:))))))))))))))))))))

Bom, tá todo mundo se roendo de curiosidade pra saber como foi a Demissão Bombástica, e eu tô doida de vontade pra contar pra vocês. Então vou enfrentar a minha internet recém-instalada e já problemática, lentíssima e instável, e descrever a cena. Eu fico com frio na barriga de felicidade só de lembrar, imaginem escrever sobre. Munam-se de pipoca e divirtam-se. Os asteriscos indicam o que eu estava pensando. Todos os nomes são fictícios.

INTERNO. SALA DO DEPARTAMENTO COMERCIAL, IMPROVISADO COMO SALA DE REUNIÕES. MANHÃ. TO-DO O PESSOAL REUNIDO. NA MESA DA CHEFA, EX-MESA DO ANDRÉ, DOCINHOS, SALGADINHOS E REFRIGERANTES.

[CHEFA ESCROTA] Fiquem à vontade, comam e bebam que estamos festejando!

[PACAMANCA] Festejando o quê?

[CHEFA ESCROTA] A saída do André, que se demitiu ontem. Gente, como eu sou azarada! Primeiro o marido da romena, agora o André, todos os filhos da mãe vêm parar aqui!

*Por que será, né…*

[CHEFA ESCROTA] Estamos festejando porque ninguém vai sentir a menor falta, né. Fala aí alguém do Comercial se vai sentir falta dele.

[CRISTIANA, A FALSA] Realmente… Era como não ter um Chefe do Comercial, nunca vi ninguém tão incompetente e desinteressado…

[CHEFA ESCROTA] Pelo menos agora podemos usar o banheiro!

[PACAMANCA] Mas foi ele mesmo que jogou as garrafas de plástico em todas as três privadas?

[CHEFA ESCROTA] Claro que foi. Também deu um chute na porta do carro da empresa, que tá lá a marca do sapato bem visível, e também roubou o celular do Alexandre.

[JACKIE, A CHEFA DOS TRADUTORES, QUE NÃO TEM NEM DIPLOMA UNIVERSITÁRIO, JÁ FOI FAXINEIRA E É SÓ POR ISSO QUE AGÜENTA A CHEFA ESCROTA HÁ QUATRO ANOS] Uma pessoa assim realmente não está boa da cabeça. Que homem horrível.

[CHEFA ESCROTA] Realmente. Imaginem que ele mentiu sobre o diploma universitário! Disse que era formado e não era, e quando a empresa que faz a certificação de qualidade foi analisar os diplomas descobriu que não era verdade e quase perdemos a certificação. Porque entre os chefes de departamento pelo menos 51% devem ter diploma universitário pra gente obter a certificação, sabem. Eu sou formada, a Jackie quase, só faltavam duas matérias *MENTIRAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA ELA SÓ FEZ DOIS ANOS DE ENFERMAGEM*, e ele como chefe do Comercial tinha que ser formado também pra fazer a maioria. Mas não era. Aí nós começamos a ligar pras empresas onde ele trabalhou antes de vir pra cá pra perguntar se ele era formado *QUE MÉTODO MAIS IDIOTA; SE ELE MENTIU PRA CHEFA ESCROTA TAMBÉM PODERIA TER MENTIDO PROS EMPREGADORES ANTERIORES, NÉ*. Elisabeth, diz pro pessoal o que foi que te disseram no telefone.

[ELISABETH, QUARENTONA BONITONA, PIRANHA, MÃE DE DOIS FILHOS, SEPARADA DO MARIDO, NUNCA TRABALHOU, NÃO SABE FAZER NADA E PASSA OS DIAS PERAMBULANDO PELO ESCRITÓRIO ANOTANDO COISAS INÚTEIS E FOFOCANDO COM A CHEFA ESCROTA] Falaram que não querem nem ouvir o nome dele. Coisa realmente terrível.

[CHEFA ESCROTA] Ele me acusou de ter falsificado o currículo dele quando mandei pra empresa da certificação, vocês acreditam?

*NÃO SERIA A PRIMEIRA VEZ…*

[CRISTIANA A FALSA] Coisa horrível…

[CHEFA ESCROTA] Mas estou sentindo que esse ano vai ser o meu ano de sorte. Já nos livramos do marido da romena, do André, em agosto chega o sueco bonitão… Você viu o sueco bonitão, Leticia?

[PACAMANCA] Não.

[CHEFA ESCROTA] Ah, não sabe o que está perdendo. Aliás, você anda perdendo muita coisa ultimamente, não veio ao nosso jantar da empresa…

[PACAMANCA] Sou muito ocupada.

[CHEFA ESCROTA] A gente conhece os maridos e namorados de todo mundo, menos o seu.

[PACAMANCA] Você viu meu marido uma vez, no supermercado.

[CHEFA ESCROTA] Ah, é? Não lembro. Mas você não veio ao jantar porque teve que levar teu pai ao aeroporto, não foi?

[PACAMANCA] Foi. *MEU PAI TINHA IDO EMBORA DOIS DIAS ANTES*

[CHEFA ESCROTA] Um dia, quando você for menos ocupada, talvez dê pra você participar das coisas que a gente organiza.

[PACAMANCA] Aham. Bom, podemos voltar ao trabalho? Valeu.

***

INTERNO. SALA DO DEPARTAMENTO COMERCIAL, DE NOVO. DEPOIS DO ALMOÇO. TODO O PESSOAL REUNIDO NOVAMENTE.

[PACAMANCA] Pô, Chefa Escrota, de novo? Tenho muita coisa pra fazer!

[CHEFA ESCROTA] Você vai reclamar mais ainda quando souber sobre o que é a reunião.

TODOS EM PÉ EM VOLTA DA MESA DA CHEFA ESCROTA. PAULA, TRADUTORA DE ALEMÃO, ESTÁ EM PÉ AO MEU LADO.

[CHEFA ESCROTA] Eu quero saber o que vocês duas, Leticia e Paula, tanto reclamam.

SILÊNCIO

[CHEFA ESCROTA] Podem desembuchar, sou toda ouvidos.

[PACAMANCA] Cê tá com tempo pra ouvir? Porque a lista é longa.

[CHEFA ESCROTA] Pode falar.

[PACAMANCA] Vocês fumam o tempo todo, gritam o tempo todo, o telefone toca o tempo todo, a campainha toca o tempo todo e não tem ninguém pra abrir a porta, trabalhamos feito camelos, tavam 36 graus no escritório semana passada com aquele computador maldito queimando as minhas pernas… Quer mais?

[CHEFA ESCROTA] Eu quero saber mais. Porque a Jackie me contou que você andou falando mal da nossa agência pra outra agência em Perugia.

[PACAMANCA] Eu nunca fui a nenhuma agência em Perugia *MAS EM BASTIA SIM*

[CHEFA ESCROTA] Eu quero saber por que é que você foi esculachar o trabalho dos seus colegas.

[PACAMANCA] Não esculachei o trabalho de ninguém. Não é nossa culpa se as condições de trabalho aqui são ridículas.

[CHEFA ESCROTA] E você, Paula, que foi falar pro sueco bonitão, que pena que não dá pra falar a sós com você, senão eu diria pra você não vir trabalhar aqui!

[PAULA, MUITO NERVOSA] Eu não falei coisa nenhuma. Eu cheguei cedo como todos os dias, porque venho de trem, ele tava aqui e me cumprimentou, se apresentou, perguntou há quanto tempo eu tava aqui e eu falei que há alguns meses, mas que já tinha pedido demissão. Mais nada.

[CHEFA ESCROTA] Falou isso, mas pensou que se pudesse falar com ele a sós diria pra ele não trabalhar aqui!

[PAULA] Pensar, pensei mesmo, mas não falei.

[CHEFA ESCROTA] Então de agora em diante vocês duas fiquem com os pensamentos pra vocês mesmas e não digam nada!

[PACAMANCA, EM ARROUBO DE CORAGEM CAUSADA PELA RAIVA INFINITA] Pára de berrar. Porque por mim pessoas que berram seriam enforcadas em praça pública. Pára de berrar ou eu vou embora AGORA e deixo você falando sozinha.

COLLECTIVE CRINGE.

[CHEFA ESCROTA] Fala mais então, fala! Porque eu sei que você tem muito do que reclamar! Sei também que você tirou foto do meu escritório, e os meus advogados não estão muito felizes com isso.

[PACAMANCA] Sabe por que eu tirei foto? Porque quando eu conto que trabalho na terceira maior agência de tradução do país, sentada num escritório de 3×2 metros com outras três pessoas, com 36 graus de temperatura, numa escrivaninha tão pequena que meus poucos dicionários têm que ficar no chão, ninguém acredita. Tirei as fotos pra provar.

[CHEFA ESCROTA, IDIOTAMENTE SARCÁSTICA] Ah, a senhora então quer um computador especial que não esquenta! Vou mandar inventar só pra você!

[PACAMANCA, INCRIVELMENTE IRRITADA] Deixa de ser idiota, Chefa Escrota, eu quero é condições de trabalho decentes! Nem os menininhos que fazem tênis pra Nike na China trabalham nesse calor, tenho certeza! E tem mais, quer saber, esse lugar é uma merda, é tudo uma merda. Detesto trabalhar aqui, odeio essa berração, essa fumação generalizada, odeio essa falta de organização, essas festinhas idiotas que vocês fazem, essas reuniões todo dia, toda hora, essa fofocalhada toda, essa mentirada toda, tipo quando a Michele saiu…

[CHEFA ESCROTA] O problema de vocês duas é que vocês não sabem o que é ser uma senhora. Eu fui uma senhora, uma lady, porque em vez de dizer que a Michele roubou dinheiro da empresa eu disse que ela tava deprimida.

[PACAMANCA, COM PRESSÃO ARTERIAL LÁ NOS CAFUNDÓS] Em primeiro lugar, não entra nesse assunto de quem é senhora e quem não é, porque eu ganho de você disparado, querida. Não sou eu que falo da minha vida sexual com os alunos, eu não grito, não fumo e não minto compulsivamente. Segundo que a palavra “deprimida” não foi bem o que eu ouvi. Pelo que eu me lembro, e minha memória é ótima, naquele dia você abriu a porta pra mim de manhã cedo e não falou nem bom dia, disse logo “A Michele enlouqueceu, está no hospital psiquiátrico”. Entre deprimida e maluca a diferença é bem razoável.

[CHEFA ESCROTA] Porque ela roubou dinheiro, mas eu preferi ser elegante e não contar essa coisa horrível pra vocês. Porque eu detesto gente que fala besteira, então também não falo.

[PACAMANCA, LEVANTANDO LIGEIRAMENTE O TOM DE VOZ] PFFFFFFFFFFFFFFFF Mas faça-me o favor, você mente até quando diz
que horas são! Mas o problema é, por que diabos a gente tinha que saber do que aconteceu? Isso é um problema de vocês, eu só quero chegar aqui, trabalhar e ir embora, por que tenho que ficar sabendo dessas intrigas malucas que vocês criam? NÃO ME INTERESSA, tenho mais o que fazer! Até porque toda hora alguém vai embora, então toda hora tem intriga maluca rolando.

[CHEFA ESCROTA, EM MOMENTO PARTICULARMENTE IDIOTA] Como assim, toda hora alguém vai embora? Quem é que foi embora?

[PACAMANCA, COM SORRISO SARCÁSTICO E CONTANDO NOS DEDINHOS ESBELTOS] Olha que a lista é longa, tá com tempo? Vanessa, Laura, Stefano, Roberta, Marcos, Susana, Cristina, Bruno, a garota da gráfica, a outra garota da gráfica, Rosana, Rosita, Máximo, Michela, Simona, a outra Laura, a cubana… Quer mais ou já tá bom?

[ELIANA, PUXA-SACO CHEFE DO DEPARTAMENTO DE PLANNING] Bom, tem que analisar pra ver o que essas pessoas fizeram…

[PACAMANCA, NO AUGE DA RAIVA] Mas faça-me o favor, estatisticamente não é possível que TODAS essas pessoas tenham feito cagada aqui dentro, mas será que você não percebe que o problema é você, Chefa Escrota? Nem a Ford tem um turnover de funcionários tão grande!

[CHEFA ESCROTA] Engraçado que há um mês atrás, quando você veio pedir aumento, não parecia tão descontente.

[PACAMANCA] Eu estou querendo me demitir desde que comecei a trabalhar aqui, querida.

[CHEFA ESCROTA] Mas veio pedir aumento do mesmo jeito!

[PACAMANCA] Quem trabalha bem merece ganhar bem, você não acha?

[CHEFA ESCROTA] Trabalhar bem! Hmpf! Você faz cada erro de tradução alucinante, mas o Planning não te diz nada porque são gentis!

[PACAMANCA] HOHOHOHO! Primeiro que todo mundo erra, e quando acontece elas me ligam imediatamente pra dizer que pulei uma linha ou faltou uma palavra ou outra coisa desse tipo, então não vejo por que não me chamariam se tivesse um erro horripilante como você tá dizendo. Segundo que apesar de ter inglês de native speaker eu não sou native speaker E VOCÊ SABE DISSO. Terceiro que eu quero ver outra pessoa traduzindo SESSENTA LAUDAS por dia, como eu já cansei de fazer, SESSENTAAAAAAAAAAAAAAAAAAA, num escritório a 36 graus, com dois dicionários de merda, uma escrivaninha de merda, uma cadeira de merda, com gente fumando e gritando do lado, e ainda por cima tendo que planejar aulas e falar com aluno porque não temos secretária, e não cometer erros. Quero ver! Me poupe, né. E não sei por que essa preocupação com qualidade agora, já que os trabalhos que fazemos são todos uma merda. Tipo os signos do zodíaco traduzidos em inglês como Twins, Scorpion, Bull etc, como eu sei que aconteceu. Porque você não é a única pessoa a ter espiões aqui dentro, e eu sei MUITO MAIS do que você imagina.

[CHEFA ESCROTA] Espiões, hah! Você diz que sabe de tudo, mas não sabe da missa a metade. O Marcos, que você fala que foi embora brigado com a gente, outro dia me escreveu se oferecendo pra traduzir pra mim!

[PACAMANCA] Da casa dele, não aqui, né. E sendo pago por lauda e não por hora, feito os funcionários marroquinos do meu marido. Porque a gente aqui ganha que nem operário lanterneiro. Você não se envergonha não? De dar um salário tão baixo? Porque eu me envergonharia de pagar essa merreca que você paga pra gente que faz um trabalho altamente especializado. Mas como você é a pessoa menos profissional que eu já vi na minha vida, não me espanto.

[ELIANA] O mínimo que você podia ter feito era ter sido um pouco mais ética e se demitir em vez de falar mal do seu trabalho.

[PACAMANCA] De fato, estou me demitindo nesse exato momento.

[CRISTIANA A FALSA, OFICIALMENTE A DIRETORA DA ESCOLA DE LÍNGUAS MAS QUE NÃO FAZ PORRA NENHUMA POR LÁ PORQUE
TRABALHA NO SETOR COMERCIAL. PULANDO NA CADEIRA COM CARA DE SUSTO E DESESPERO] MAS COMO É QUE NINGUÉM ME DIZ NADA!

*LEIA-SE ONDE VOU ACHAR OUTRA PROFESSORA ASSIM!*

[PACAMANCA] Porque ninguém sabia, só eu. Há meses.

[CHEFA ESCROTA NÃO DIZ NADA, FAZ CARA DE RAIVA MAS NÃO DE CHOQUE. MAIS UMA PROVA DE QUE ELA ANDAVA GRAVANDO NOSSAS CONVERSAS E JÁ SABIA DE TUDO].

[PACAMANCA] Acabamos? Posso voltar ao trabalho? Porque eu não sei vocês, mas eu tenho mais o que fazer.

***

INTERNO, SAUNA DOS TRADUTORES. CHEFA ESCROTA VEM TODA BOAZINHA OFERECER FÉRIAS À PAULA, EM VEZ DE CUMPRIR TODO O AVISO PRÉVIO. A PRÁTICA É DE PRAXE NA AGÊNCIA, PRA EVITAR CIZÂNIA.

[CHEFA ESCROTA] Você tá com tempo, Leticia? Quero falar com você.

[PACAMANCA] Não.

[CHEFA ESCROTA] Mas vez assim mesmo, a gente precisa conversar.

INTERNO, COZINHA, ONDE A MAIOR PARTE DAS REUNIÕES ACONTECE, IMPEDINDO ASSIM QUE OS TRADUTORES, QUE MORAM LONGE E NÃO VOLTAM PRA CASA PRA ALMOÇAR, POSSAM ESQUENTAR A COMIDA, E FORÇANDO-OS A COMER NA MESA DO TERRAÇO, SOB O SOL SENEGALÊS. CHEFA ESCROTA SENTA SUA BUNDA GORDA NA BANCADA DA PIA.

[CHEFA ESCROTA] Estou muito chateada.

SILÊNCIO.

[CHEFA ESCROTA] Estou realmente muito chateada, eu tava contando muito com você.

SILÊNCIO.

[CHEFA ESCROTA] Você não diz nada?

[PACAMANCA] O que raios você quer que eu diga?

[CHEFA ESCROTA] Você não tá chateada de ir embora?

[PACAMANCA, SURPRESA] Eu não!!!

[CHEFA ESCROTA] Então você tá feliz?

[PACAMANCA] CLARO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

[CHEFA ESCROTA] Me explica com detalhes do que é que você não gosta aqui.

[PACAMANCA] Odeio tudo. Não gosto de como vocês trabalham, não fui acostumada assim. Não gosto dessa bagunça, dessa fofocada, dessa fumação, dessa gritaria, da imbecilidade da secretária da contabilidade, da falsidade, do telefone tocando toda hora sem que ninguém responda, do fato que só tem um banheiro aqui em cima pra quinze pessoas, da cozinha sempre fechada enquanto você fofoca no telefone, da carga de trabalho excessiva, do salário. Não gosto de nada. Estou doente da cabeça aos pés, preciso sair daqui imediatamente.

[CHEFA ESCROTA E FALSA] Olha, se você quiser, eu tenho médicos ótimos.

[PACAMANCA, PEGANDO UM IOGURTE DE MORANGO DA GELADEIRA] Mas faça-me o favor, Chefa Escrota. Tenho certeza que no dia em que chegar em casa sabendo que não tenho mais que pisar aqui dentro vai passar tudo. Como passou a enxaqueca semanal no dia em que saí daquela escola maldita, onde aquele siciliano cretino não me pagava.

[CHEFA ESCROTA, INACREDITAVELMENTE IDIOTA] Então é definitiva?

[PACAMANCA, SEM ENTENDER A PERGUNTA CRETINA] O quê?

[CHEFA ESCROTA] A tua demissão.

PACAMANCA NÃO DIZ NADA, MAS SEU OLHAR É UM *LÓOOOOOOOOOOOOOOGICO* DESSE TAMANHO.

PACAMANCA SAI DA SALA, DEIXANDO A BUNDA DA CHEFA ESCROTA POUSADA SOBRE A BANCADA.

o pulso ainda pulsa

Segunda-feira cheguei em casa do trabalho como um zumbi. Eu sou hipotensa por natureza mas nunca tenho crises de pressão baixa que me derrubam; a última vez foi há muitos anos, depois de doar sangue em um dia particularmente quente na Tijuca. Então quando cheguei em casa meio morta daquele jeito achei que era queda de pressão. Só que depois comecei a sentir dores no corpo todo e uma fraqueza tremenda – logo eu, que trabalho tanto e faço tantas coisas (porque eu sou preguiçosa, mas depois do empurrão inicial ninguém me segura). Fui dormir cedíssimo e acordei na terça banhada de suor e com uma pontinha residual de febre. Fui trabalhar assim mesmo porque a J. estava de férias até quarta-feira e tinha muito trabalho a ser feito. Fiz tudo o que eu precisava entregar durante a semana, porque já previa que não conseguiria sair de casa no dia seguinte.

De fato, na quarta tive que sair pra resolver umas burocracias urgentes mas bastava dar dois passos pra eu me sentir cansada e com falta de ar (falta de ar!!! Nunca soube o que é isso!). Fui à minha médica vesguinha e ela diagnosticou uma virose, e deu o veredito final tipicamente europeu: deve ter sido uma “ariata”, um golpe de ar, porque eu devo ter dormido com a janela aberta. Tipo assim, eu entendo a Arianna, que mal sabe escrever, soltar uma coisa dessas, mas uma médica dizer que eu peguei vírus porque dormi com a janela aberta dá vontade de chorar. Mas ela me mandou ficar em casa até sexta, então aqui estou eu.

Ontem de manhã liguei pro escritório pra avisar que não volto antes da próxima segunda, e pedi às meninas do Planning pra me mandar a tradução que eu deveria entregar na segunda e que eu já tinha começado na terça. Avisei que iria tentar fazer em casa, devagarzinho, porque quando fico muito tempo na mesma posição os músculos doem muito, e ficar olhando pro computador por horas também não ajuda. O dia passou e nada do e-mail chegar. Às oito da noite me liga o D. dizendo que me botou a tal tradução e mais duas, num total de quase 50 laudas, pra segunda. Fiquei passada: se eu estivesse em condições de fazer as 30 laudas por dia que faço em média no escritório, eu não estava em casa, estaria no escritório, né, fofo! Eles acham que pra compensar os meus três dias de férias por doença, aos quais tenho direito por lei, eu tenho que trabalhar no fim de semana. Vai tomar no cu! Que gente, que nojo, que tudo! Não vejo a hora de mandar tudo à merda.

macarrônico esse inglês

Tava vendo LotR enquanto passava roupa e lembrei de como os italianos pronunciam Samwise: “Semvíse”. De chorar. Aí comecei a pensar nos outros erros clássicos que TODOS os meus alunos cometem, mesmo os mais avançados. A lista não está completa, lógico.

. hotel /ôtel-a/
. hall /óll-a/ (essa eu levei MESES pra descobrir o que era)
. Windows /uíndovs-a/ (o mesmo pra Glasgow e bungalow)
. because /bigós-a/
. management /manágement-a/
. performance /pérformans-a/
. Brazil /brézil-a/
. fascinating /fashinêiting-a/
. saw /sáv-a/
. expensive /expânsiv-a/
. his /is/
. is /his/
. exam /écsem-a/
. important /ímportant-a/
. newspaper /niuspáper/
. favourite /fávorit-a/
. happened /éppened-a/ (mesmo depois que aprendem a regra da pronúncia dos passados regulares, esse erro permanece)
. angry /ângri/
. hungry /êngri/
. chance /xônce/ (não existe em italiano e usa-se a pronúncia francesa, então eles acham que em inglês faz-se o mesmo)
. steak /stik/
. fifteen /fífti/
. fifty /same as above/
. bear /bi:r/
. beard /bérd-a/
. birthday /bírdei/
. die /díe/
. comfortable /confortêibou/

OK, muitos erros são compreensíveis, mas outros não têm sentido: por que diabos uma criatura lê beCause, Cause, com cê, e transforma em beGause? E estatisticamente está provado que italianos são fisiologicamente incapazes de diferenciar uma sílaba tônica das outras átonas. Impressionante.

a short story

Ontem foi dia de São Feliciano, padroeiro de Foligno. A cidade inteira pára, mas nós trabalhamos. Sempre. Pra mim tá ótimo, porque por lei dia de festa oficial é como Natal, paga mesmo se não se trabalha, então todas as 11 horas de trabalho de ontem serão pagas como extra. Mas o tempo estava horrível e era um daqueles dias em que não dá vontade de fazer nada que não seja mofar debaixo das cobertas. Todo mundo puto da vida com a chefa, logicamente.

Aí na terça, no final da tarde, muitas horas antes da tempestade, o server explodiu na agência, e acabou a luz. Na escola, que é eletricamente independente, tudo normal, mas o final do expediente na agência foi tumultuado: nada de computador, nada de telefone, nada de luz. Um chefe sensato faz o quê numa situação dessas? Bom, galera, já que nada funciona e não dá pra trabalhar e amanhã em teoria é dia de folga, vamos ficar em casa. Não, Gafanhoto, nada disso. Ontem todo mundo no escritório às oito e meia da manhã. Pra nada. Porque a luz só voltou às onze. Eu fiquei na escola inventando coisas pra fazer e fazendo-as mui-to-len-ta-men-te: fiz uma lista dos (poucos) livros disponíveis pros alunos lerem, atualizei meu horário e a lista das horas extras do mês, em arquivos que salvo sempre no meu desktop, fiz fotocópias, preparei aulas. Depois que a luz voltou fez-se uma reunião rapidinha onde foi dada a seguinte notícia: como o server teria que ficar fora do ar das duas às seis, horário em que vinha a empresa que dá suporte informático à agência, quem normalmente trabalha com o computador naquele horário (todos) foi instruído a voltar pra casa e retornar pra trabalhar das seis às dez da noite.

Tipo assim, nem no manicômio neguinho tem idéias tão mirabolantes. Até porque NINGUÉM mora lá perto e fazer 60 quilômetros a mais por causa de uma imbecil que não respeita os outros é de lascar. Pra mim não fez diferença porque eu tinha aulas marcadas direto, non-stop, das duas às oito e meia da noite, mas o resto do povo estava emitindo fumaça pelas orelhas. A Laura, a nova secretária que é super gente boa e já entendeu como funciona a coisa ali no nosso hospital psiquiátrico, deu seu veredito de quem deveria ter nascido na era de Aquarius:

– Energias negativas demais.

Eu, racional total, diagnostiquei:

– Foi o santo. Infiéis, fiquem em casa! Hoje não se trabalha!

(Passou um flash na minha cabeça nessa hora.
INTERNO – LOUNGE DO ALTO ESCALÃO – PEDRÃO E FELICIANO CONVERSAM

PEDRÃO, COPO DE COGNAC ESQUENTANDO NAS MÃOS: Ninguém tira da minha cabeça que Ele tinha mandado ver numa garrafa de Pitú quando inventou esses humanos. Ô raça! Como custam a entender! Você vê, aquele orelhudo da Casa Branca, comé que se chama. Kyoto não, Kyoto não quero, precisamos mandar não sei quantos furacões e tempestades de gelo pra ficha cair. Já tínhamos perdido as esperanças. Só nos restava o Kraken. Realmente, sutileza não é com eles.

FELICIANO, MASTIGANDO TRIDENT FRUTAS TROPICAIS: Nem me fala. Eu também estou com alguns problemas numa das cidades sob a minha proteção. Em particular uma no interior do Zaire… (PEGA UM PEDAÇO DE PAPEL AMARROTADO NO BOLSO) Não, Itália. O nome é… É pê ou efe? Putz, como a Atenas escreve mal… É efe. Foligno. Pois é. Segurei a onda de frio o máximo que eu pude pra mandar a primeira neve do ano bem no dia da minha festa. De repente assim neguinho entendia que era pra ficar em casa e tirar uma folguinha. Mas não é que teve gente que insistiu?

PEDRÃO: Aposto que foi aquela cretina de cabelo laranja. Aquela que soltou aquela mentirona e jurou no nome da filha, e você fez a garota cair na escola e quebrar o braço dez minutos depois [ESSA PARTE É VERÍDICA, CRIANÇAS].

FELICIANO: Ela mesma. Aquela que só usa Armani mas não tem dentes do pré-molar pra trás. Quando vi que ela ia insistir mesmo, fulminei o server, matei o telefone e deixei a agência dela sem luz.

PEDRÃO: Não me diga que mesmo assim ela fez o povo trabalhar no seu dia!

FELICIANO: Digo. Pena que só consegui segurar a falta de luz até as onze. Mas aí ela inventou de botar o pessoal pra trabalhar até as dez da noite!

PEDRÃO: Não é lá que trabalha aquela garota maluca? Aquela que trabalha tanto que tá com caspa, insônia e enxaqueca ao mesmo tempo?

FELICIANO: Isso. Outra mula. Tá esperando o quê pra sair daquele manicômio? Todo mundo que era normal abandonou o barco.

PEDRÃO: Você mesmo falou que ela tava economizando pra compras os móveis da casa nova…

FELICIANO: Eu sei, mas tudo tem limite nessa vida, né.

PEDRÃO: E você não mandou um raio no SUV da banguela por quê? É grande, não vem dizer que a mira é difícil.

FELICIANO: Ordens da chefia. Eu bem que queria, mas me disseram pra não exagerar.

PEDRÃO (LEVANTANDO E SE ESPREGUIÇANDO): Me avisa se rolar alguma novidade. Tás com fome?

FELICIANO (JOGANDO O CHICLETE NUMA LATA DE LIXO FEITA NA TAILÂNDIA COM FOLHAS DE BANANEIRA TRANÇADAS): Verde. Sabe o que me deu vontade? Um McMenu número 5, aquele com bacon.

PEDRÃO: Só se for com milkshake de ovomaltine do Bob’s.

FELICIANO: Beleza. Chama o Bussunda que essa história de Foligno me deixou meio irritado, tô precisando levantar o astral.

PEDRÃO: Ele não tava de dieta?

FELICIANO: Desistiu.

PEDRÃO: Você se incomoda se eu chamar o Ronald? Estou lendo o Silmarillion mas estou com umas dúvidas…

FELICIANO: Beleza.

(SAEM DO LOUNGE E FECHAM A PORTA ATRÁS DELES).

ego massage ‘cause it’s saturday and i’m having wine after lunch and i’m so, so, so damn tired but the new apartment is almost ready

Durante essas semanas dando aula pras turmas da Christine, além da satisfação nada insignificante de ouvir de TODOS os alunos que querem continuar tendo aulas comigo, também me diverti muito. Não me importo de dar aula pra um aluno só, mas é claro que os grupos são muito mais divertidos. Até porque em sala de aula viram todos crianças, não importa se são médicos, engenheiros, empresários, dondocas, pedreiros, casados e com filhos, e a sala de aula vira uma zona (pra não falar nos cadernos da Barbie e do Hulk do ano passado que os pais reciclam dos filhos). Com a turma maior, de 7 alunos de nível pre-intermediate, resolvi fazer um pacto: vamos resolver os problemas de pronúncia, infindáveis quando se trata de italianos, um de cada vez.

Durante essas semanas nos concentramos em eliminar o som /g/ do gerúndio. Pra eles entenderem o quanto é horrível ouvir “duin-ga” em vez de doing, eu começo a falar com eles em italiano com sotaque inglês, por exemplo dizendo “tchútchou” em vez de “tutto”. Eles ficam horrorizados e começam a se policiar: toda vez que um deles tem que ler uma frase ou fazer um exercício que tem um gerúndio, todo mundo fica olhando fixo pra vítima, aquela tensão no ar, e ai da criatura se ler “uótching-a TV”, porque os outros caem matando. E quando alguém erra eu finjo que fui atingida em um órgão interno qualquer, que escolho ao acaso, dependendo da inspiração do momento. E aí está acontecendo que quando o aluno erra e eu faço uma careta de dor e boto a mão no baço, ele se corrige sozinho e me pede mil desculpas como se realmente o erro tivesse causado uma ruptura esplênica. Ou então os outros perguntam: o que foi agora, o fígado? Não, anta, o fígado fica no outro lado. Eu passo a aula inteira rindo.

Tem outra coisa: vocês sabem que eu tenho olhos de lince, e não estou brincando. Vejo lá do outro lado da longa mesa o que o aluno está escrevendo, e se não consigo efetivamente ver porque tem alguma coisa na frente – uma borracha, uma caneta – pelo movimento da mão dá pra perceber se o fulano botou dois pês em stopping ou não, ou se escreveu aet em vez de eat. Corrijo logo, double p, fulano, e eles ficam me olhando como se eu tivesse uma réplica do Hubble escondida por baixo do quiasma óptico.

Eu GOSTO de escolas. Gosto de aprender e ensinar, quando vejo a cara de “entendi!” de um aluno é quase como se eu estivesse comendo um pedaço de Toblerone. Com alguns dos meus alunos adolescentes estudo literatura inglesa pra escola, e quando me ligam pra dizer que passaram na prova eu fico toda boba. Alguns deles mandam colegas ou parentes pra mim: foi você que estudou Hemingway com o Massimiliano pra prova final? Oui, chérie.

Se eu tivesse filhos seria difícil me controlar pra não ir pra escola junto com eles. Nada na vida me deixa mais feliz do que aprender (e ler, que é sempre aprender) ou ensinar. Nem Toblerone.

de novo

Quando as Irmãs Legais chegaram pra ter aula, a odiosa C. lhes disse sorridente que Christine havia ligado avisando que volta no final do mês. As duas responderam “mas nós estamos bem assim, obrigada”. Mais tarde uma velha aluna veio me procurar – não reconheceu a Laura, já que ela só conhecia a Simona, e de onde eu estava ouvi meu nome.

Por que é que eu não sou boa em algo que dê dinheiro, ó céus…

intrigas

Hoje foi a chefe quem me abriu a porta. Com o cigarro aceso, lógico, às oito e quinze da manhã. E me recebeu com o seguinte comentário: M. está no hospital.

M. é a Imbecil Contábil Sênior.

A chefa tem a mania de contar a mesma história, em várias versões diferentes, pra pessoas diferentes, de preferência em tom confidencial pra neguinho achar que é especial porque ouve as fofocas em primeira mão. Mas esse é irmão desse, né, então fiz cara de ooooh! jura?, por quê, coitada?, etc. Parece que a mulher, que desmaiou do nada alguns meses atrás, estava com problemas emocionais – aqui tudo é “esaurimento nervoso” – e acabou sucumbindo aos poderes da mente. A chefa disse, como que horrorizada, que ela chegou ao ponto de mentir deslavadamente! Mentir! Tive que morder os lábios quase até sangrar pra não rir (a chefa é mentirosa compulsiva clínica, daquelas que não sabem mais o que é real e o que não é).

Gente, é manicômio de verdade, juro.

hm

O que você diz quando no meio do nada uma aluna da professora que você está substituindo diz, enquanto você procura a faixa certa no CD:
– Nós gostamos muito da sua aula.

E, quando eu jogo um verdão dizendo que vou estar com essa turma até o final de janeiro, quando a professora deles volta, e eles respondem:
– Não, não, está muito bem assim, queríamos inclusive ter três aulas por semana em vez de duas.

O que você diz?

ugh

Já descobri dois errinhos de tradução que cometi naquele trabalho legal que fiz pra um museu. Um é relativamente grave e tenho quase certeza que corrigi em tempo, o outro é menos grave mas na hora não percebi. ODEIO trabalhar com pressa e tendo que fazer outras mil coisas ao mesmo tempo, odeiooooooooooo! Não tive tempo de revisar nada direito porque tudo tinha que sair correndo pra gráfica pra fazer os painéis, e fiz pelo menos outros 4 trabalhos junto com esse, além das aulas, claro. Não tem como sair legal, né. Então agora os painéis vão ficar errados mesmo e todos os turistas americanos vão reclamar e eu jamais vou poder ir à mostra com medo de descobrir outros erros. Se pelo menos alguém reclamasse seriamente o suficiente pra agência perder a certificação ISO de qualidade, eu ficaria contente.

pobre tem mais é que morrer

Aconteceu um lance muito chato e idiota e desnecessário no trabalho ontem. A Christine, professora americana, foi testada como tradutora com péssimos resultados. Então foi sumariamete mandada embora da agência e agora só dá aula. Está no mesmo esquema em que eu estava até junho, ou seja, ela aparece lá pra dar umas quatro ou cinco horas, normalmente espalhadas, de modo que fica muito tempo sem fazer nada. Faz a mesma coisa que eu fazia: abre um livro e lê.

Minha chefa maluca sabe que eu me dou bem com a Christine, e sabe que detesto tudo, TUDO o que acontece na agência e na escola, e sabe muito bem que eu a acho completamente maluca. Então eu fui colocada em isolamento. Até a secretária nova, a Laura, uma garota MUITO gente boa, fica o dia inteiro na agência e só desce pra escola no final da tarde, quando eu estou quase sempre dando aula. Isso tudo pra eu não ficar amiga de ninguém, veja bem. Como se isso mudasse alguma coisa. Pois então; ontem depois do almoço estou eu sentada traduzindo uma coisa muito maneira enquanto Christine estava quieta na outra escrivaninha lendo, quando passa a chefa maluca pelas escadas de trás. Pela porta de vidro vi que ela olhou pra nós, mas foda-se, estava trabalhando amarradona, fazendo o que eu tinha que fazer. Dez minutos depois aparece aquela mala sem alça da C. dizendo que a chefa estava se descabelando de raiva no andar de cima porque nos tinha visto conversando e que se eu atrasasse um trabalho por culpa da Christine seria uma coisa muito desagradável – a sua técnica anti-motim é colocar todos contra todos, vocês não têm idéia da trama complexa que ela cria na sua cabeça cada vez que alguém se demite. Então recebemos ordens expressas de jamais ficar na mesma sala enquanto eu estiver trabalhando e Christine não. Tipo assim, creche, sabe. Assim que a C. foi embora a Christine entrou no banheiro, se olhou no espelho, saiu do banheiro, me olhou e disse:

– Nasceu outra espinha na minha testa. É o nojo desse lugar se manifestando dermatologicamente.

Eu PRECISO escrever um best-seller e ficar milionária. Porque depender de maluco é um castigo infinito, cara.