novas aventuras burocráticas

Eu não queria muito contar essa história, mas não resisto: na terça-feira depois do meu aniversário, bati com o carro. Foi em Perugia; eu tava saindo do centro, depois de uma aula com o Aluno Endocrinologista, e pegando a superstrada pra voltar pra escola e dar aula pros Três Mosqueteiros. Alguma coisa entrou no meu olho, um bicho, sei lá, perdi o controle do carro, subi no canteiro central, bati nos pés da placa que mandava ficar na esquerda quem queria ir a Perugia, Assis, Foligno, e direita quem queria ir a Arezzo, dei um giro de 180 graus e parei. Como um pouco antes tem um sinal de trânsito, e ali tem muito movimento e o trânsito é sempre lento, não me machuquei, e o cara que vinha logo atrás de mim teve mais do que tempo pra perceber o que tava acontecendo e meter o pé no freio. Comigo não aconteceu bissolutamente nada, só bati com a mão esquerda na porta (muito menos grave do que as topadas que eu vivo dando por aí), mas o carro ficou completamente detonado. Não porque a batida tenha sido violenta, mas porque a Fiat é mal feita pra cacete e quando subi no canteiro a parte inferior direita foi pras cucuias. O carro já tava velho, valia pouco, e não vale a pena consertar. Então peguei a Uno da oficina.

Mas tudo isso, que no final das contas não interessa muito, pra explicar a maratona que veio depois. Porque quando o seu carro sobe no telhado você tem que se desfazer dele de alguma maneira. Ou então juntar toda uma papelada e comunicar às autoridades competentes que o carro não vai ser mandado pra um ferro-velho autorizado, mas também não vai ficar abandonado no seu quintal, pegando chuva e funcionando como ponto de encontro pra ratos, insetos e afins. Porque é proibido, entende. Então você tem que ir ao P.R.A. (Pubblico Registro di Automobili), que é maaaaais ou menos como o Detran, levar as placas e os documentos do carro e mais um monte de chatices, e declarar o que você vai fazer com ele.

O problema é que todo mundo anda muito ocupado ultimamente, e não tivemos tempo de investigar direito o que tínhamos que fazer. O IPVA vencia amanhã, e a mulherzinha do Automobile Club Italiano me disse que tínhamos que entregar as placas antes do dia 30 pra não ter que pagar o imposto. Mas não falou nada dessa coisa da rotamazione (a destruição do carro), de ser obrigatório mandar o bicho pra um ferro-velho, nem de coisa nenhuma. Quando liguei pra central do ACI me disseram que se eu declarar que o carro ficar na minha garagem, não posso nem vender as peças, porque se vier um fiscal checar eu levo uma multa. Ora, o carro está em perfeito estado fora a parte batida, e afinal de contas a oficina não é especializada em carros mas sempre rola algum amigo que deu uma batidinha, ou então quebraram um farol, ou arranharam a lateral, ou uma pedrinha que rachou o vidro, e ter peças de reposição do carro mais vendido na Itália não seria nada mau. Mas não, jacaré, não pode. Ligamos pra todos os donos de ferro-velho da zona, todos clientes da oficina, e todos disseram a mesma coisa: quero o carro inteiro, senão pra mim não vale a pena, porque eu vivo é de vender as peças. Cacetes tatuados! A manhã passando e eu ainda na oficina, ouvindo o Mirco e o Ettore se esgoelando no telefone tentando entender o que fazer. No fim das contas alguma alma caridosa explicou que se eu fosse ao ACI pagaria 60 euros, e se fosse diretamente ao P.R.A., só a metade, e eles ainda saberiam explicar melhor a coisa toda. Essa alma caridosa já foi dono de ferro-velho, mas agora tem uma outra atividade que não sei qual é, mas de qualquer maneira se prontificou a resolver a situação – normalmente o ferro-velho COBRA pra fazer a rotamazione, e ainda por cima revende as peças do seu carro batido; esse não cobrou nada mas ficou com o carro. Tudo resolvido, lá fui eu ao P.R.A., onde já estivera outras vezes, pra entregar as placas.

Chegando lá, com procuração do Mirco e quinhentos documentos xerocados, me dizem que não posso fazer nada porque não sou a proprietária. Eram dez e meia da manhã e um cartaz avisava que em vez de fechar ao meio-dia e meia, ontem fechavam uma hora antes, por motivo de assembléia do pessoal. Fiquei sem saber o que fazer, expliquei pra mulher, que por sorte é muito prestativa, que tinha que resolver a coisa ali na hora senão teria que pagar IPVA tudo de novo, que o proprietário do carro estava rodando ali em Perugia (mentira) e eu poderia encontrar com ele e dar os documentos pra ele assinar (leia-se eu iria ficar fazendo hora sentada no meu carro e fazer um rabisco qualquer imitando a assinatura do Mirco), que do escritório da oficina poderiam mandar por fax uma xerox da identidade do Mirco, mas nada feito. Só faltei chorar através do vidro, até que um outro funcionário resolveu chamar o chefe, explicou a situação, e ficou resolvido que eu poderia fazer a coisa toda sim, desde que assinasse um certificado de proprietaria non intestataria, ou seja, que eu uso (usava…) o carro direto mesmo ele não sendo oficialmente meu. Agora me diz: por que raios todos os funcionários de uma repartição pública não têm as mesmas informações? Por que essa mania de cada um dizer uma coisa diferente? Ô coisa chata!

Felizmente consegui entregar e preencher e assinar tudo antes das onze e meia, senti uma pontada de tristeza ao ver as plaquinhas da nossa Punto querida jogadas ali em meio a muitas outras, e depois pra compensar fui direto pra Libreria Grande gastar meu gift certificate. Comprei Middlesex (Jeffrey Eugenides, o autor de Virgin Suicides), The Kite Runner (Khaled Hosseini), e o primeiro livro da série The No. 1 Ladies’ Detective Agency, de Alexander McCall Smith. E pronto.

joão e o pé-de-feijão

E ainda no assunto plantas: há algo de muito estranho acontecendo no minúsculo círculo botânico que é a minha varanda da cozinha, que na primavera e no verão passa a ter algumas horas de sol de manhã cedo.

O lance é o seguinte: no meio do inverno plantei os bulbos de tulipa que a Stefania mandou da Holanda. Dois bulbos de tulipa negra (que todo mundo sabe que é roxa e não preta, mas é linda assim mesmo) eu plantei num vaso grande que está na varanda da cozinha. Na varanda do nosso quarto plantei dois bulbos de um outro tipo de tulipa que não me lembro qual é. As tulipas negras estão enormes e lindas, mas as outras levaram séculos pra dar as caras. De repente uma das plantas deu uma crescidona assim estilo adolescente que espicha, e virou uma coisa esquisita que não parece nada nada com tulipa. Mas tudo bem, eu gosto de plantas e não tive coragem nem de arrancar a coisinha estranha que nasceu no vaso onde ficava o defunto manjericão. A bichinha tá lá, amarradona, crescendo horrores, e com toda a cara de que vai dar florezinhas minúsculas. Mas então, essa pseudo-tulipa foi crescendo, e notei que na outra parte do vaso brotavam coisinhas verdes que não conseguiam crescer muito. Imaginei que fosse porque a outra plantona estivesse roubando espaço e nutrientes, e arrumei um outro vaso pra transplantar a plantona e deixar espaço pras coisinhas verdes. Semana passada comprei a terra, segunda-feira peguei uns cacos de cerâmica e um prato pro vaso na Arianna, e agora à tarde tomei vergonha na cara e sentei na varanda pra operação transplante.

Qual não foi minha surpresa quando, com terra até nas sobrancelhas e os dedos enfiados no vaso procurando a raiz da pseudo-tulipa pra tirá-la inteira, encontrei um caule imenso, larguíssimo e longuíssimo! Fui seguindo o tal caule e notei que ele dá voltas e mais voltas dentro do vaso. Fui tirando terra, curiosíssima, e achando mais centímetros de caule. Fui parar num murundu de raízes que ocupam praticamente TODO o vaso. Por isso que essa miserável levou tanto tempo pra aparecer do lado de fora! Eu achando que não tava rolando nada, que o bulbo tava hibernando, mas lá dentro da terra tava rolando a maior festa! Coitada da planta, imagina o tempo que ela perdeu dando voltas e voltas na terra, crescendo aquela infinidade de raízes malucas e sem sentido! Agora vou ter que comprar um vaso grande como uma banheira pra botar essa planta. Mirco vai adorar. Daqui a pouco não tem mais espaço pra gente na varanda, de tanto vaso…

O mais ridículo é que eu só acho o panfletinho da tulipa negra, que veio junto com os bulbos, explicando que espécie é, quando plantar, quanta água dar, essas coisas. Nada de panfletinho da outra planta. Então agora já não tenho mais certeza de que a plantona esquisita seja uma tulipa. Se for, não sei de que tipo é. E se não for, não tenho a menor idéia do que é. Mas se continuar crescendo nesse ritmo, daqui a pouco expulsa a gente de casa.

prantas

Não consigo me acostumar com a idéia de ter que podar plantas. Entendo o mecanismo e concordo que faz sentido, mas não acho legal, sei lá. Tenho pena das plantinhas. Pra arrancar um raminho de alecrim só falta eu pedir desculpas à planta, imagina a preparação psicológica que não teria que rolar se eu tivesse que podar uma árvore.

No final do inverno começa o frenesi da poda. Por todo o lado vêem-se pobres árvores nuas, os galhos cortados até o talo; cercas-vivas que não parecem tão vivas assim, meio carecas que ficam depois da poda; arbustos que passaram o inverno secos e pelados e agora estão secos, pelados e cotós.

Mas começa a primavera e os primeiros brotinhos verdes começam a surgir, saindo muitas vezes diretamente desses cotos de tronco que ficaram. É engraçado, porque há um tipo de árvore muito comum por aqui, cujo nome desconheço, que tem um tronco estranho: chegando a uma certa altura, vira uma espécie de nó gigante, e dali partem os galhos, curvando-se pra cima. Quando podadas, essas árvores ficam reduzidas a um tronco seco com essa bolota em cima, com todos os cotoquinhos em volta, onde antes ficavam os galhos. Na primavera os brotinhos saem diretamente desses cotoquinhos, e o resultado é uma bola verde estranhíssima, até que os ramos cresçam e dêem uma aparência mais digna à árvore.

Eu não consigo podar nada. No máximo dou uma aparada no tomilho da varanda, quando vejo que tá ficando descabelado demais. Em uma semana ele dobra de volume. Mas mesmo assim fico com pena.

uia

Feriados são realmente uma invenção maravilhosa. Só é chato quando o tempo não ajuda.

Além de ser feriado, hoje é o aniversário da minha prima dentista, a Erica. E ontem foi o aniversário de uma amiga querida, a Bebel, com quem estudei a vida toda no Andrews. Ontem me peguei pensando nelas enquanto dirigia, e do nada me veio à cabeça uma das muitas musiquinhas que nós, meninas criativas, escrevíamos no colégio. Essa de ontem, a única da qual me lembro do começo ao fim, escrevi com a Bebel e com a maluca da Patricia. A melodia não preciso nem dizer qual é. Vejam que primor.

Penso numa
paisagem muito bela
Abro a janela e dou de cara
com uma favela

Vejo os molequinhos se matando
E vem um logo me assaltando

Meu relógio não estava no seguro
Não recebi outro relógio
no lugar do meeeeeu

Cocaína, traficante, maconheiro
Que interessante

Vejo um assalto a banco,
é tão engraçado
que me faz chorar
de emoção

E todos vão roubar…

Cada moleque
vai se tornar um marginal
E isso aqui já é normal
Você sabe bem

E todos vão roubar…

asparagi di bosco

Hoje é dia de praticar um dos mais populares esportes primaveris, colher aspargos selvagens. O tempo tá uma droga, mas não tá com cara de que vá chover. Ontem tava pior, e mesmo assim encaramos o Monte Subasio com os cachorros, a FeRnanda e a cachorrinha dela, a Dadá. Um vento que te levava embora, só nós, três retardados cachorrentos, no alto do monte, uma dor de ouvido do cacete, jogando garrafas de plástico pro Legolas pegar.

Hoje o plano inicial era ir a Florença dar umas voltas com Gianni e Chiara, mas eles desanimaram e resolvemos então ir catar asparagi di bosco lá em Bastardo, onde um colega de trabalho do Gianni mora. Como o tempo tá feio e o frio é quase de outono, não é perigoso. No calor, serpentes venenosas abundam entre os arbustos e caem das árvores dentro da sua camisa, então precisa enfiar as calças por dentro das botas e usar camisa de gola alta e chapéu, e afastar arbustos com um bastão, jamais com as mãos.

Eu juro que queria ir, mas, fêmea que sou, fui jogada pra escanteio. Mirco saiu às nove da manhã, e eu só vou ao meio-dia, com Chiara e Roberta, praticamente só pra almoçar. Melhor. Estou cansada e acho que tem uma gripe se esforçando muito pra me pegar. Ontem tava tão sem saco que nem fiz faxina, só passei o aspirador de pó igual à minha cara e mais nada. Agora são dez e vinte e ainda tenho que limpar o banheiro e transplantar uma tulipa estranha que está apertadíssima no vaso em que a coloquei, achando que cresceria para o alto e avante, esbelta como todas as tulipas. Mas essa é estranha e é toda repolhuda, ocupa tanto espaço que o outro bulbo, no mesmo vaso, ainda não conseguiu dar as caras. O detalhe é que o saco de terra ficou no carro, e cadê a vontade de descer pra pegar?

Caraca, deve ser a primavera que me pegou de jeito esse ano, como faz com tudo mundo aqui. Ou então são os cromossomos baianos herdados de vovô que estão se ativando pra me deixar leeeeeeenta.

lula-lá

Não, não vou nem tocar no assunto do asilo político ao ex-presidente do Equador. Tenho vergonha. Falo de lula mesmo, o animal (pun intended).

Por algum motivo misterioso que desconheço, mas que muito provavelmente tem a ver com a igreja católica, aqui as peixarias só abrem às quintas e sextas. Pra felicidade do bolso da minha mãe e pra grande prejuízo da minha vida social, só fui aprender a gostar de frutos do mar aqui na Itália. Como consequüência, não sei cozinhar frutos do mar – praticamente só sei fazer peixe frito, que aqui é coisa quase desconhecida. Por sorte, todas as peixarias oferecem coisinhas já semi-prontas, ridiculamente fáceis de preparar, como espetinhos de lula e camarão, filé de peixe já empanado em uma mistura de farinha de rosca e salsinha (pra fazer na brasa ou então na panela forrada de papel-manteiga e com pouco óleo), peixes inteiros também já marinados, prontos pra ir ao forno. Os meus preferidos são o condimento per la pasta e l’insalata di mare. O segundo é, literalmente, salada de mar, e nada mais é do que pedacinhos de frutos do mar das mais variadas espécies, cozidos, temperados com azeite, alho e salsinha, com uns pedaços de azeitona pra dar um tchan e pra aumentar o volume (eu dou todos pro Mirco porque tenho pavor de azeitona). Come-se fria, como antepasto. No supermercado há várias versões em embalagens de plástico, mas normalmente envolvem vinagre na preparação, o que, pra mim, é praticamente sinônimo de incomível. O condimento per la pasta (literalmente, tempero ou molho pra macarrão) é uma mistura de salmão, camarão, mariscos vários, pedacinhos de lula e de polipetti (polvinhos pequenininhos muito comuns aqui), mini-lagostins, enfim, um pouco de tudo. É tudo cru, então é só botar numa frigideira com um pouco de vinho branco, dar uma cozinhada rápida e misturar ao macarrão. Ao contrário do meu pai, que acha que peixe só combina com batata, eu adoro massa com frutos do mar. Linguini allo scoglio, spaghetti con le vongole, pasta con le cozze, eu topo tudo. E essa misturinha deles é realmente una diliça. Compro quase toda sexta, quando tenho que ir a S. Maria resolver outras coisas.

Eu tenho aquele vício de pobre que é aceitar tudo o que seja oferecido de graça. E nessa já recolhi uma interessante coleção de mini-livros de receitas, que dão nos supermercados, na peixaria, às vezes em lugares insólitos, como na farmácia. Pois então, ontem estava inspirada e, imaginando que encontraria alguma receita interessante nesses livrinhos, resolvi fazer lula. Uma clássica receita de lula aqui é seppie e piselli, lula com ervilhas. Nada mais é do que o bicho feito como carne de panela, com molho de tomate e ervilhas. Nunca tinha feito em casa, mas resolvi arriscar. Primeiro foi um parto comprar o bicho, porque eu não sabia se comprava seppie ou calamari. Pra mim são iguais, a seppia é maior e os calamari são pequenos, mas a cara é praticamente a mesma. Claro que nada que tenha a ver com comida aqui na Bota é tão simples quanto parece, e o velhinho safado da peixaria foi logo perguntando o que eu queria fazer com a lula. Respondi que queria fazer com ervilhas, e ele indicou as seppie, que têm mais carninha. Perguntei qual a diferença entre um bicho e outro, e ele respondeu que os calamari são mais magricelinhos e portanto ficam melhores fritos ou grelhados (de fato, anelli di calamari fritti, anéis de lula fritos à milanesa, são um antepasto clássico). Ah, tá, então tá bom. Ele separou quatro belas seppie pra mim e paguei a conta: 21 euros por quatro lulas médias, insalata di mare pra duas pessoas e condimento per la pasta pra duas pessoas.

Ontem comemos o antepasto e a massa, e deixei as lulas pra hoje. Só que eu não achava o diabo da receita em lugar nenhum. Tudo bem que não deve ser tão difícil, mas com o preço das coisas é melhor não desperdiçar fazendo cagada, e também não queria detonar logo de cara minha primeira experiência no campo dos frutos do mar. Mandei um SMS pro Mirco perguntando se ele queria lula com ervilhas ou lula no macarrão, ele responde: sim. Eu sabia que ele tava numa conversa importante com o contador e por isso não tava prestando atenção em nada do que eu escrevia, mas mesmo assim insisti e mandei outra mensagem me explicando melhor. Ele responde: lula. Ora bolas, então vou fazer macarrão e dane-se.

Aí o outro parto: limpar os bichos. Um dos meus livrinhos grátis explicava como comprar, limpar e conservar os diversos produtos do mar. Dizia pra arrancar a cabeça da seppia que ela saía inteira, com os órgãos internos. Ou então pra cortar com uma tesoura os olhos e o bico, se os órgãos internos e o “osso” já tivessem sido retirados – era o meu caso. Cortar com uma tesoura os olhos de um bicho morto? Hipótese imediatamente descartada. Então, pedindo mil desculpas às pobres lulas, optei por arrancar a cabeça inteira mesmo. Não tive coragem nem de cortar os tentaculozinhos. Desperdício, mas sei que se tivesse insistido teria vomitado ali mesmo na pia da cozinha. Não bom. Lavei bem os corpinhos que parecem feitos de plástico branco, cortei em tirinhas de aspecto borrachudo, e refoguei com alho e azeite. Normalmente na peixaria eles dão salsinha de brinde, mas dessa vez esqueceram, e eu esqueci de pedir, e não tinha em casa, então foi sem salsinha mesmo. Dei uma molhadinha com vinho branco e deixei cozinhar bem. Juntei uns tomates-cereja pra dar uma cor e no final ainda joguei umas ervilhinhas básicas. Escorri a massa pouco antes de ficar al dente, joguei na frigideirona T-fal onde estavam as lulas, e deixei terminar de cozinhar ali, no molhinho. Um toque de gengibre, um peperoncino esmigalhado pra ficar levemente picante, e voilà! Ficou ó-te-mo.

Semana que vem provavelmente vou pegar uns filés de merluzzo (que descobri, não sem uma pontinha de horror, que nada mais é do que o bacalhau fresco), pra fazer enroladinhos com talvez uma cenourinha dentro. Ou então cozze (mexilhões), pra fazer com macarrão ou como antepasto quente, com molho de tomate e pimenta-do-reino. Ou então salmão, que faço no forno como minha avó ensinou, numa caminha de batatas e cebolas em rodelas e um tiquinho de manteiga. Ou então vou de lula de novo, pra fazer com arroz, como se come no Brasil e aqui nunca se ouviu falar.

Gostei do negócio. Limpar o peixe ainda é um problema grande, mas me empolguei com a parte da cozinha. Vamos ver se as futuras experiências vão funcionar.

ainda os barnabés

Já agora, deixem-me assinalar aqui uma coisa que pode ter escapado ao pessoal no meio deste entusiasmo todo. Para a esquerda ateia e libertária Ratzinger não faz mossa absolutamente nenhuma. Bem pelo contrário, é uma escolha divertidíssima. Até já voltaram as missas em latim que George Brassens reclamava (“sans le latin, sans le latin / la messe nous emmerde”)! Para quem Ratzinger é a pior de todas as escolhas é para os católicos moderados e reformistas. E não estou só a falar dos católicos de esquerda, mas dos próprios católicos liberais de direita: Pedro Mexia ou Andrew Sullivan compreenderam-no bem. E não é por serem menos liberais nem menos católicos. Mas claro que não é Mexia nem Sullivan quem quer: é preciso prezar mais o raciocínio do que o desdém pela esquerda, tarefa manifestamente esgotante.

Rui Tavares, aqui.

Tem mais. Leiam, por favor; eles são ó-te-mos.

sem medo

Em duas manhãs de fila no banco, fila nos correios, fila no supermercado, sala de espera do contador, sala de aula esperando aluno, comecei e terminei Io Non Ho Paura (Não Tenho Medo), de Niccolò Ammaniti. Virou filme, que eu não vi, mas quero ver. Amei o livro, mas não sei explicar por quê. O estilo é firme, seco e direto, sem nove-horas nem metáforas malucas nem verbos fora de moda (minha irritação com essas coisas deve ser por causa de uma coisa estranha que andei traduzindo ultimamente e me deu um trabalho danado). O cenário é envolvente, embora geograficamente indefinido. A descrição não é excessivamente descritiva, mas eu vi os campos de trigo, senti o cheiro dos porcos malvados, sei como é a panela com maçãs pintadas em vermelho, sei que gosto tinha o macarrão com molho de tomate que o Michele jantou. Os personagens são fortes, os temores são reais, as dúvidas são coerentes, a solução é a única possível.

Pra quem não viu o filme, que se não me engano saiu no Brasil, é a história de Michele, um menino do paupérrimo sul da Itália nos anos 80, que acidentalmente descobre, lá na casa do chapéu, um buraco na terra, com um menino dentro. Mais não digo. Hoje não vamos pegar o DVD do filme porque tem Grissom no canal 6, e amanhã provavelmente rola cinema, mas espero vê-lo em breve, e digo se vale a pena.

papamania

A Cora falou mais ou menos o que eu tava pensando. Ontem, voltando da última aula pouco antes das sete da noite, ouvi no rádio toda a expectativa dos ouvintes e do apresentador do programa daquele horário quanto à fumaça das sete. Assim que cheguei em casa liguei a TV e, batata, às sete e cinco a primeira fumata, preta. A primeira coisa que imaginei foi a seguinte cena: os cardeais todos reunidos, tomando taças de um bom Barolo e beliscando grissini de alecrim, tricotando e dando risada.

– Ih, já são quase sete da noite. Como o tempo voa quando a gente tá se divertindo, né não?

– É mermo… Mas não seria melhor soltar logo uma fumacinha? Coitado daquele povo lá fora, tá frio, vamo mandar neguinho pra casa, pra jantar… Olha que daqui a pouco tem mais gente lá fora do que no show do Vasco Rossi em Catanzaro, grátis, ano passado.

– Melhor esperar até o último minuto, caro cardeal Fulano. Timing is everything. Quando o pessoal já estiver reabsorvendo a adrenalina das sete da noite, no pós-clímax total, a gente solta a fumaça.

– Uns dois ou três minutos depois das sete, você quer dizer?

– Isso. E que não seja muito claro, de imediato, se é branca ou preta. Só pra dar uma confundida. Aí todo mundo vai pra casa jantar e assistir à microssérie Karol, Un Uomo Diventato Papa, que vai ao ar no canal 5 hoje às nove.

– Mas quando é que vamos finalmente revelar a existência do novo papa? Tem que ter cuidado pra não cansar a galera, cardeal Beltrano; não podemos abusar da boa vontade do povo… As novas gerações têm pouca capacidade de concentração, se a gente ficar adiando, adiando, adiando, só pra deixar o pessoal excitado, eles vão acabar cansando.

– Então amanhã às sete da noite. Não, às seis, quando ninguém estiver esperando. Você vai ver que ibope que vai dar. Nem o U2, que esgotou os ingressos pro show em Milão 25 minutos depois do início das vendas online, vai poder competir com a gente.

– Mas não é sacanagem com quem ainda tá trabalhando naquele horário? Talvez seja melhor na hora do jantar…

– Não, não. Pode interromper a digestão. Vocês sabem, carne grelhada, aspargos, pimentão… Melhor fazer antes, assim o pessoal vai parar de trabalhar quando os filhos ligarem pro celular avisando. Toda aquela agitação vai dar até mais fome na galera.

– É verdade. E assim pelo menos os telejornais vão ter tempo de se preparar. Às oito da noite todo mundo vai estar psicologicamente preparado, e vai jantar com os olhos colados na TV. Cês acham que pega mal eu botar meu boné da Nike?

– Não exagera, cardeal Tizio (fulano, em italiano). Bom, então tá combinado. Uma fumata ambígua agora, outras amanhã, e às seis da tarde a fumata branca.

– Beleza. E depois, habemus chester!

– Isso aí.

– Cool.

(uma rodada de high-fives)

– Vambora que eu tô com fome. Esses grissini são ótimos, mas engordam que é uma beleza. E esse azul brilhante do teto do Michelangelo tá me dando dor de cabeça.

la fruttivendola

Morar em cidade pequena tem suas vantagens, com certeza.

Eu compro verdura e fruta na Rita, quando posso. Arianna compra nela há anos, e sempre que tenho que fazer alguma coisa em S. Maria, dou um pulo lá pra me reabastecer. Como eu consumo fruta e verdura só por obrigação moral, não vejo a diferença entre uma alface de supermercado e uma alface da horta, mas o Mirco é daqueles que em duas dentadas extermina, feliz da vida, um pepino, uma cenoura, um pedaço de aipo e um funcho inteiro, então evito comprar essas coisas no supermercado.

A barraca da Rita sempre ficou na praça da Banca dell’Umbria, ao lado do jornaleiro e de frente praquele monstro que é a Basílica. Com as obras na praça, que alteraram todo o trânsito e embolaram o meio de campo de um modo assustador, ela foi transferida pra pracinha dos correios, a duzentos metros. Mais cômodo pra quem compra, porque tem mais lugar pra parar. Outra vantagem é que ela agora está num quiosque moderno, com portas que podem ser fechadas, facilitando a vida dos pobres clientes que antes esperavam ao aberto, chovesse ou fizesse sol (ou pior, vento gelado). Ela mora aqui perto de casa mas nossos horários não batem e nunca nos encontramos.

A coisa legal da Rita é que ela não vende coisas que não estejam na estação justa ou que não estejam boas. A não ser os tomates, que hoje crescem praticamente em qualquer condição meteorológica. As coisas são todas fresquíssimas e ela dá várias dicas de culinária. Sempre pergunta o quê que a gente vai fazer com o que está comprando, porque, por exemplo, há berinjelas e berinjelas. Se eu peço uma berinjela, ela pergunta se é pra grelhar, pra fazer conserva ou pra fazer molho pro macarrão. Porque há berinjelas redondas, pretas, grandes, cor de berinjela, macias, duras, com semente, sem semente. O tomate é pra fazer molho, pizza ou salada? O cogumelo é pro macarrão ou pra grelhar? A cenoura é pra comer crua ou cozida? A maçã é pra morder ou pra fazer torta? A batata é pra fazer pirê ou pra fritar? A abobrinha é pra macarrão ou pra rechear? Hoje ela se recusou a me dar cebolas douradas, porque eram mais velhas. Acabei trazendo três das brancas e achatadas, mais incômodas pra segurar e cortar, mas mais frescas. Outro dia ela também se recusou a me vender mais de duas cabeças de alho (pra bruschetta ou pra refogado?), porque senão estraga, vai por mim. Alho, aliás, delicioso, nada indigesto, sem aquela coisinha amarga no meio, sem cheiro fortíssimo nas mãos.

Ela também dá sempre de brinde, pra quem faz compras razoáveis, os odori – literalmente, os odores. Por odori se entende salsinha (prezzemolo), obrigatória pra quem compra cogumelo; hortelã (menta), pra quem leva alcachofras; cenoura e aipo (carota e sedano) pra todo mundo, pra fazer refogado. Excepcionalmente, quando há limão verde, ela guarda pra mim, ou então vende uma caixa inteira pra Arianna, porque sabe que uma parte vem aqui pra casa. Quando tem novidade, ela fica toda assanhada: semana passada tinha uns tomatinhos pequenos como os cereja, mas alongados, chamados datterini (ou tamarazinhas, porque realmente parecem tâmaras vermelhas), que ela torrou minha paciência pra eu comprar, no lugar dos tomates-cereja que compro levo. Mirco adorou, comeu quase chorando de emoção. Há alguns dias comprei também uns aspargos selvagens, que fiz com macarrão, mas estávamos cefaléicos ambos e mal curtimos o sabor. Tenho certeza de que em condições normais de temperatura e pressão teríamos adorado.

Agora é época de fava. Ainda não estão no ponto, e as da Rita são poucas e ainda pequenas. Em maio começa a colheita – metade da horta da Arianna é fava nesse período, junto com as alcachofras; abobrinhas, tomates, berinjelas, vagem e ervilha, só mais perto do verão. O grande lance da fava, que é consumida em quantidades industriais (e crua, por favor; eu prefiro como forma de molho pro macarrão, ou cozida com um pouco de tomate e pimenta, como antipasto) só na Itália central, é o queijo pecorino. È la morte sua, como se diz aqui – adoro essa expressão, que se usa pra dizer o que combina melhor com uma determinada coisa. Hoje a Rita me deu de presente uma cebolinha fresca, porque comprei um tipo de salada, plantado só e exclusivamente aqui na Umbria, e segundo ela essa tal cebolinha, la cipollina quella piccoletta, è la morte sua. Também ganhei um pouco de rúcola esquisita de folhas largas, que só o Mirco come.

Então tá, hoje o jantar vai ser salada. Foi a Rita que decidiu por mim.