pairava no ar. E volta e meia ouvíamos histórias de brigas entre tunisianos e albaneses, rivais no tráfico de drogas que é muito intenso em Perugia, como em qualquer cidade universitária. Às segundas de manhã a escadaria acorda coberta de lixo e não é difícil encontrar seringas usadas. Não costumo ler jornais locais, mas às vezes ficávamos sabendo de bares depredados, brigas com gente que foi parar no hospital, vitrines quebradas e tal.

Pois ontem chegou a rolar tiroteio e uma pessoa foi esfaqueada. Quase todos os meus ex-colegas de faculdade estavam por ali, porque toda a vida social da cidade se dá no centro, e fiquei preocupada até ver que todos estavam bem, embora muito assustados. Nos comentários, muita gente comparando Perugia às favelas do Rio, de modo que achei que a coisa tinha sido realmente seríssima. Até que fui ver os vídeos do tiroteio que neguinho estava postando. Tipo esse.

Devo estar ficando surda e cega, mas não ouvi nenhum tiro nem vi nada de particularmente escabroso. Veja bem, não estou menosprezando o pânico das pessoas nem a preocupação dos habitantes, que estão gradualmente perdendo o centro histórico da cidade pros tunisianos e albaneses, estrangeiros que ninguém quer (nem eu). Eu já tenho pavor de gente gritando e ameaçando brigar, imagina ver, de verdade, uma pessoa ser esfaqueada na sua frente. Mas tenho a impressão que se o autor do artigo tivesse assistido a Tropa de Elite pensaria duas vezes antes de escrever “guerrilha”…

quem sou eu? onde estou?

Me mudaram pra Suécia e não me avisaram?

Fui ao Ipercoop hoje aproveitar as promoções de primavera pra comprar plantas. Tinha um certo tempo que eu não ia porque tenho estado enrolada durante a semana e no fim de semana a coisa é inviável de tão lotada. Como a manhã hoje foi tranquila e às nove e meia eu já tinha feito ginástica, tomado banho, levado a Carol na escola e dado uma agilizada no almoço, resolvi dar um pulo por lá.

A primeira surpresa veio no carrinho, que estava com um pequeno suporte de plástico branco perto da barra onde seguramos. Minha primeira reação foi “Genial, botaram um porta-celular nos carrinhos!”, imediatamente seguida de “Anta, claro que não é pra celular, é pequeno demais pra um iPhone e grande demais pros telefones velhos que muita gente ainda usa, tipo Startac”. Entrei pronta pra perguntar o que diabos era aquilo, e qual não foi a minha surpresa ao encontrar um stand com duas mulherzinhas vestidas de amarelo bem na entrada do supermercado. Atrás delas, uma espécie de estante cheia de coisinhas parecidas com celulares. Pra variar, a maioria das pessoas passava batido; eu parei pra perguntar o que era. E o que era, senhoras e senhores, é uma das coisas mais lindas do mundo.

Trata-se de um leitor de código de barras portátil. Funciona assim: você chega no supermercado, passa o seu cartão fidelidade no leitor de código de barras fixo dessa espécie de estante, o sistema escolhe um leitor portátil pra você e acende uma luz verde embaixo dele pra você identificar qual é. Você vai lá, pega o bichinho, bota no suporte do seu carrinho e começa a fazer as suas compras. Cada coisa que você comprar você passa no leitor portátil antes de botar no carrinho. Quando você chega na caixa já está com todos os itens devidamente passados; só precisa apertar de novo o botão do leitor portátil pra ativar o laser, de modo que ele seja lido pela caixa self-service, e depois é só seguir as instruções na tela – usou alguma sacola de plástico ou não, confirmar o valor, forma de pagamento, senha do cartão se for cartão, enfiar o dinheiro se for cash. A maquininha cospe a nota fiscal, que você tem que passar num outro leitor de código de barras na saída, e pronto. CLARO que muita gente vai se enrolar e no começo vai acabar tendo fila do mesmo jeito enquanto o fulaninho procura o botão certo, cata o óculos no buraco negro da bolsa pra poder enxergar o display e coisa e tal, mas, caramba, cês tão entendendo o nível da revolução? Tão entendendo a magavilha que vai ser viver livre do medo de cair na caixa mais lerda do supermercado inteiro? Tão entendendo a coisa linda que vai ser depois que neguinho se acostumar e fizer o processo todo de olhos fechados, gastando tipo uns 30 segundos no total pra pagar as compras?

Pro mundo ficar perfeito agora só falta abolirem as zonas diferentes dos DVDs e todos os países passarem a utilizar exatamente o mesmo modelo de tomada.

furacão na política

Rapaz, o negócio tá pegando fogo aqui na Bota.

O causo é o seguinte: a Lega Nord é um partido de extrema direita xenófobo e católico (interessante como esses dois adjetivos frequentemente andam juntos…), que desde sempre deseja a separação da Padania – invenção deles, lógico; seria a área da Pianura Padana, ou Planície Padovana, uma grande área de planície ao redor da cidade de Pádua e irrigada pelo rio Po, que por sinal era um deus pagão – do resto da Itália. A cor da bandeira do partido é verde e os seus membros estão sempre usando alguma coisa verde na roupa – gravata, lenço no bolso etc. A quantidade de energúmenos desse partido é uma coisa impressionante, lógico. E o chefe-mor o partido é, desde sempre, Umberto Bossi, chamado “il Senatur” (“o Senador” em dialeto lombardo), membro do altíssimo escalão da política italiana. Que sofreu um AVE há alguns anos que o deixou com algumas sequelas, inclusive com problemas pra falar, mas que não larga o osso nem fodendo.

A família Bossi meio que comanda o batatal lá no norte. A mulher dele é vice-presidente do Senado (acabou de renunciar…), além de aparentemente mandar no marido lá das coxias. E já tem um tempinho que o Umberto começou a enfiar o filho, Renzo, na política. O apelido do filho é “il Trota”, “o Truta”, nunca tentei me informar sobre o motivo mas a cara de peixe morto poderia ser uma boa justificativa, quê que vocês acham?

(na foto, il Trota e o pai, provavelmente cantando o hino da Padania ou coisa assim)

Pra dar uma ideia do quão ridícula é a coisa, há um tempo atrás rolou uma polêmica eLorme porque o Bossi falou em uns comícios dizendo que se recusava a cantar o hino italiano porque há um verso que diz “escrava de Roma [a Itália]/Deus a criou”, enquanto que o norte se recusa a obedecer a Roma. Então tá.

Enfim. Essa semana o Bossi pai renunciou à sua posição de presidente da Lega Nord por causa de uma história de desvio de verbas. Ficou-se sabendo que sei lá quem estava pagando as reformas da casa da família Bossi, uma megamansão, e a resposta do Bossi pai? “A gente não sabia de nada”. Aliás, essa é uma desculpa que anda na moda aqui ultimamente; um figurão da máfia pagava o aluguel de um apartamento em Roma, com vista pro Coliseu, pra um político famoso, e ele respondeu que não sabia da nada. Hilário. Mas então; a secretária do Bossi pai já prestou depoimento falando que é claro que a família sabia de tudo, que recebia dinheiro de um monte de gente em troca de favores políticos, que usava os fundos que o governo dá aos partidos pra pagar as despesas da família, pra investir em contas em Chipre e na Noruega e coisa e tal. Neguinho começou a fazer pressão e ele renunciou.

Aí agora começam a aparecer os mil podres do filho, esse sem queixo com cara de banana. O garoto, que acabou de renunciar ao cargo de Conselheiro Regional da Lombardia (whatever) com a desculpa oficial de que “cansou da coisa”, apesar do salário mais alto do que o de um parlamentar europeu, é uma anta. Mas anta, anta, anta mesmo. Repetiu de ano duas vezes na escola e parece que o diploma que ele finalmente conseguiu ou é falso ou foi comprado. Agora o seu motorista particular prestou depoimento e soltou inclusive um vídeo no qual il Trota aparece contando dinheiro, o que deveria ser verba pra administração do partido mas que ele gastava como queria.

Tá pensando que essa casa da mãe Joana na política é só no Brasil, bem? Né não…

Pra quem quiser mais detalhes, há uma lista dos artigos recentes sobre o assunto (em italiano) aqui.

hoje

Hoje foi um dia quase histórico. Três coisas importantíssimas aconteceram e outra importantíssima deixou de acontecer.

1) O governo provisório do Mario Monti, totalmente filocatólico, decidiu (com certeza muito a contragosto e só porque a União Europeia ameaçou multar o país se não o fizesse) obrigar a Igreja Católica a pagar IPTU. Gente, cês tão entendendo a magnitude desse negócio? A Igreja vai pagar IPTU! Logicamente só relativo aos imóveis de uso comercial (e mesmo assim já tem gente achando que as escolas católicas devem ser isentadas, embora cobrem como qualquer outra escola particular), e logicamente, como se diz em italiano, fatta la legge, trovato l’inganno – literalmente “feita a lei, encontrado o modo de driblá-la – porque eles não vão dar esse mole. Prevejo uma multiplicação de capelinhas em todos os imóveis comerciais deles, pra justificar um uso como lugar de culto, excluindo assim a necessidade de pagar o imposto. Não importa; é uma coisa colossal isso que aconteceu hoje, porque há cinco anos atrás ninguém jamais sequer pensaria em dizer que eles também têm que pagar. O movimento que se criou na internet pra forçar o fim desse benefício absurdo cresceu de uma maneira quase assustadora; assustador também é o conteúdo dos comentários, que no início eram educados, “acho que eles também deveriam pagar, sabe, é pro bem do país…” e agora são “PEDÓFILOS VAGABUNDOS FILHOS DA PUTA, MORRA, PAPA, MORRA, VÃO PEGAR UMA ENXADA E TRABALHAR NA TERRA PRA VER O QUE É RALAR!”. Me divirto horrores. Não precisa nem dizer que muita gente vai ficar de olho pra reduzir o “inganno” ao máximo. Força, UAAR!

2) Outra novidade: vai ser possível adicionar o sobrenome da mãe aos filhos! Quase chorei quando vi a notícia na televisão. Na verdade já é meio que possível atualmente, porque há precedentes legais, mas nem todo mundo que entra com o pedido consegue, e quando consegue leva em média três anos. Parece que a coisa agora vai ficar muito mais simples, bastando mandar o pedido ao Prefetto (que não corresponde ao prefeito no Brasil), que depois vai decidir se pode ou não mudar. Não vou comentar sobre o poder do Prefetto porque ficar com raiva dá rugas; quem tem que decidir os sobrenomes dos meus filhos sou eu e o pai deles, mas estamos chegando lá. A Itália é quase um país civilizado agora, pelo menos nesse quesito. Baby steps. Eu ainda não tinha mandado o pedido pra dar o meu sobrenome pra Carol porque assim que comecei a me informar melhor apareceram os primeiros boatos de que as províncias seriam abolidas, e como o pedido tinha que ser mandado pra província de residência, achei melhor esperar pra ver no que dava. Semana que vem vou ligar pra Prefettura e pedir mais detalhes.

3) Parece que vai mesmo sair o divórcio breve. Porque atualmente um divórcio leva anos em meio aos labirintos burocráticos. A esquerda radical pede uma versão de divórcio relâmpago, que obviamente não vai colar, mas reduzir o prazo pra um ano é uma coisa linda. Não consigo imaginar o que deve ser querer se separar de uma pessoa, conhecer outra, querer casar de novo e não poder porque a merda do processo leva séculos rolando pra lá e pra cá! Nos fóruns católicos tem gente arrancando os cabelos, gritando aos quatro ventos que trata-se de mais uma ameaça à família tradicional. Ô gente chata que não tem nada melhor pra fazer… Não quer divorciar? Então não divorcia, porra!

Essas três decisões do governo ainda não foram aprovadas pelo Senado (ou Parlamento, sei lá), mas como os noticiários já estão dando a coisa como certa, resolvi ser otimista e acreditar.

4) O que deveria ter sido e não foi: um dos trocentos processos nos quais o Berlusconi está envolvido prescreveu, e o desgraçado não foi condenado (a acusa estava pedindo 5 anos). Esse, na verdade, é um processo de um processo: basicamente ele estava sendo acusado de subornar um fulano pra que mentisse a favor dele em um outro processo que tá rolando há um tempo (não me peçam detalhes que eu já perdi o fio da meada em meio a tantos processos). O tal fulano, que no início parecia que ia mesmo ajudar a condenar o Berlusca, estranhamente deu pra trás e agora afirma que inventou tudo. Haja saco, viu. Agora o pseudonano ainda anda por aí se declarando mártir, pobre perseguido, vítima e coisa e tal. Por que é que não morre logo, puta que o pariu.

o general inverno

Rapaz, a coisa anda feia por aqui. O frio siberiano que bateu na última semana e não dá sinais de querer ir embora já matou uma cabeçada na Europa toda e paralisou países inteiros. A Itália, sempre despreparada pra catástrofes naturais, é um deles. Vários vilarejos de regiões onde normalmente não neva muito, como o Lácio (a região onde fica Roma), estão isolados do mundo. Muitos sem gás, água (porque a tubulação e os reservatórios, cheios de água congelada, simplesmente estouram) e eletricidade (suponho que devido à queda de árvores derrubando postes e fiação). Os tratores removedores de neve não dão conta porque caiu MUITA neve em muito pouco tempo, de modo que as ruas e estradas estão bloqueadas e o socorro – remédio, água, comida, cobertores – tem que chegar de helicóptero.

Linhas de trens foram interrompidas porque árvores caíram na rede elétrica; teve gente que passou dez horas mofando dentro do trem. Outros ficaram presos no trânsito, por exemplo, no anel rodoviário de Roma, porque nevou pra cacete na capital, coisa que acontece uma vez na vida outra na morte, a zotoridade ficaram todas correndo pra lá e pra cá feito barata tonta e ninguém sabia o que fazer. Moradores de rua morrendo de frio já tem dúzias. Encontraram motoristas de caminhão mortos congelados dentro das cabines onde normalmente dormem; aparentemente o combustível congelou nos canos, o aquecimento parou de funcionar e os caras congelaram enquanto dormiam. Muitos acidentes nas estradas por causa do gelo no asfalto. Em regiões mais frias, onde a água nos canos dos aquecedores congelou, neguinho saiu descongelando tudo com o secador de cabelo pra poder ligar o boiler de novo.

A gente aqui está bem protegido porque estamos em um vale, cercados por montanhas altas em ambos os lados, mas bem afastadas. Nevou aqui também no fim de semana, acordamos com tudo branquinho lá fora, mas algumas horas depois já tinha derretido tudo. Mas se a prefeitura não mandar passar os caminhões que jogam sal no asfalto, fica impossível dirigir; o asfalto vira uma placa de gelo gigante.

Aliás, essa coisa do sal foi um grande problema esse ano. Primeiro porque realmente essa enormidade de frio não foi prevista com a antecipação ideal, lógico, então as regiões onde normalmente não faz esse frio todo só tinham a quantidade de sal que é usada todos os anos, nos invernos “normais”. E com esse frio a quantidade de sal necessária é muito maior. Segundo porque houve uma grande greve de motoristas de caminhão logo antes dessa friaca chegar. Não só os supermercados ficaram vazios, sem mercadoria porque os caminhões não circulavam e portanto não entregavam, mas as prefeituras ficaram sem sal porque os caminhões que o transportavam também ficaram parados por dias a fio. Ou seja, uma combinação de fatores que resultou numa merda geral.

Hoje as escolas aqui de Bastia e Santa Maria estão fechadas por decretos municipais, embora não esteja nevando. Olhando pela janela a gente vê uns floquinhos bestas voando no vento forte, mas é a neve do Monte Subasio que o vento sopra aqui pra baixo, e não neve nevada. Ontem à tarde estava -5 em Città della Pieve às 5 horas; -3 graus em Perugia no mesmo horário. Fomos jantar na Arianna e na volta o termômetro do carro marcava -2, às 9 da noite. Dificilmente temos essas temperaturas aqui, a não ser de madrugada; enfrentar essa friaca de dia não é mole. Estou aqui enfurnada com a Carol em casa, vendo Rei Leão, todas encasacadas porque o aquecimento não dá conta (aqui não é que nem os EUA, onde as temperaturas dentro de casa permitiriam o crescimento de palmeiras; por aqui o gás custa muito caro e os termostatos vão até um certo ponto só, não dá pra botar modalidade tropical. Dentro de casa estamos sempre de moletom). Vai ser um longo dia.

as novidades, essas desconhecidas

Que os italianos são resistentes às novidades vocês estão carecas de saber. A fila pra pagar pedágio em dinheiro com o hominho dando troco é muito mais longa do que a fila pra pagar com cartão de crédito, porque até hoje neguinho tem medo de cartão. Os internautas italianos são pouquíssimos e não compram quase nada online. Quando preenchi o formulário do censo online pra minha vizinha ela ficou me olhando com dois zoião como se eu fosse um E.T.. Então as novidades introduzidas pelo novo governo na tentativa de dar uma esquentada nas vendas foram uma paulada na cabeça da galera.

O negócio é o seguinte: liberou geral, não há mais horários fixos pra abrir lojas e supermercados, cada um abre quando quer, cagando solenemente pra domingos e feriados, comme il faut. Uhu. Pro consumidor é uma maravilha, porque quem antes precisava sair correndo pra fazer compras na hora do almoço (isso recentemente, hein, porque quando eu cheguei aqui os supermercados ainda fechavam pro almoço) porque é o único horário em que dá, agora vai ter sempre um lugar que abre até, sei lá, meia-noite. Aqui há uns poucos anos um supermercado, caro e feio, pertinho da casa da minha sogra, passou a abrir aos domingos: vive absolutamente lotado, e não só de turistas (fica perto da estação). Obviamente depois desse outros passaram a abrir também, senão faliam. Hoje praticamente todos os supermercados da zona abrem aos domingos – e tem SEMPRE gente.

O engraçado é o tom das reclamações dos pequenos comerciantes. Porque é lógico que os grandes supermercados e shoppings e lojas famosas vão ter muito mais facilidade em abrir em horários, digamos, não convencionais, então pode ser que um dia uma determinada mercearia perca o meu dinheiro porque eu acabe indo a um grande supermercado aberto num domingo, por exemplo, quando não tiver tempo de ir à mercearia no horário bizarro em que eles abrem. Essa reação eu entendo, mais ou menos. Mas, como disse um espectador no rádio outro dia, em resposta a um comerciante que se queixava exatamente disso: CONTRATA ALGUÉM, CACETE!

Porque como eu já expliquei antes, a IMENSA maioria das empresas italianas é de “conduzione familiare”, ou seja, só os membros da família trabalham nelas. E o maior protesto desses microempresários, pasmem, é que se, por exemplo, passarem a abrir na hora do almoço, a família não vai mais poder almoçar toda junta.

HELLO?

Eu acho isso absolutamente hilário. Lembro que uma vez, comentando com alguém a estupidez do BANCO fechar na hora do almoço, esse alguém me respondeu que os bancários também têm direito a almoçar.

HELLO? Rotação, anyone? Você vai almoçar e eu fico na caixa, depois vou eu e você fica? Lembro que esse alguém ficou pasmo com essa tática revolucionária de recursos humanos que eu descrevi. Simplesmente nunca passa pela cabeça das pessoas que é possível se alternar no trabalho. Porque, sabe, o horário de almoço é 13:30, quem é que vai querer almoçar antes ou depois disso, né, destrói a sua vida almoçar meia hora antes ou depois. Ó céus.

A mesma coisa acontece com o almoço em família. Porque requentar comida é heresia na Itália, logo a mamãe escrava tem que ficar de plantão na cozinha pros feitores machos comerem o macarrão escorrido há 2,8 segundos, senão passa do ponto. Então nem pensar botar o filhinho feitor pra almoçar macarrão requentado uma hora depois, enquanto o papai feitor volta pra loja. A sociedade italiana vai se desintegrar se todos os membros não almoçarem mais juntos, sem trocar uma palavra enquanto assistem ao TG1 dizendo o que a porra do papa comeu no café da manhã, ou então falando animadamente de temas relevantes como o novo carro do vizinho ou quem casou com quem e quantos primeiros pratos serviram na festa do casamento. Por isso a liberalização foi uma péssima ideia, porque vai acabar com o núcleo básico da sociedade italiana, que é a família. Afe!

CONTRATA UM FULANO, cruzes! Eu sei que manter um funcionário custa muito dinheiro – as despesas de impostos que o Mirco tem com INPS são absurdas, por exemplo – mas, cara, não tem tu, vai tu mermo, né não? Aliás, acredito que um dos objetivos dessa liberalização tenha sido justamente esse, ver se neguinho começa a empregar pessoas pra poder ficar aberto em horários adicionais, gerando empregos. Um outro ouvinte que mora em Londres comentou isso, que nas grandes cidades europeias normais, ou seja, não italianas, ainda existem muitíssimas pequenas lojas e mercados nos quais ou tem gente contratada trabalhando ou tem os membros da família se alternando nos turnos, o que é absolutamente normal, vamos combinar. Ninguém fechou nada e todo mundo trabalha e ganha o seu pãozinho. E o consumidor não fica desesperado procurando uma dúzia de ovos às dez da noite sem encontrar. Civilização é isso aí.