cabelo

Minha filha abriu um Kinder Ovo mês passado e ficou chateada de ter tirado uma bonequinha loura, de cabelão comprido. Olhou o papelzinho que mostrava as outras bonequinhas da coleção e falou: poxa, tanta boneca diferente pra eu tirar e fui pegar logo a de cabelo louro e liso!

Quisera eu ter tido esse insight quando tinha essa idade; provavelmente muito da minha vida seria bem diferente hoje em dia. A minha vida inteira eu sempre desejei ter cabelão liso – não necessariamente louro, mas liso e comprido – e nunca enxerguei o fato de todas ao meu redor serem assim como mesmice. Eram simplesmente o que eu também queria ser (além de magra, obviamente; em toda a minha vida escolar eu sempre fui a única gorda, feia e de cabelo crespo da minha turma). Hoje, vendo fotos de amigas de escola no Instagram, fotos delas com as amigas, com suas mães e primas, a primeira coisa que me vem em mente é: MEU ZEUS DO CÉU, ELAS SÃO TODAS IGUAIS! Todas. Absolutamente iguais.

Se por um lado entendo a necessidade do ser humano de pertencer a um grupo, o que passa quase sempre pelo aspecto físico adotado pela coletividade, por outro a gente sabe que grande parte desse desejo de ser loura, lisa e magra é uma

Tcham tcham tcham tchaaaaaaaaam

CONSTRUÇÃO SOCIAL

Lógico. Ninguém nasce desejando ser loura (assim como ninguém nasce cristão, diga-se de passagem, mas aí é papo pra outro dia). Mas espera-se de nós, mulheres ocidentais, um determinado ideal físico absolutamente eurocêntrico que é inalcançável pra imensa maioria de nós. Embora não faça sentido querer ser algo que não somos, nossa vida gira, em boa parte, ao redor disso, frequentemente sem que nem percebamos. A ausência de outros tipos de referência, embora isso esteja mudando lentamente, estimula essa vontade de sermos o que não somos. Minha filha começou a ver na Netflix uma nova série sobre 5 adolescentes que usam a ciência pra resolver problemas. É aquela grande baboseira americana de sempre, canavial de clichês, mas pelo menos tem mulheres nas ciências. E há uma negra e uma hispânica no grupo, o que já é um avanço. Mas pergunta se tem alguém de cabelo curto? Não tem. Alguma delas é gorda? Claro que não. Muitas de nós permanecemos, portanto, sem representatividade, ou pelo menos sem representatividade natural – eu quero uma série ou um filme em que uma personagem seja gorda e isso não seja tratado como um problema central da história, em que isso seja somente uma característica dela, como ela ter olhos castanhos ou calçar 37. Tá difícil, mas pode ser que a gente chegue lá. Por enquanto, mulheres que não pintam os cabelos e mulheres de cabelos curtos também não aparecem em lugar nenhum. Eu, que me encaixo nessas duas categorias e também na categoria gorda, praticamente não existo, portanto.

Quando ouvi esse episódio (ouçam a parte 2 também) das PPKS Cintilantes sobre raspar o cabelo, a primeira coisa que pensei foi “mas nem fodendo que minha mãe olharia pra mim e diria nossa, cê tá linda”. Depois fui fazendo outros paralelos ao longo do episódio. Notei sobretudo que a minha atitude de cortar os cabelos curtos, em 2013 se não me engano, não impactou absolutamente ninguém à minha volta, assim como teve zero impacto eu não pintar o cabelo, ao contrário do que as meninas relataram no episódio. Sou a única mulher dos meus círculos sociais involuntários e padrãozinho – academia, mães da escola etc – a manter os cabelos curtos, crespos e grisalhos. É provável que todas elas me achem muito esquisita, mas como eu sou ogra dificilmente alguém vai fazer algum comentário estranho. E na real, dentro desses círculos eu sou esquisita mesmo – felizmente.

O problema é que a minha história de corte de cabelo foi a seguinte: odeio meu cabelo, quanto menos houver dele, melhor, vou cortar. O que, convenhamos, é um péssimo motivo pra cortar o cabelo. Por que não raspei logo de cara? Porque na minha cabeça (hohoho) pra raspar a cabeça tem que ser magra e ter rosto bonito, senão fode a bagaça.

O mesmo raciocínio – odeio meu cabelo – é o que provavelmente está por trás da minha incapacidade de entender o valor imenso que a maioria das pessoas dá ao cabelo. EU SEI que cabelo é moldura do rosto e que a sua fisionomia pode mudar radicalmente de acordo com o corte, a cor, a textura; não é disso que eu tô falando. Tô falando de gente que chora se no salão cortarem um dedo a mais da juba. Tô falando do fetiche religioso que obriga as mulheres a cobrir a cabeça. Tô falando de mulher que malha de cabelo solto, o que é tanto perigoso quanto pouco higiênico, simplesmente porque não consegue abrir mão do cabelão. Tô falando do cabelo enxergado como símbolo de feminilidade e instrumento de sedução, é isso. O que, se você parar pra pensar direitinho, implica que uma mulher de cabelo curto é menos mulher. É isso que eu não entendo – e atualmente também não aceito.

A verdade é que jamais entendi a tara por cabelo – eu queria ter cabelo liso pra ser igual às outras, mas nunca entendi por que se dá tanto valor ao cabelão. Continuo não entendendo, e isso pode ser, em boa parte, resultado de recalque, sim, não me custa nada admitir (embora eu já tenha alisado o cabelo e tenha continuado achando tudo horrível). Talvez se eu não odiasse tanto o meu, conseguiria dar valor, mas pra mim cabelo é simplesmente nylon que cresce.

O lance de tingir é outro babado. Nunca passou pela minha cabeça pintar o cabelo, de verdade. Usei tonalizante uma vez por pura curiosidade, ficou uma merda (lógico), saiu com meia dúzia de lavagens. Nunca mais. Já tenho uma infinidade de grilhões estéticos, tá de bom tamanho. Claro que pra mim é muito mais fácil encarar os grisalhos porque nunca trabalhei no mundo corporativo, onde a pressão estética provavelmente teria me levado ao suicídio na primeira semana, mas de qualquer forma, esse é um tipo de neura que eu não tenho. Ufa.

É muito libertador não ter cabelão. Embora as minhas motivações pessoais não sejam políticas, eu vejo o ato de não tingir e de não se render à dominação do cabelão como um ato político, sim senhora. De modo que é libertador do ponto de vista político, mas também do ponto de vista prático – olha quanto dinheiro deixo de gastar, olha quanto tempo eu deixo de desperdiçar secando, penteando, me preocupando, olha quanta energia eu poupo tendo menos cabelo pra me preocupar. É delicioso não ter MAIS ESSA paranóia na minha vida. E olha, ainda por cima conheço um monte de homens (e mulheres) que têm tara por nuca, viu ;)

E antes que alguém venha me encher o saco, não tô dizendo que toda mulher com cabelão é ridícula nem que todo mundo deveria raspar a cabeça. Estou dizendo o que eu constatei ao longo dos anos, observando as pessoas e lendo – olá, O Mito da Beleza, tudo bem? (inclusive, sobre isso, AGUARDEM E CONFIEM) – a gente acha que precisa ter cabelão, mas não precisa. Não é necessário ter cabelão. Não é necessário sermos magras. Não é necessário sermos lindas. Não precisa, mas se quiser, pode. Na real, o lance é que cada um sabe de si. Mas só consegue saber de si quando se tem consciência do que tá rolando, e seguir a boiada sem refletir é o exato oposto disso.

Não descarto completamente a hipótese de raspar a cabeça um dia. Só espero que se rolar, que seja pelos motivos certos.

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