e não é só isso!

Não contente em escrever aquele trambolhão de post xicante sobre a Davis, cá estou novamente falando sobre o segundo livro do ano, que eu achei que não cabia no desafio, mas ORA, ORA, ORA, eu estava enganada, cabe sim! Cabe na categoria 12, livro vencedor de algum prêmio, pois ganhou o British Book Awards! Rá! Dois já foram, faltam 22, dois patinhos na lagoa, hohoho.

Eu tava de olho nele há um tempo, porque a safada da Amazon tava jogando essa sugestão na minha cara há meses. Resisti bravamente por motivo de: TENHO LIVROS DEMAIS ÇOCORR. Até que a belíssima lindíssima maravilhosíssima Vevila veio ao meu resgate e largou esse livro na minha mão quando nos encontramos em Londres dizendo simplesmente “leia porque você vai gostar”. Eu atualmente tô fazendo com hype de livros a mesma coisa que faço com hype de filmes: fujo de sinopses assim como fujo de trailers, então não tinha a menor ideia do que esperar.

Senhores… Tinha MUITO tempo que um livro não me pegava desse jeito. Devorei em três dias, perdi horas de sono, deixei de fazer faxina, atrasei o almoço, atrasei um artigo pra pós, sonhei com ele. Porque assim, a tetralogia napolitana da Ferrante me pegou demais pela história e pelo desenvolvimento das personagens no ano passado, mas como eu comentei (estou com preguiça de ir buscar os links, vão lá ver nos posts de dezembro), ela não é, pra mim, uma maga das palavras. Mas a Gail Honeyman é uma maga das palavras. Há anos – não lembro quantos, na real – um livro não me pegava pela forma tanto quanto pelo conteúdo tanto quanto esse me pegou. Leitura absolutamente deliciosa, e recomendo muitíssimo a leitura em inglês, se possível.

Trata-se de Eleanor Oliphant is Completely Fine (Eleanor Oliphant Está Muito Bem), de Gail Honeyman.

O lance é o seguinte, e PODE CONTER SPOILERS: a personagem principal é muito interessante, de uma maneira muito estranha e paradoxal. Porque ela tem um monte de conhecimentos aparentemente inúteis e prioridades muito ridículas (muitas das quais são minhas também hahahahahah) e ao mesmo tempo ZERO conhecimento de como o mundo funciona, e o motivo pra isso a gente vai desvendando aos poucos. A meu ver ela só é interessante porque existe um motivo pra isso, do contrário seria somente uma pessoa incrivelmente, irremediavelmente chata.

O vocabulário e o senso de observação que a autora bota, respectivamente, na boca e no cérebro da Eleanor são absolutamente deliciosos. Deleitem-se:

A young man with a grey shirt and a shiny tie was staring at the banks of giant TV screens. I approached, and informed him that I wished to purchase a computer. He looked scared.

‘Desktop laptop tablet,’ he intoned. I had no idea what he was talking about.

‘I haven’t bought a computer before, Liam,’ I explained, reading his name badge. ‘I’m a very inexperienced technology consumer.’

He pulled at the collar of his shirt, as though trying to free his enormous Adam’s apple from its constraints. He had the look of a gazelle or an impala, one of those boring beige animals with large, round eyes on the sides of its face. The kind of animal that always gets eaten by a leopard in the end.

This was a rocky start.

Mais não posto, senão é spoiler. A história é uma delícia, o desenvolvimento das personagens é ótimo, a linguagem é maravilhosa, os diálogos são fantásticos, é um primor de livro. Recomendo DEMAIS da conta.

livritos de 2019

Detesto resoluções de ano novo. Nunca cumpro nada; não funciono bem com planos, não tenho objetivos, não sou ambiciosa (mas sou repetitiva, como vocês já notaram). De modo que minhas únicas decisões pra esse ano foram ler mais que o ano passado e ir dormir mais cedo, por uma questão de saúde mesmo: dormir pouco e mal acaba comigo e quando vou dormir mais cedo eu durmo infinitamente melhor. Por enquanto, estou conseguindo manter a parte do sono. A parte dos livros está sendo facilitada pelo desafio das Desqualificadas.

Se por algum motivo incompreensível e imperdoável você não sabe o que é o desafio das Desqualificadas, vai dar uma olhadinha no Insta delas e estudar a lista das leituaras, vai. (E APROVEITA E OUVE O PODCAST, NÉ)

O negócio é o seguinte: você pode nunca ter reparado, mas tenho certeza que a vida toda cê leu muito mais autores homens que mulheres. Mas assim, MUITO MUITO MUITO mais. Porque mulheres escrevem menos? Talvez sim. Mas por que mulheres escrevem menos? (Note que a diferença entre porque e por que é proposital, tá, leia em voz alta que faz sentido.) Porque são menos incentivadas a escrever. Porque acham que têm pouco a dizer. Porque a síndrome do impostor bate forte. Porque falta tempo mesmo, já que trabalhamos muito mais do que os homems, como todo mundo que raciocina tá careca que saber. E certamente há preconceito com autoras mulheres também, há preconceito contra a chamada chick lit (CHER, COMO ODEIO ESSE TERMO), homens normalmente não têm saco sequer pra OUVIR mulheres, que dirá pra LER mulheres.

Faz parte da nossa política no Pistolando trazer convidadas mulheres sempre que dá (e quase sempre dá) pra falar de todos os assuntos, tanto que só temos um episódio especificamente com temática feminina. Faz parte desse desafio de leitura ler livros de autoras mulheres, não necessariamente falando de temas femininos, e facilita bastante ter essa listinha pra dar ideias do que ler. No insta elas dão várias dicas pro caso de você empacar e não ter ideias de autoras nesses temas. Se você achar que não vai gostar do que elas indicaram, pede outra sugestão. Elas são umas fofas e vão dar outras ideias e no final das contas você vai acabar descobrindo um monte de autoras mulheres sensacionais que nem sabia que existiam.

Por acaso o primeiro livro que eu li esse ano correspondeu ao número 1 do desafio, um livro escrito por uma mulher negra, e além disso também fala de feminismo. Interseccional, que era exatamente o que eu precisava ler agora. Infelizmente eu sou uma anta e só fui lê-lo agora, sendo que o livro é de 1981 e estava lá em casa na Itália há um bom tempo. O resultado é que o livro está TODO sublinhado – e eu normalmente não escrevo em livro de maneira alguma – e entupido de post-its. Foi bem difícil escolher trechos pra botar aqui, porque, meus amores, esse livro é um canavial de insights e uma chuva de socos na sua cara, o tempo todo. Se não leu ainda, leia, leia, leia, leia. Leia. Agora. Ontem. Aproveita e (ou ouve na íntegra, se preferir) a participação do Dann, da Aline e da Luiza na CCXP aqui e presta bem atenção na fala do Dann: ou vai todo mundo, ou não vai ninguém.

O livro, claro, é o Women, Race and Class (Mulheres, Raça e Classe), da Angela Davis.

Ela dá uma perspectiva histórica incrivelmente bem fundamentada e documentada do entrelaçamento dos movimentos antiescravagista, antirracista e sufragista nos EUA, mostrando como todas as vezes em que eles soltaram as mãos uns dos outros, deu ruim. Não tem outro jeito: todo mundo tem que caminhar junto. E ainda por cima fala mal do capitalismo também. Como não amar?

Na resenha da Boitempo (cliquem ali em cima e vão ver no site e COMPREM O LIVRO porque ô edição linda, puta merda):

Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, é uma obra fundamental para se entender as nuances das opressões. Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, da forma pela qual a mulher negra foi desumanizada, nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo. Além disso, a autora mostra a necessidade da não hierarquização das opressões, ou seja, o quanto é preciso considerar a intersecção de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo de sociedade.

Alguns trechos, começando com um pedaço sobre Sojourner Truth, que seria o nome do meu animal de estimação, se eu tivesse um, porque essa mulher foi absolutamente sensacional, uma força da natureza:

The leader of the provocateurs had argued that it was ridiculous for women to desire the vote, since they could not even walk over a puddle or get into a carriage without the help of a man. Sojourner Turth pointed out with compelling simplicity that she herself had never been helped over mud puddles or into carriages. “And ain’t I a woman?” With a voice like “rolling thunder,” she said, “Look at me! Look at my arm,” and rolled up her sleeve to reveal the “tremendous muscular power” of her arm.

I have ploughed, and planted, and gathered into barns and no man could head me! And ain’t I a woman? I could work as much and eat as much as a man – when I could get it – and bear the lash as well! And ain’t I a woman? I have borne thirteen children and seen them most all sold off to slavery, and when I cried out with my mother’s grief, none but Jesus heard me! And ain’t I a woman?

Mais um:

Even the most radical white abolitionists, basing their opposition to slavery on moral and humanitarian grounds, failed to understand that the rapidly developing capitalism of the North was also an oppressive system. They viewed slavery as a detestable and inhuman institution, an archaic transgression of justice. But they did not recognize that the white worker in the North, his or her status as “free” laborer notwithstanding, was not different from the enslaved “worker” in the South: both were victims of economic exploitation.

Pensem no que o Frederick Douglass tem a dizer, amores:

When women, because they are women, are dragged from their homes and hung upon lamp-posts; when their children are torn from their arms and their brains dashed upon the pavement; when they are objects of insult and outrage at every turn; when they are in danger of having their homes burtn down over their heads; when their children are not allowed to enter schoolds; then they will have [the same] urgency to obtain the ballot.

E ouçam com atenção suas próprias cabeças explodindo ao ver como tudo está interligado:

Bourgeois ideology – and particularly its racist ingredients – must really possess the power of dissolving real images of terror into obscurity and insignificance, and of fading horrible cries of suffering human beings into barely audible murmurings and then silence.

When the new century rolled around, a serious ideological marriage had linked racism and sexism in a new way. White supremacy and male supremacy, which had always had an easy courtship, openly embraced and consolidated the affair. During the first years of the twentieth century the influence of racist ideas was stronger than ever. The intellectual climate – even in progressive circles – seemed to be fatally infected with irrational notions about the superiority of the Anglo-Saxon race. This escalated promotion of racist propaganda was accompanied by a similarly accelerated promotion of ideas implying female inferiority. If people of color – at home and abroad – were portrayed as incompetent barbarians, women – white women, that is – were more rigorously depicted as mother-figures, whose fundamental raisson d’être was the nurturing of the male of the species. White women were learning that as mothers, they bore a very special responsibility in the struggle to safeguard white supremacy. After all, they were the “mothers of the race”. Although the term race allegedly referred to the “human race”, in practice – especially as the eugenics movement grew in popularity -0 little distinction was made between “the race” and “the Anglo-Saxon race.”

Serião, não dê o mole que eu dei, demorando tanto tempo pra ler isso. Vai lá no site da Boitempo e compra, lê, sublinha, marca, relê, cria um clube do livro, como o Kim Doria sugeriu no nosso episódio, e fala sobre ele, procura gente que entende mais do que você, faz pergunta. É um livro pra ser estudado, dissecado, questionado, compreendido, abraçado. Principalmente se você é homem, principalmente se você é branco/branca, principalmente se você é privilegiado(a) do ponto de vista econômico. Se for tudo isso junto, então, é leitura obrigatória.

P.S.: O Dann me passou esse link e achei pertinente, dá uma olhada aí.

leituras de 2018 – parte 10, a cerejinha no topo

Unspeakable Things: Sex, Lies and Revolution (Laurie Penny)

Honestamente não lembro mais quem me deu a dica – algo me diz que foi o perfil do Conexão Feminista no Insta, mas não tenho certeza.

Como vem acontecendo com frequência, me arrependi de ter comprado esse livro no Kindle. Ultimamente prefiro usar o e-reader pra ler ficção; não-ficção requer um nível de atenção que só o papel me proporciona, e eu ODEIO ter que procurar os highlights no dispositivo, em vez de procurar os post-its colados nas páginas do livro impresso. Como esse foi de longe a melhor coisa que eu li esse ano, vou comprar o impresso também e atochar de post-it, até porque prevejo que ainda usarei MUITOS trechos dele pra ilustrar um monte de coisas aqui e no Pistolando, e consultar no papel ainda é mais fácil, pra mim, do que no e-reader.

Alguns:

Women, like any oppressed class, learn to fear our own rage. Our anger is legitimately terrifying. We know that if it ever gets out, we might get hurt, or worse, abandoned. One sure test of social privilege is how much anger you get to express without the threat of expulsion, arrest, or social exclusion, and so we force down our rage like rotten food until it festers and sickens us.

I believe that if anything can save us in this fraught and dazzling future, it is the rage of women and girls, of queers and freaks and sinners. I believe that the revolution will be feminist, and that when it comes it will be more intimate and more shocking than we have dared to imagine.

Public ‘career feminists’ have been more concerned with getting more women into ‘boardrooms’, when the problem is that there are altogether too many boardrooms, and none of them are on fire.

The world has changed for women and queers as much as it possibly could without upsetting the underlying structure of society, which is still sexist, homophobic and misogynist, because it relies for its continued existence on sexual control, on social inequality and on the unpaid labour of women and girls. Further change will require more ambition than we have hitherto been permitted.

Feminism is not a set of rules. It is not about taking rights away from men, as if there were a finite amount of liberty to go around. There is an abundance of liberty to be had if we have the guts to grasp it for everyone. Feminism is a social revolution, and a sexual revolution, and feminism is in no way content with a missionary position. It is about work, and about love, and about how one depends very much on the other. Feminism is about asking questions, and carrying on asking them even when the questions get uncomfortable.

While we’re on the subject, here’s what I want. I want mutiny. I want women and queers and everyone else who’s been worked over by gender and poverty and power, which by the way means most of us, to stop waiting to be rewarded for good behaviour. There are no gold stars coming and there are few good jobs left. Even if we buy the right clothes and work the right hours and show up every day with the same cold gag of a smile clenched between our teeth, there’s no guarantee we’ll be left alone to grow old before the floodwaters come in.

Forget it. It’s done. Thd social revolution that’s been choking and stumbling down a gauntlet of a century and more, the feminist fightback, the sexual re-scripting, the tearing up of old norms of race and class and gender, it has to start again, with all of us this tie, not just the rich white kids who needed it last. So it has to be mutiny.

It must be mutiny. Nothing else will do. I used to be less hardline about this. I used to vote, and sign petitions, and argue for change within the system. I stayed up all night to watch Obama get elected; I cheered for the Liberals in London. I thought that maybe if we kept asking for small change – a shift in attitudes about body hair, a slight increase in the minimum wage, maybe shut down a few porn shops and let the gays marry – then eventually we’d get the little bit of freedom we wanted, if it wasn’t too much trouble.

No more of that. Being a good girl gets you nowhere. Asking nicely for change gets you nowhere. Mutiny is necessary. Class mutiny, gender mutiny, sex mutiny, love mutiny. It’s got to be mutiny in our time.

TUDO ISSO SÓ NA INTRODUÇÃO. Eu quero casar com essa mulher, pelamooooooooooooooooooor

Enfim. Eu já indiquei ele no Pistolando e provavelmente continuarei indicando. Leiam. Leiam. Leiam.

leituras de 2018 – parte 9

The Name of the Wind (Patrick Rothfuss)

Então, eu li esse livro mais ou menos na época em que ele saiu, porque fez um sucesso danado e os fãs de fantasy amaram. O Sidney comentou que tinha amado e eu lembrava de ter lido, mas não lembrava da história, e na minha memória tinha achado o livro meio nhé. Resolvi reler. Agora que sentei pra escrever isso aqui, fui catar aqui no blog e vi que em 2010 eu escrevi isso aqui sobre ele:

Depois resolvi escolher um stand-alone, pra não ficar me desesperando enquanto o próximo livro não sai. Só que, sendo uma anta, não fui conferir na internet se o livro era realmente sozinho ou se parte de uma série. Adivinhem? É o primeiro de uma série. Adivinhem quando sai o próximo? Em DOIS MIL E ONZE! Puta que me pariu. De qualquer maneira, gostei pra caramba: The Name of the Wind. A resenha fala de uma mistura de Harry Potter com sei lá o que mais, porque uma parte da história se passa em uma universidade, mas achei o paralelo meio forçado. O cara escreve bem pra caramba, a história é envolvente e eu fiquei com ódio de mim mesma por ter escolhido um livro que acaba em cliffhanger e a continuação só sai ano que vem. Merda. Meu único problema com esse livro foram os nomes dos personagens. Kvothe? Que merda de nome é esse? Jack e David? Oi? Metade dos personagens tem nomes inventados de fantasy, quase sempre no mesmo nível de horror de “Kvothe”; a outra metade se chama Jack, Jimmy, Mary. Coisa mais broxante. Mas enfim, não se pode ter tudo, não é mesmo.

Notem que a minha nomescrotofobia é uma coisa antiga e recorrente na minha vida. Nessa segunda releitura também torci o nariz pros nomes, e não achei nenhuma Brastemp não, senhores.

Ou seja: não confie jamais na sua memória.

Mas enfim, a história tem coisas bem interessantes, o universo construído é maneiro, mas dessa vez meu santo não bateu, de verdade. Me lembrou um pouco a série Scandal, que parei de ver porque TUDO NO MUNDO MUNDIAL parecia ter algo a ver com a personagem principal, das borboletas batendo as asas no México a tsunamis na Indonésia, e aquilo foi me irritando de um jeito que acabei parando de ver. O mesmo acontece com esse personagem, e até agora não apareceu uma explicação plausível pra isso, então não me apaixonei não.

O problema é que o cliffhanger continua lá, então vou ser forçada a ler o segundo livro e me irritar porque o terceiro ainda não saiu, que tal?

O Ódio como Política (organizado por Esther Solano)

A capa é ve

Comprei esse livro no evento de podcasts que rolou na Tapera Taperá, em setembro. Só fui ler depois das eleições, e confesso que precisei prestar muita atenção e voltar pra reler vários trechos; estou desacostumada a ler coisas sérias assim sobre assuntos sérios. Mas a coletânea de textos é muito boa. Como qualquer coisa que eu falar não vai ser inteligente o suficiente, sugiro ouvir pessoas brilhantes comentando, aqui no Revolushow. Aproveitem e vejam também os vídeos do evento, que foi sensacional; aquele fim de semana foi um dos mais legais da minha vida, de verdade. Tem texto da Sabrina, do Carapanã, de um monte de gente foda. Vão lá e leiam, e comprem mais coisas da Boitempo porque eles são legais DEMAIS.

leituras de 2018 – parte 8

Noite Branca (Renato Guedes)

Jeremias: Pele (Rafael Calça)

Como eu disse antes, não sou muito fã de HQs, mas essas duas me conquistaram. O Noite Branca é bacana, mas o Jeremias, que foi indicação do Fafazinho e depois de outros amigos que comentaram, é sensacional. Fala de racismo de uma maneira muito tocante e as ilustrações são lindas. Vale MUITO a pena.

Storia della Bambina Perduta (Elena Ferrante)

O quarto livro fecha a tetralogia com chave de ouro, deixando muitas coisas inexplicadas e um monte de dúvidas na nossa cabeça. Leiam logo tudo e ouçam o EPEPa.

Lila é uma das melhores personagens literárias já escritas, ponto.

Forse ciò che aveva attratto Nino era l’impressione di aver trovato in Lila ciò che anche lui aveva presunto di avere e che ora, proprio per confronto, scopriva di non avere. Lei possedeva l’intelligenza e non la metteva a frutto, ma anzi la sperperava come una gran signora per la quale tutte le ricchezze del mondo sono solo un segno di volgarità. Questo era il dato di fatto che doveva aver ammaliato Nino: la gratuità dell’intelligenza di Lila. Essa si distingueva tra tante perché con naturalezza non si piegava a nessun addestramento, a nessun uso e a nessun fine. Tutti noi c’eravamo piegati e quel piegarci ci aveva – attraverso prove, fallimenti, successi – ridimensionati. Solo Lila niente e nessuno pareva ridimensionarla. Anzi, pur diventando con gli anni stupida e intrattabile come chiunque, le qualità che le avevamo attribuito sarebbero rimaste intatte, forse si sarebbero addirittura ingigantite. Anche quando la odiavamo finivamo per rispettarla e temerla. Non mi sorprendeva, a pensarci, che Nadia, pur avendola incontrata in poche occasioni, la detestasse e volesse farle del male. Lila le aveva preso Nino. Lila l’aveva umiliata nele sue credenze rivoluzionarie. Lila era cattiva e sapeva colpire prima di essere colpita. Lila era plebe ma rifiutava ogni redenzione. Insomma Lila era una nemica onorevole e nuocerle poteva essere una soddisfazione pura, senza il corredo dei sensi di colpa che di certo suscitava una vittima designata come Pasquale.

Talvez o que tivesse atraído Nino fosse a impressão de ter encontrado em Lila aquilo que ele também presumira ter e que agora, justamente pelo contraste, descobria que não tinha. Ela possuía inteligência e não tirava proveito disso, ao contrário, a
desperdiçava como uma aristocrata para quem todas as riquezas do mundo são apenas um sinal de vulgaridade. Esse era o dado de fato que deve ter deslumbrado Nino: a gratuidade da inteligência de Lila. Ela se distinguia entre tantas porque, com naturalidade, não se dobrava a nenhum adestramento, a nenhum uso e a nenhum fim . Todos nós nos dobráramos, e aquele dobrar-se — por meio de provas, fracassos, sucessos — nos redimensionara. Somente Lila, nada nem ninguém parecia redimensioná-la. Ao contrário, mesmo se tornando com o passar dos anos estúpida e intratável como qualquer um, as qualidades que lhe havíamos atribuído permaneceriam intactas, quem sabe até se agigantassem. Mesmo quando a odiávamos, acabávamos por respeitá-la e temê-la. Pensando nisso, não me surpreendia que Nadia, apesar de tê-la encontrado pouquíssimas
vezes, a detestasse e quisesse fazer mal a ela. Lila tomara Nino dela. Lila a humilhara em suas crenças revolucionárias. Lila era má e sabia atacar antes de ser atacada. Lila era plebe, mas recusava qualquer redenção. Em suma, Lila era uma inimiga notável e prejudicá-la podia ser uma satisfação pura, sem o adorno do sentimento de culpa que certamente suscitava uma vítima assinalada como Pasquale.

leituras de 2018 – parte 7

Kindred (Octavia Butler)

Esse livro foi escrito há 26 anos, e não sei por que tá tendo esse revival agora. Confesso que não conhecia a autora até a Amazon me sugerir a leitura. Conta a história de uma mulher negra casada com um homem branco que um dia do nada vai parar no passado, numa fazenda de algodão no estado de Maryland, nos EUA, no século XIX, OLSEGE, numa época em que a escravidão era uma parada normal. Sendo negra, ela obviamente não pode fazer nada além de se encaixar no seu papel esperado de escrava, já que não sabe inicialmente como voltar pro seu próprio tempo.

Gostei do livro, mas não AMAY não. Tem uns trechos muito duros de ler, esse assunto é bem pesado, mas não achei tão avassalador quanto as criticas estão dizendo. Ficou em Curitiba, então não tem trecho pra copiar aqui. Vale a leitura, mas não foi divisor de águas pra mim não. Viagem no tempo por viagem no tempo, prefiro Outlander ;)

Storia di Chi Fugge e di Chi Resta (Elena Ferrante)

AINDA não gravamos um EPEPa sobre o terceiro e o quarto livros, mas quando você começa com a tetralogia, não consegue mais parar, a história é boa demais, as personagens são bem desenvolvidas demais. A fase adulta de Lenù e Lila é muito interessante, embora eu ainda prefira o segundo livro. Aguardem o próximo episódio, que será gravado custe o que custar.

Cominciai a non poterne più. Mi ricordai delle resistenze che aveva fatto Antonio quando l’avevo lasciato. Ma Antonio era un ragazzo, aveva ereditato la testa labile di Melina e soprattutto non gli era stata impartita l’educazione di Pietro, non era addestrato fin dall’infanzia a individuare regole nel caos. Forse, pensavo, ho attribuito un peso esagerato all’uso coltivato della ragione, alle buone letture, alla lingua ben governata, all’appartenenza politica; forse, di fronte all’abbandono, nemmeno una testa molto ordinata può reggere alla scoperta di non essere amata.

Em português, valeu Aline de novo:

Comecei a não aguentar mais. Lembrei-me das resistências de Antonio quando tinha decidido deixá-lo. Mas Antonio era um rapaz, tinha herdado a cabeça frágil de Melina e sobretudo não recebera a mesma educação de Pietro, não tinha sido adestrado desde a infância a identificar regras no caos. Talvez — pensei comigo — eu tenha atribuído um peso excessivo ao uso cultivado da razão, às boas leituras, à língua bem governada, à filiação política; talvez, diante do abandono, sejamos todos iguais; talvez nem mesmo uma cabeça muito disciplinada consiga suportar a descoberta de não ser amada.

leituras de 2018 – parte 6

An Astronaut’s Guide to Life on Earth (Chris Hadfield)

Esse foi o Thiago que me emprestou. Não está mais comigo, então não tenho como citar nenhum trecho.

É um livro interessante por vários motivos: ele descreve todo o processo pelo qual passou pra se tornar astronauta, toda a formação, as dificuldades e desafios e coisa e tal, e saber dos bastidores é SEMPRE maneiro. Além disso, realmente há coisas que podem ser aplicadas à vida cotidiana a partir de uma experiência assim, embora nada do que ele tenha dito seja realmente uma novidade – todo mundo sabe que checklists salvam vidas, que tentar olhar um problema de pontos de vista diferentes facilita a sua resolução, coisas assim. Mas o jeito dele escrever me pareceu tão, tão americano, embora ele seja canadense, sabe, aquela coisa tão tão de coaching, de autoajuda, de DÁ O MELHOR DE SI E NÃO DESISTE NUNCA GO GO GO GO GO! que no final eu já tava me irritando. Mas valeu a leitura, tem um monte de historinhas de bastidores bem legais. Claro que pra quem curte astronomia pra caramba, que não é o meu caso, é um prato cheio.

Storia del Nuovo Cognome (Elena Ferrante)

O segundo livro da tetralogia napolitana é delicioso, principalmente depois do cliffhanger no qual o primeiro livro nos deixou. Melhor do que ler aqui um comentário é ouvir o segundo É Pau, É Página sobre ele, por sinal um dos episódios mais legais que eu gravei até hoje.

Relendo as minhas notas no Kindle achei esse trecho genial, mas há muitos outros:

Portava sottobraccio i libri stretti con l’elastico, aveva il viso sciupato dalla tensione delle ore di scuola. Anche Alfonso nascondeva in petto don Achille, suo padre, malgrado l’aria delicata? Possibile che i genitori non muoiano mai, che ogni figlio se li covi dentro inevitabilmente? Dunque da me davvero sarebbe sbucata mia madre, la sua andatura zoppa, come un destino?

Na tradução em português, mais uma vez cortesia da Aline Bergamo:

“Levava debaixo do braço os livros atados com um elástico, tinha o rosto cansado pela tensão das horas de aula. Será que Alfonso também escondia no peito dom Achille, seu pai, apesar do jeito delicado? Será possível que os pais não morram nunca, que todo filho os carregue dentro de si inevitavelmente? Então de dentro de mim realmente brotaria minha mãe, seu andar trôpego, como um destino?”

leituras de 2018 – parte 5

Purple Hibiscus – Chimamanda Ngozi Adichie

Mais um livro que lemos no Clube do Livro da Mamilândia.

Zente, que delícia de livro. Que história fantástica, a começar pela ambientação toda diferente. A história se passa na Nigéria e tem várias palavras em línguas locais, um monte de frutas e comidas que desconhecemos (querendo, cê perde horas na Wikipedia pesquisando a culinária local), a descrição dela torna tudo muito palpável e você quase sente o cheiro daquele pedaço da África através das páginas. A história é uma delícia, é um coming of age com o toque de uma autora fantástica que vem de um país sobre o qual sabemos muito pouco.

Quem adivinhar quem é minha personagem preferida do livro ganha um beijo no próximo Pistolando ;)

“She walked fast, like one who knew just where she was going and what she was going to do there. And she spoke the way she walked, as if to get as many words out of her mouth as she could in the shortest time.

‘Welcome, Aunty, nno,’ I said, rising to hug her.

She did not give me the usual brief side hug. She clasped me in her arms and held me tightly against the softness of her body. The wide lapels of her blue, A-line dress smelled of lavender.

‘Kambili, kedu?’ A wide smile stretched her dark-complected face, revealing a gap between her front teeth.

‘I’m fine, Aunty.’

‘You have grown so much. Look at you, look at you.’ She reached out and pulled my left breast. ‘Look how fast these are growing!’

I looked away and inhaled deeply so that I would not start to stutter. I did not know how to handle that kind of playfulness.

‘Where is Jaja?’ she asked.

‘He’s asleep. He has a headache.’

‘A headache three days to Christmas? No way. I will wake him up and cure that headache.'”

Runaway World (Anthony Giddens)

Esse eu li pra pós, mas confesso que não gostei muuuito não. Sublinhei alguns bons insights, mas achei a leitura meio chatinha no geral.

At first sight, the concept of risk might seem to have no spcific relevance to our times, as compared to previous ages. After all, haven’t people always had to face their fair share of risks? Life for the majority in the European Middle Ages was nasty, brutish and short – as it is for many in poorer areas of the world now.

But here we come across something really interesting. Apart from some marginal contexts, in the Middle Ages there was no concept of risk. Nor, so far as I have been able to find out, was there in most other traditional cultures. The idea of risk appears to have taken hold in the sixteenth and seventeenth centuries, and was first coined by Western explorers as they set off on their voyages across the world. The word ‘risk’ seems to hav come into English through Spanish or Portuguese, where it was used to refer to sailing into unchartered waters. Originally, in other words, it had an orientation to space. Later, it became transferred to time, as used in banking and investment, to mean calculation of the probable consequences of investment decisions for borrowrs and lenders. It subsequently came to refer to a wide range of other situations of uncertainty.

The notion of risk, I should point out, is inseparable from the ideas of probability and uncertainty. A person can’t be said to be running a risk where an outcome is 100 per cent certain.

There is an old joke that makes this point rather neatly. A man jumps from the top of a hundred-storey skyscraper. As he passes each floor, on his way down, the people inside hear him saying: ‘so far so good’, ‘so far so good’, ‘so far so good’… He acts as though he is making a risk calculation, but the outcome is in fact determined.

Traditional cultures didn’t have a concept of risk because they didn’t need one. Risk isn’t the same as hazard or danger. Risk refers to hazards that are actively assessed in relation to future possibilities. It comes into wide usage only in a society that is future oriented – which sees the future precisely as a territory to be conquered or colonised. Risk presumes a society that actively tries to break away from its past – the prime characteristic, indeed, of modern industrial civilisation.

leituras de 2019 – parte 4

Superfreakonomics – Steven Levitt e Stephen Dubner

Eu gosto muito do primeiro livro, o Freakonomics, e gostei muito desse também. Ele mostra umas correlações nada óbvias entre coisas que você não suspeita que estão relacionadas, então sempre aprendo um monte de coisas. Sigo o podcast de mesmo nome e sugiro que vocês também ouçam.

Um trechinho bem curtinho mas que explica MUITA coisa:

“A pair of researchers named Kristen Schilt and Matthew Wiswall wanted to systematically examine what happens to the salaries of people who switched gender as adults. It is not quite the experiment we proposed above—after all, the set of folks who switch gender aren’t exactly a random sample, nor are they the typical woman or man before or after—but still, the results are intriguing. Schilt and Wiswall found that women who become men earn slightly more money after their gender transitions, while men who become women make, on average, nearly one-third less than their previous wage.”

The Girl on the Train – Paula Hawkins

Esse foi outra releitura, pra poder gravar esse Perdidos na Estante aqui (que por sinal ficou ótimo, if I say so myself).

Vou deixar um trecho bem curto e aparentemente insignificante, mas vale a pena ler, talvez ver o filme e depois ouvir o podcast, onde a gente comentou tudo muito bem comentado.

“Hollowness: that I understand. I’m starting to believe that there isn’t anything you can do to fix it. That’s what I’ve taken from therapy sessions: the holes in your life are permanent. You have to grow around them, like tree roots around concrete; you mould yourself through the gaps. All these things I know, but I don’t say them out loud, not now.”

leituras de 2018 – parte 3

L’Amica Geniale – Elena Ferrante

O que dizer desse livro?

Basicamente todas as minhas amigas que leem me mandaram ler esse livro – na verdade a tetralogia toda, obviamente. Confesso que resisti por causa do hype, que quase sempre me decepciona. O livro demorou um pouco pra me pegar, mas quando engrenou, CHER ME ABANA! Que desenvolvimento fantástico de personagens! Que ambientação maravilhosa! Que riqueza de plot twists!

Se você ainda não leu, leia. Depois ouça os dois É Pau, É Página que já gravamos comentando os dois primeiros livros (os outros episódios sairão em algum momento, prometo).

Tem gente que diz que é “chick lit”, literatura de mulherzinha, mas tem que ser muito estúpido pra fazer uma afirmação dessas. Primeiro porque o conceito de chick lit já é idiota e menosprezante por si só; segundo porque esses livros falam de humanidade, de amizade, de sentimentos, de histórias de pessoas, tudo entrelaçado com uma realidade muito diferente da nossa, nos bairros pobres de Nápolis no século passado. Eu sou péssima de entrelinhas e sutilezas, portanto recomendo ouvir o EPEPa depois de ler, pra ter uns insights geniais que as minhas colegas de podcast ofereceram e entender um monte de coisas que podem passar batidas durante uma primeira leitura.

Vou botar aqui um trecho em italiano:

“Scoprii che mi piaceva moltissimo ballare, avrei ballato sempre. Lila invece aveva quella sua aria di chi vuol capire bene come si fa, e pareva che il suo divertimento consistesse tutto nell’imparare, tant’è vero che spesso se ne stava seduta a guardare, studiandoci, e applaudiva le coppie più affiatate.”

Traduzido em português:

“Descobri que gostava muito de dançar, dançaria sempre. Já Lila tinha aquele ar de quem quer entender bem como se faz, e parecia que sua diversão consistia apenas em aprender, tanto é que frequentemente ficava sentada, olhando, nos estudando, e aplaudia as duplas mais entrosadas.”

(um agradecimento especial pra Aline Bergamo, queridona, que me passou a tradução)

Eu amo esse parágrafo porque ele define perfeitamente a Lila, personagem com quem acabei me identificando mais ao longo da leitura (e coisa que quem ouviu os EPEPa sabe).

Depois que li o primeiro, engatei direto no segundo, no terceiro e no quarto, mas não vou comentar todos seguidos pra não ficar chato.

The Color Purple – Alice Walker

Sim, é ele mesmo, A Cor Púrpura. Lemos juntos pro Clube do Livro da Mamilândia, e foi extremamente doloroso, viu. É uma história terrivelmente triste mas também bonita, e cheia de insights brilhantes vindas das mentes de personagens com pouco estudo, humildes, sofridas, porém maravilhosas. Sintam o drama:

“Dear Nettie,

I don’t write to God no more, I write to you.
What happen to God? ast Shug.
Who that? I say.
She look at me serious.
Big a devil as you is, I say, you not worried bout no God, surely.
She say, Wait a minute. Hold on just a minute here. Just because I don’t harass it like some peoples us know don’t mean I ain’t got no religion.
What God do for me? I ast.
She say, Celie! Like she shock. He gave you life, good health, and a good woman that love you to death.
Yeah, I say, and he give me a lynched daddy, a crazy mama, a lowdown dog of a step pa and a sister I probably won’t ever see again. Anyhow I say, the God I been praying and writing to is a man. And act just like all the other mens I know. Trifling, forgitful and lowdown.
She say, Miss Celie. You better hush. God might hear you.
Let ‘im hear me, I say. If he ever listened to poor colored women the world would be a different place, I can tell you.”

Eu vi o filme, mas faz tanto tempo que não tenho mais quase recordação alguma, e ainda não decidi se vou continuar assim ou se vou arrumar o filme pra ver. Algo me diz que não tenho mais estômago pra esse tipo de filme; se o livro já foi assim doído, imagina o filme.

De qualquer forma, é um clássico e deveria ser leitura obrigatória pra todo ser humano.