a semana

Essa semana foi meio bombástica.

Começou com a chegada da Newlands no domingo. O tempo estava uma verdadeira caca e com a neblina não se via absolutamente nada. O vôo dela de Londres foi então desviado pra Roma, de onde ela veio de ônibus.

Não preciso nem dizer que a semana foi ó-te-ma, rimos muito, dormimos, lemos, fofocamos, não fizemos nada, fizemos turismo, fizemos compras (ela comprou uma jaqueta linda. Linda. Hohoho), ela tirou fotos, apertamos o Legolas. Foi absolutamente lindo poder tirar essa semana de férias sem ter que pedir a chefe. Simplesmente comuniquei aos meus clientes que eu não estaria disponível pra trabalhar durante esses dias. Eu tenho realmente a melhor profissão do mundo.

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A outra notícia bombástica foi o suicídio do Roberto, um amigo do Mirco. A gente não via o Roberto desde o casamento dele, no ano passado (ou retrasado, já não lembro), e no funeral o Mirco ficou sabendo que ele andava supersumido do circuito barzinho-restaurantes da zona.

A história dele é a seguinte: o pai começou do nada e fundou uma empresa que produz pré-fabricados, ao ponto que praticamente todas as empresas aqui da zona funcionam em galpões que eles fizeram. Têm filiais em Roma, Milão e em outro lugar que não lembro. Abriram uma subsidiária que constrói casas e apartamentos. Têm quase mil funcionários. Patrocinaram a Eurochocolate há dois anos e patrocinam vários eventos locais. Tipo assim, você tá rodando em uma estrada qualquer na Itália e passa por baixo de um viaduto e vê o nome da empresa no bloco de concreto, sabe, porque foram eles que construíram. Estamos falando de MUITO dinheiro. Pois bem, ele é o único filho homem, e como o pai é um daqueles patriarcas à moda antiga, control freak total, proibiu terminantemente as duas filhas de sequer botarem os pezinhos na empresa, e o Roberto foi meio que assumindo a coisa conforme o pai ia envelhecendo. Estudou Economia e Commercio, morou em San Diego pra aprender inglês, viajava pra caramba, dava altas festas na colina da família perto de Assis (eles têm uma propriedade ali que ocupa uma colina inteira; foi onde ele se casou, aliás), conhecia a cidade inteira, fazia mergulho no Mar Morto, rodava centenas de quilômetros de bicicleta com o Moreno, colecionava CDs de jazz, lia bastante, desenhava muito bem.

Era um cara legal. Nos últimos tempos a gente andava com uma certa implicância porque ele só ligava quando precisava de um favor – ajuda do Mirco pra programar a lua-de-mel na Austrália, deixar o conversível no forno da oficina pra secar depois que passou a noite no gramado de casa e os sprinklers molharam tudo, pedir uma ferramenta particular pra um conserto especial. Mas não era má pessoa. Foi um dos primeiros amigos do Mirco que eu conheci, e o único que foi morar sozinho – e logicamente o mais interessante. Conheci várias namoradas dele, inclusive uma de Foligno que era a minha preferida e que eu torci pra que fosse a mulher da vida dele pra eu finalmente ter uma amiga decente aqui no interior do Cambodja. Ele acabou casando com uma psicóloga chatinha que ele já tinha namorado muitos anos atrás, mas a coisa terminou quando ela foi estudar no norte. Ele sempre foi apaixonadíssimo e correu atrás dela por anos a fio, até que ela voltou aqui pra roça e eles voltaram, e finalmente se casaram.

O lance foi que o negócio todo foi premeditadíssimo. O Moreno tava trabalhando na segunda, e duas horas antes da hora da morte o ônibus que ele estava dirigindo foi fechado pelo carro do Roberto, que ia a mil por hora em pleno centro da cidade, quase causando um acidente. O Moreno buzinou, o Roberto olhou mas não viu, e saiu voando. Depois ficamos sabendo que ele tinha preparado tudo de modo que todo mundo o deixasse em paz pra fazer o que ele tinha que fazer: inventou um almoço de negócios que nunca existiu, esperou um momento em que se liberasse uma das casas da família (a mãe, divorciada, estava no Brasil e a irmã maluca, que bebeu e deu vexame no casamento, estava abrindo um restaurante na Índia), foi pra lá sozinho e se enforcou. Não deixou bilhete, testamento, carta, recado, email, blog, diário, nada.

O detalhe mais horripilante é que a mulher dele está grávida de seis meses.

Então tipo assim: ele estava se tratando pro que eles aqui chamam de “esaurimento nervoso”, a.k.a. estresse agudo, mas ninguém sabe direito o porquê da coisa. Talvez porque o pai é um pentelho que nunca se contenta com nada, que é a hipótese mais provável. Já começam a circular histórias de que ele foi diagnosticado com um tumor no cérebro, outros dizem que era esclerose múltipla. Eu particularmente não acredito em nada disso, e acho que ele simplesmente cansou de tudo mesmo, e que a família agora aparece com esses problemas de saúde porque suicídio ainda é uma coisa feia que deve ser justificada sempre que possível. Mas não posso dizer com certeza. O que a gente fica chocado é que nem o amor pelo filho e pela mulher foram suficientes pra fazê-lo mudar de idéia, então não dá nem pra imaginar o nível da angústia que ele tava carregando no peito. E apesar do estresse ele foi visto no domingo anterior, na festa de S. Antonio, se pavoneando pela praça contando pra todo mundo que estava pra virar pai. O Peppe, outro amigo do Mirco (também casado com uma chata de galochas que também está grávida), cruzou com ele no consultório do obstetra e achou que ele parecia superfeliz. O Moreno, que também está se mudando, foi à loja de móveis verificar os últimos detalhes da cozinha e o cara que o atende disse que os móveis pra casa nova do Roberto estavam todos prontos, só esperando ele mandar entregar e montar.

Bom, ninguém nunca vai saber o que aconteceu de verdade.

Mirco disse que o funeral, que foi na basílica de Santa Maria, literalmente parou a cidade. Tipo o Rio no dia do show do U2 no Riocentro, lembram. A igreja entupida, uma muvuca de gente lá fora, trânsito parado. A mulher dele completamente zumbi, o pai impassível.

Eu sou solidária com suicidas. Entendo o gesto, e acho que todo mundo já passou por situações em que seria tão mais fácil acabar com tudo logo de uma vez e foda-se o mundo que eu não me chamo Raimundo. O problema é que uma grandíssima sacanagem com quem fica; é o gesto mais egoísta que existe. Já pensou essa criança (que eu nem sei se é menino ou menina) quando crescer? Já vejo o garotinho ou a garotinha, a cara do pai, perguntando pra mãe, mas o papai se matou mesmo sabendo que você estava grávida de mim? Será que ele não gostava de mim o suficiente? Não consigo imaginar uma situação mais barra-pesada.

O Mirco, que é um resolvedor de problemas nato, anda de péssimo humor, como sempre acontece quando se depara com um problema sem solução. Mais ou menos como quando eu tenho crise de enxaqueca: não existindo nada que ele possa fazer pra me ajudar, ele fica puto. Está intragável. Hoje temos jantar gay aqui em casa e espero que ele dê uma alegrada. Mas eu também não paro de pensar na coisa, ainda que ele não fosse meu amigo íntimo. É um evento muito, muito drástico.

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No mesmo dia do suicídio, à noitinha, nasceu a Giorgia, filha do floricultor com a siciliana. O floricultor em questão fazia parte do grupo de amigos que foi à Austrália com o Mirco em 99 – o Roberto também.

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E anteontem o governo caiu. É uma coisa freqüente. Eu lembro que quando estava estudando italiano o nosso professor um dia comentou que na Itália toda hora tem eleição, porque os governos não duram. Pra vocês terem uma idéia, o último governo da direita, aquele do mafiosão Berlusca, foi o único que terminou o mandato em não sei quantas décadas (se não me engano foi o único desde a criação da República). Esse mal tinha começado e já se esperava que caísse há muito tempo; com as dissidências internas a coisa ficou impossível. A política italiana é muito parecida com a brasileira: cada um faz o que é bom pra si mesmo e não pros interesses do país, as leis são feitas sob medida pra tirar da reta a bunda dos políticos sujos, tem envolvimento com organizações criminosas, os debates são todos feitos em cima de ofensas pessoais e não em propostas ou diferenças de opinião, e principalmente um político de uma facção é completamente incapaz de aceitar qualquer idéia do outro lado, mesmo que seja uma boa idéia que resolve um problemão do país. Lógico que assim fica difícil. Esse governo, que não fez o que cumpriu mas também não foi de todo ruim e pelo menos não tinha um primeiro-ministro envolvido em OITO processos de associação mafiosa, praticamente passou o mandato inteiro pedindo o chamado “voto de confiança” do Senado. Nem a própria esquerda votava a favor das decisões do governo, então eles recorriam a esse negócio do voto de confiança: você não aprova o que eu tô fazendo, mas pelo menos deixa eu tentar. Tava na cara que não ia durar muito, e acho que resistiu até tempo demais.

O problema agora é decidir se estabelecer um governo “técnico”, que assuma o leme até as próximas eleições, ou partir logo de cara pra novas eleições, sem mudar a lei eleitoral, que é complicada e ridícula e logicamente favorece a direita. Claro que o Berlusconi tá suuuuper em alta, apesar da idade avançada, e não tem a menor intenção de largar o osso. E o perigo dele voltar é grande, muito grande. *inserir a trilha sonora de Jaws*

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É isso aí, meus queridos.