a bota foi pro brejo

Deixa eu tentar explicar a atual situação política aqui na Itália.

O Berlusconi está no poder há 15 anos, de maneira intermitente mas sempre presente. Cheio da grana, dono de metade da imprensa italiana, de universidades, de lojas de departamentos, de time de futebol, de editoras, de bancos, é lógico que ele não só moldou as leis do país de acordo com os seus interesses, mas moldou também as mentes do povão, porque a televisão mostra o que ele quer, as editoras publicam o que ele quer, as universidades ensinam o que ele quer, os jornais dizem o que ele quer. De modo que criou-se assim uma geração inteira de idiotas que realmente acham o cara o máximo, superengraçado, garanhão que come todas, pelo qual as moças novinhas, puras e inocentes se apaixonam pelo simples fato dele ser uma pessoa fascinante. É essa a resposta à pergunta que muitos jornais estrangeiros vinham se fazendo nesses anos todos: por que diabos a Itália atura esse traste?

A esquerda italiana não é mais a mesma, há muito tempo. Os políticos de esquerda são confusos, em cima do muro, e tão escravinhos da Igreja quanto a direita. Pra mim a única que merece respeito é a Emma Bonino, que sempre tem ideias claras e ponderadas, e é coerente consigo mesma. Também gosto do Tonino, mas ele tende a criar caso de uma maneira bobinha, quase infantil, o que acaba não resolvendo as coisas e transformando-o quase em um personagem de folclore. E então acaba-se não tendo pra onde fugir. Eu não tenho direito a voto, mas se tivesse sinceramente não saberia em quem votar.

Esse Mario Monti que assumiu no lugar do Berlusconi é um ilustre desconhecido aqui na Itália. Olha, eu moro aqui há quase dez anos, acompanho a política de perto porque acho tão surreal que chega a ser interessante, os políticos toda hora aparecem na televisão, em entrevistas, em programas de debate, em programas de auditório; as caras costumam ser sempre as mesmas, mas do Monti eu nunca tinha ouvido falar. Ninguém que eu conheço tinha ouvido falar dele antes da sua nomeação como senador vitalício (25.000 euros por mês de salário) e depois como premier. E olha que o cara tem um nome fácil de lembrar: nome e sobrenome com aliteração (coisa que eu detesto e portanto fica me irritando por horas a fio), parecido com Marisa Monte, e, principalmente, porque a locução adjetiva “mari e monti” (mares e montes) se usa pra descrever pratos que combinam frutos do mar e cogumelos – tipo risotto mari e monti, tagliatelle mari e monti. De modo que se digo que nunca tinha ouvido falar dele antes é porque realmente nunca tinha sequer ouvido o nome, ou me lembraria. O cara é um frequentador dos altos escalões no mundo da economia e é muito respeitado lá fora, o que já é uma grande coisa, principalmente pra quem vem do trauma que é ter aquela COISA como premier, sacaneado no mundo inteiro. Mas também é óbvio que os interesses dele são os mesmos dos bancos e das bolsas de valores e do mundo das finanças, o que pode ser bom a curto prazo, pois o objetivo imediato é tirar a bunda do país da reta pra evitar que acabemos como a coitada da Grécia. A longo prazo a ideia é péssima, mas como espera-se que esse governo seja apenas provisório, há esperanças.

O mandato do psiconano (psico-anão, como o Cavaliere é gentilmente conhecido nos fóruns na rede) deveria acabar em 2013; o governo Monti é, então, uma espécie de tapa-buraco, de remendo, de band-aid de emergência. E trata-se de um governo “técnico”, como eles dizem aqui: formado não por políticos, mas por professores, economistas, profissionais apartidários (pelo menos em teoria) cujo objetivo é tirar o país da merda e não fazer política. Só que nem tudo são flores…

Quem estava esperando uma política ligeiramente mais laica, ligeiramente menos submissa à Igreja, literalmente se fodeu. Porque os novos ministros incluem o presidente de um movimento eclesiástico como Ministro da Cooperação, o reitor da Universidade Católica de Roma como Ministro dos Bens Culturais, um professor da mesma universidade como Ministro das Relações com o Parlamento, o líder de outro movimento eclesiástico como Ministro da Saúde (tem como dar certo isso?), entre outros. O Cardeal Bagnasco, presidente da Conferência Episcopal Italiana e um grandíssimo, IMENSO FILHO DA PUTA, arrogante, mal educado, cara-de-pau, mentiroso, falso, desgraçado, já mandou recadinho pro novo premier dizendo-se satisfeito com as escolhas. Por que diabos um filho da puta de um cardeal, que aliás já deu declarações na televisão dizendo que a Igreja não faz política, imagina, se acha no direito de aprovar essa ou aquela equipe de ministros is beyond me. Esse país anda me cansando uma quantidade.

Veja se não tenho motivo pra me irritar: a última gracinha do governo do psiconano, coisa assim, de rabeira, pra sacanear mesmo, foi dificultar mais ainda a fecundação heteróloga na Itália. Neguinho que precisa fazer fecundação artificial já tende a ir pro exterior porque aqui as dificuldades são muitas, mas agora ficou pior ainda: mesmo quem tem doenças genéticas graves como fibrose cística não pode mais fazer fecundação heteróloga. Ou seja, ou você usa ou seu próprio óvulo/espermatozóide e enfrenta o grande risco de passar pro seu filho a sua doença, ou fica sem filho e azar o seu. Legal, né. Talk about livre arbítrio. Livre arbítrio my ass. Isso porque, apesar do aborto ser permitido legalmente no país, aqui rola uma coisa chamada “objeção de consciência”. Significa simplesmente isso: um médico pode se recusar a fazer isso ou aquilo se o tal procedimento ou conduta for contra os seus preceitos religiosos, ou a sua consciência. Cuma? Isso mesmo que você ouviu. Há hospitais onde é praticamente impossível abortar porque TODOS os ginecologistas se declaram “obiettori di coscienza” e se recusam a fazer o procedimento. Ora, façam-me o favor! O aborto é legal há não sei quantos anos, se você se formou quando a lei já estava em vigor, por que não foi fazer oftalmo em vez de uma especialidade da qual o aborto faz parte como procedimento médico? Não preciso nem comentar que muitos desses médicos que se declaram obiettori di coscienza e se recusam a fazer o aborto no hospital público oferecem à paciente a possibilidade de fazê-lo no próprio consultório particular, a cifras módicas. Forca pra todos eles, forca, flagelação em público, cicuta, esses filhos da puta têm mais é que morrer. Se tem coisa que me dá ganas de estrangular é a hipocrisia.

Continuando no assunto Vaticália, fiquem sabendo (porque quase ninguém sabe) que atualmente a carga horária de IRC (“insegnamento di religione cattolica” – vejam bem, não “religião”, mas “ensino da religião CATÓLICA”) é de duas horas por semana já a partir DA CRECHEEEEEEE! Teocracia? Nããããããão, impressão sua… A Carol só não faz religião porque estuda em escola particular e totalmente laica. Teoricamente essa hora de religião deveria ser opcional, só pros alunos cujos pais fazem a requisição formal à escola, mas na prática é o contrário: se você não quer que o seu filho faça religião tem que fazer a requisição de “hora alternativa” (alternativa à hora de ensino de religião católica), só que as escolas não têm dinheiro, pessoal ou estrutura pra fazer a tal hora alternativa e as crianças que não fazem religião normalmente ficam sozinhos numa sala de aula sem fazer nada, ou brincando no pátio. Gostaram? Agora vamos jogar sal na ferida: quem escolhe os professores de religião é o bispo de cada bispado, mas os professores são pagos pelo Estado! Mais: eles têm uma imensa facilidade em fazer carreira, escolher o lugar pra onde querem se transferir, os horários nos quais preferem trabalhar, e ainda por cima passam da situação de contrato precário direto pra professor assistente, com posição inabalável de funcionário público, em um bater de olhos, enquanto que há professores das outras matérias que passam a vida inteira como precários, sem nunca saber se vão acordar no dia seguinte ainda com emprego.

Bom, a esperança é a última que morre e coisa e tal, portanto vamos esperar pra ver que bicho que vai dar esse novo governo.

P.S.: Viram que abri a caixa de comentários? (Valeu, Claudinha!) Por favor comportem-se. E o primeiro que escrever “à Roma” vai levar uma trauletada.

23 ideias sobre “a bota foi pro brejo

  1. Gostei desta parte do texto: “de um governo “técnico”, como eles dizem aqui: formado não por políticos, mas por professores, economistas, profissionais apartidários (pelo menos em teoria) cujo objetivo é tirar o país da merda”… Eu sou descendente de um italiano chamado Ricardo Cursino, que era avô da minha bisavó! O filho dele: Maximiano Cursino é quem veio para o Brasil!

  2. Leticia acho que sou mais uma das viciadas e viciados no seu blog, (eu sou hà anos)… Agora descobri porque gosto tanto de te ler… Voce deve ser muito chata pessoalmente, ahahahah nao leve a mal, eu também sou!!!!

    Complimenti!!!!
    Ps: perdoem a “mancanza” de acentos, è culpa do teclado italiano.

  3. Ah, sim. Letícia (tem acento?), você já voltou

    À ROMA DE SUA JUVENTUDE?

    Levo trauletada? Ou trapaceei?

    É trauletada ou traulitada? (Minha mãe sempre disse com I.)

    Valeu abrir a caixinha dos comentários! Há cinco anos tento deixar um, o passivo acumulado é enorme!… :-)

    • Sinceramente não fui procurar no dicionário (a minha versão do Houaiss não roda no Mac e não tenho dicionário de papel), mas eu sempre ouvi com E. Vou me informar.

      Ó, não tinha comentários mas sempre teve o endereço de e-mail disponível pra quem quisesse escrever, tá :P

  4. Leticia, um dia encontrei teu blog…. li.. li… li todo, desde o início. Acompanhei tua trajetória…empolgante para mim. Depois…parou…senti falta…e hoje
    finalmente te reencontrei !!!!! Ativa e apimentada como nunca….Não pare mais por favor… Helena

  5. Eu não te conheço, não tenho blog e nem sou assim imbuída de espírito tecnológico (twitter, facebook etc) mas, há muitos anos sempre acompanho seu blog. Divergimos em muitos assuntos mas, a forma que você escreve é de uma ironia viciante! Que bom que voltou a escrever e que bom que agora eu pude – finalmente – te dizer isso.

    • Andrea, obrigada :) Eu também tenho uns blogs de estimação cujas autoras eu adoro apesar de não termos nada em comum; aprendo sempre muito com elas e repenso muitas das minhas ideias quando vejo pontos de vista totalmente diferentes do meu escritos de maneira interessante :) Mas vamos combinar que você poderia perfeitamente ter mandado um e-mail, hein… ;)

  6. Sabe como eu defini Berlusconi quando cheguei aki…. a mistura de Silvio Santos cm o Maluf!!!! Finalmente ele saiu..mas nao sei se colocar o M&M assim sem eleicao foi bom… esperamos q sim…. pq ficou parecendo um golpe..sem guerra!!!! Va bene melhor M&M do que Berlusconi…..e nao vou nem comentar da influencia da igreja catolica..no governo…fa proprio schifo!!!! e um nojo!!!

  7. Oba, finalmente podemos comentar ;-) Absurda essa história do Berlusconi, mas faz sentido com tudo que você explicou, contexto é tudo mesmo. Ainda bem que ele finalmente saiu, palhaçada tem limite, vamos ver se esse governo técnico consegue fazer alguma coisa…essa mistura de política e religião na Itália é pra deixar qualquer um louco, aqui nos EUA eu já fico doida com esses conservadores que querem botar religião em tudo e não chega nem perto da situação daí, uia.

  8. Adorei, adorei. Na Suécia nego ainda está tentando entender a Itália. A correspondente da rede estatal daqui, a ótima Christina Kappelin, aparece linda nas manhãs de Roma (aqui a luz só vem – quando vem – lá pras 10 da manhã) e tenta explicar como as coisas funcionam. Os âncoras dos jornais da manhã e da noite suecos fazem perguntas e ninguém entende como é que as coisas na Itália, um país importantíssimo na Europa, podem estar assim. Ninguém, nem mesmo eu depois de mais de 10 anos de Suécia, consigo entender como é que os italianos votam o tempo todo por ele. A escolha do Mario Monti parece ter sido aprovada porque sueco adora um nerd, ainda mais se for economista (você precisa ver o chef do Riksbanken, equivalente ao Banco Central do Brasil, ele se chama Stefan Ingves, goggla ele aí e veja). Adorei a comparacão do nome dele com a apresentacão de pratos… Fiquei pensando, tudo na Itália é ligado à comida, é? :)
    Interessante isso que você escreveu dos colégios, interessante, da fertilizacão, dos abortos, a influência da igreja em todas as partes da sociedade. Interessante e chocante. Fico assim, aliviada, porque aqui é diferente. Sinceramente. Bjks.

    • Maria, TUDO tem a ver com comida, é engraçadíssimo. Tem umas expressões sensacionais, vou ver se vou anotando conforme for lembrando e começo a postar aqui porque é engraçado mesmo.

      Adorei “nego ainda está tentando entender a Itália” hohohohoh! A ideia é exatamente essa, esse país não faz sentido nenhum, é absolutamente surreal e muito divertido (se você souber deixar de lado os aspectos irritantes só um pouquinho).

  9. Que bom te ler de novo, Leticia!
    De tudo o que vc escreveu, o que mais me surpreendeu foi saber que tem quem GOSTE do Berlusca. Pra mim, o que o fazia continuar ad eternum e principalmente ad nauseam no poder era manipulação de votos. Não contava com a manipulação das mentes fracas…
    Fiquei passada, mas não surpresa, com a questão de “consciência” do aborto. Aqui tb é legalizado, mas existe uma sessão de “aconselhamento” antes, geralmente com gente ligada à igreja. (Não sei se isso tem a ver com o fato de o papa ser alemão ou se é a eterna e inconveniente maneira de se meter em tudo.)
    Nas escolas daqui existe a possibilidade de escolher entre aulas de educação religiosa ou ética. (Mas o resto do sistema educacional alemão continua merecedor de todas as críticas possíveis e mais algumas, mas não vou me estender nesse assunto, pra não sair dos temas do post.)
    Espero que o Monti faça uma boa transição, na medida do possível e que a Itália se recupere desse Arschloch do Besluca.

    • Se eu tivesse decidido abortar e viesse um imbecil querendo jogar esse papo de bíblia pra cima de mim eu juro que matava um. Paciência zero com essa gente que vive metendo o bedelho na vida dos outros.

      Beijos!

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